FRANCISCO

Hoje, dia 4 de outubro, meu pensamento vai para ele – o filósofo do altruísmo, o poeta do meio ambiente, o caridoso em extrema coerência, o santo que protege os animais. Uma figura tão emblemática de humildade que o papa decidiu homenageá-lo, tomando-lhe o nome – e, como consequência, um pouco da sua postura despojada, sem tantos riquíssimos paramentos católicos. Aliás, acho que combina muito bem com Jorge Mario Bergoglio, com seu sorriso e simpatia, chamar-se de Francisco.

Das cenas de sua vida tão longínqua, gosto especialmente de imaginar a pregação aos pássaros, a conversa com o lobo de Gubbio e a descoberta de que o desprendimento é libertário. Quando ele doou até a roupa que vestia, renunciou a qualquer grilhão de vaidade ou convenção social – e, além disso, seu gesto o consagrou como o primeiro santo performático e naturista do mundo…

Tenho em casa algumas estatuetas que o recordam: uma comprei em Salvador; outra, em Sabará. Mas a mais realista foi adquirida em Assis, o lugar de maior encanto que já visitei. Durante todo o dia em que ali estive, num passeio-relâmpago cinco anos atrás, eu me senti abençoada, não há melhor palavra. Entrei na Basílica, arrepiei-me diante dos afrescos de Giotto, andei pelo espaço sagrado da cripta, depois percorri sem rumo as ruas inclinadas e antiquíssimas – mas o fundamental permaneceu invisível: a emoção de ainda encontrar, naquela cidade, a energia de um ser iluminado. Ele esteve ali oito séculos antes, sua túnica exposta na Basílica era tão desgastada quanto uma pele que se queimou, do seu próprio corpo provavelmente só restam vestígios… porém nada disso importava. A presença de Francisco paira em Assis e, óbvio, dirão os devotos, não somente lá.

Embora eu não me sinta à vontade em nenhuma religião (fujo de líderes e dogmas), sei reverenciar as energias superiores e reconheço o exemplo de São Francisco. Confesso inclusive que, de tão presente em meu cotidiano, ele às vezes me surge em sonhos, oferecendo a inspiração da sua existência, que foi tão simples quanto extraordinária.

O seu amor pela natureza, a sua integração com o todo traz o maior testemunho a respeito da paz. Ele condenou o especismo e desenvolveu uma consciência ecológica em plena Idade Média – foi, portanto, um visionário (mas assim não são todos os iluminados?). Os seus milagres e contemplações nos lançam a uma poética que só a mais refinada literatura atinge. Ele foi andarilho e recluso, reuniu multidões mas também sempre agiu sozinho. O que esse homem, defensor da harmonia holística e da fraternidade astral, diria atualmente sobre o planeta? Talvez usasse as mesmas orações, a mensagem que – por ser perfeita – permanecerá idêntica. Entretanto ela parece bem mais urgente agora, não é? Meditemos.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

Na paz e na guerra

A temporada de confinamento que enfrentamos, desde março deste ano, teve repercussões que ainda vão lançar raízes por longo tempo. Em minha escrita para o jornal curitibano Rascunho, inaugurei 2020 com uma série ensaística sobre Lygia Fagundes Telles, e esse projeto temático exigia persistência. Mas agora que o ciclo de textos se encerrou, eu me permito divagar por vários assuntos. E penso nas leituras que fiz durante a quarentena – sobretudo Guerra e Paz, obra que parecia esperar, paciente, a minha disponibilidade. Como diante de todo clássico, já suspeitava que as críticas não me tinham preparado o suficiente (tarefa impossível, aliás) para a aventura de mergulhar no texto. Porém, não imaginava que o livro de Tolstói fosse me cavar tantos abismos místicos, até anarquistas – que sei eu? –, no processo de leitura.

Sob o colossal trabalho do autor russo, fica clara não somente a extensa pesquisa histórica feita, mas também a necessidade de pôr questões filosóficas em pauta – e orquestrar tudo, saber em que hora, e com que personagem, certa deriva podia se desenvolver. A escrita em si, se para ele foi uma parte fácil, nem por isso se tornou veloz: fluir não significa correr. Em nenhum momento a narrativa perde compasso, e é magistral o tema implícito que, adotando esse ritmo, o autor injeta: o de que todas as histórias, todas as ações, são igualmente importantes… ou igualmente inúteis, conforme se enxergue.

A alternância que o enredo propõe, dedicando-se primeiro à vida frívola dos salões aristocráticos, e depois aos episódios das batalhas, poderia criar no(a) leitor(a) a expectativa de que estes últimos, sim, são o miolo do livro, a sua razão de ser (e inclusive o enaltecimento tradicional das guerras parece relegar a “paz” ou a vida cotidiana a um lugar mesquinho). Com a leitura, percebemos o equívoco: tudo é o miolo, tudo está no centro.

Não existe senão a vida cotidiana, e em cada batalha os personagens circulam, atordoados, do mesmo modo inconsciente como nos salões obedecem a rituais de polidez. Ninguém tem uma visão grandiosa de nada, porque a escala do indivíduo é sempre ínfima – e a tal glória de haver lutado numa guerra, no fundo, resume-se à pura sorte de ter escapado vivo (não por mérito, porque, na dança de um tiroteio, é apenas pela coreografia divina que um determinado soldado escapa de cair alvejado onde, um segundo antes, marcava o passo).

De forma equivalente, na sociedade, o jogo de interesses favorece uns, desmascara outros. Tudo é pequeno, mesquinho e passageiro; os soldados morrem inutilmente, para que depois os imperadores façam acordos – e em que a vida de Napoleão ou a do czar Alexandre pode ser mais valiosa do que a de outra pessoa qualquer? A única razão para essa hierarquia foi o juízo coletivo que a legitimou, santificou, exaltou uns pouquíssimos em detrimento de todos os demais.

Anotei no meu diário, em 20 de abril: fiquei profundamente impressionada com a cena em que o personagem Pierre encontra um idoso na estação de trem, ao fugir da esposa, sentindo-se indiferente ao próprio destino – se continuaria igual, ou se morreria ali sem um lamento. Ora, Tolstói escreveu Guerra e Paz aos 35 anos; com mais de 80, depois de seguir convicções que o levaram a doar grande parte de suas terras aos camponeses, perseguido judicialmente pela esposa (que tentava impedi-lo de doar o resto), ele foge do inferno familiar, tomando um trem – e morrendo numa das estações, em Astápovo.

É inevitável pensar que nessa cena do livro o personagem encontra o próprio autor, transfigurado no velho que ele seria 50 anos mais tarde – e os dois conversam. O personagem se sente irresistivelmente atraído pelo ancião, que sabe quem é Pierre, conhece a sua história e o aconselha. O movimento simula um encontro com o divino; se consideramos que há também uma Grande Narrativa por trás de nossas vidas, a possibilidade de um dia conversar com Deus é equivalente a essa, de um personagem encontrar-se com seu autor, numa espécie de mise en abîme diegética que nem Pirandello ousaria. Notemos: em Guerra e Paz o procedimento foi involuntário da parte de Tolstói, e em Seis personagens à procura do autor a metaestratégia ocorreu de modo bastante consciente…

Em outro capítulo, a cena de um debate entre Andrei Bolskónski e Pierre Bezukhov traz novas considerações à baila. Após sua conversão à maçonaria, este último sente-se santificado por ter ordenado, em suas terras, o fim do trabalho infantil, a construção de igrejas, hospitais, escolas e uma série de benefícios ao “próximo” – sem saber que sua sensação é ilusória, pois a corrupção administrativa de suas propriedades apenas finge desenvolver as melhorias, mas na verdade os camponeses seguirão explorados de qualquer maneira, talvez até mais que antes.

Andrei, por outro lado, não acredita que se possa “fazer o bem”, porque a própria interpretação do que é bom pode ser mera arrogância de quem acha que, devido a estudos que fez, por exemplo, conhece a Verdade. Como alguém presumiria o que é bom para uma pessoa, se não sabe sua realidade ou não ouve as demandas diretamente dela? Essa foi a perniciosa ideologia por trás de discursos colonialistas, populistas, salvacionistas ao longo dos séculos – e ainda hoje isso carrega polêmicas antropológicas ou culturais, dentre tantas. No fundo, ninguém faz nada senão por si mesmo – e um ato de caridade pretende muito mais aplacar a consciência do doador, ou construir dele certa imagem (pública, inclusive) de benéfico. A paz também se compra, assim como a opinião alheia.

Mas a postura de Andrei – que esteve a ponto de morrer numa batalha, e que antes disso desejava a “glória”, ou seja, vivia em função dos outros, para os outros – é de um radical egoísmo sábio. Ele decidiu viver só para si e, quando se dedica à família, sabe que continua no perímetro do seu eu, das coisas ou pessoas que lhe são caras e até, por assim dizer, ajudam a construir sua identidade. Os outros de fato, os desconhecidos, os anônimos, os figurantes que podem cruzar seu caminho, as pessoas por trás das estatísticas, de todo tipo de construção ou serviço, a humanidade em geral, essa massa distribuída ao longo dos séculos e países… isso não lhe interessa. Ou lhe interessa tanto quanto um cenário ao fundo de um espetáculo: é algo que existe ali, mas nunca em evidência.

Andrei – por sua experiência de quase-morte – entendeu como é responsável unicamente por si; ninguém lhe restituiria a vida ou a viveria em seu lugar. Portanto, cuidar dele mesmo é a sua missão grandiosa, o seu heroísmo. O que a sociedade elege para a fama, o sucesso em algum domínio (por exemplo, Napoleão), a Andrei se revelou como uma sombra que atrapalhava sua visão do céu, no momento da agonia, ferido na guerra. De que lhe importava se aquele homem a seu lado era um imperador, um tirano ou um sujeito vulgar? Andrei só se preocupava consigo, não fazia o mínimo esforço para reconhecer a personalidade tão aclamada que, ali, era apenas um incômodo.

Ao sobreviver, Andrei se transformou. Deixou de ter “uma vida a serviço de” e passou a ter “uma vida” – ponto. Sem se preocupar em justificar sua serventia, os atos que fizesse em prol da humanidade, os benefícios, a honra, a justiça. Todos esses valores se esvaziaram, saíram da casca das palavras e perderam o sentido. Assim como a vida alheia também perdeu o sentido, virou esse cenário distante que Andrei não se esforça mais por discernir ou compreender – sabe que isso agora não lhe diz respeito. Aliás, nada jamais diz respeito a uma pessoa a não ser ela própria: Andrei admite tal princípio com naturalidade e modéstia. Ele não é um monstro interessado em prejudicar os demais (como às vezes o egoísmo parece sugerir, embora o conceito de centrar-se no eu nada tenha, necessariamente, de inveja ou maldade). O seu lema poderia ser: viva e deixe viver. E deixar viver não é ajudar a viver; é largar o outro com a própria vida, fazê-lo responsabilizar-se por ela, porque essa é a situação inexorável de cada um no planeta.

O desenvolvimento posterior deste personagem, entretanto, mostra como uma condição filosófica é frágil, pode desmoronar facilmente. Depois de um tempo dedicado a si, voltado para a sua paz egoísta, Andrei se desestabiliza sob a influência de Pierre (que, no fundo, é um pobre imbecil manipulado, mas desconhece a própria realidade). Volta a participar de círculos sociais e políticos, ocupa sua vida com ações que não compreende nem questiona, simplesmente as repete porque é o que todo mundo faz, é o que esperam dele, o que de fato exigem. Sim, embora tudo pareça sutil e camuflado, é posto como obrigatório – se ele se recusa a caber no papel destinado, deve explicar-se, convencer, o que parece mais cansativo que a obediência. Caso se recuse sem dar explicações, será visto como um louco, um ser hostil ou no mínimo excêntrico, e vão isolá-lo, abandoná-lo… odiá-lo (por ter a coragem de fazer o que, inconscientemente, a maioria deseja mas não arrisca, e por destruir, ou arranhar ao menos, o escudo corporativo que sustenta a sociedade e inventa um sentido para a existência dos indivíduos, ao enfiá-los em papéis específicos).

É preciso uma disciplina imensa, para ser um dissidente. Mas não falo de quem abandona as regras de um grupo para seguir as de outro; alguém que se converte, por exemplo, a uma religião ou ideologia, não faz nada original. O dissidente é aquele que recusa (“I prefer not to”, como dizia o Bartebly de Melville), e para tal não precisa fazer anúncios, chamar a atenção para o espetáculo de sua negativa, como também não precisa arranjar adeptos, outras pessoas que o apoiem (isso já seria formar um grupo, cair em regras).

A recusa pode ser silenciosa, íntima. As atitudes de um dissidente podem soar distraídas, banais até, insignificantes: é quando alcançou o seu propósito. Porque, se a opinião social considera o opositor uma ameaça, não cessará de combatê-lo; porém, se vê em seus atos algo inofensivo, então vai deixá-lo em paz, com aquele tipo de gesto frustrado que os adultos adotam com crianças que não lhe parecem birrentas, mas ainda assim são teimosas. “Pois faça o que quiser!”, dizem, e não deixam de espiar ocasionalmente a criança, mas a vigilância relaxa.

Isso já representa a liberdade.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de agosto, com leves adaptações. Pode ser lido aqui)

Liège au Moyen Âge

Eu, que sempre me interessei muitíssimo pela Idade Média, neste mês de dezembro tive a ótima oportunidade de mergulhar outra vez no tema, através de um ciclo de “animações medievais” promovido em Liège. Com a estrutura fornecida por uma empresa especializada em “reviver” os tempos do Moyen Âge, o Museu Grand Curtius abriu exposições gratuitas, assessoradas por guias a se apresentar em trajes típicos, dando explicações detalhadas dos objetos.

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Gravação de uma “cena medieval”, no Grand Curtius

Na primeira tarde do evento, o tema mais interessante foi sobre “a cosmética na era medieval”, e com isso aprendi que, se fosse uma mulher do século XIII, certamente teria morrido envenenada por mercúrio (pois era a forma mais comum de conseguir vermelhidão para os lábios) ou chumbo (do qual derivava um tipo de pó famoso por manter os rostos pálidos, antes que alguém tivesse a boa ideia de substituir a substância por algo mais inocente como… farinha!). A vida não era fácil, mas a ideia de que os medievos eram avessos à higiene mostrou-se equivocada; a sujeira começou a imperar na Europa a partir da Renascença, graças às práticas médicas de então. Na época medieval, portanto, todo mundo era limpinho – o que significava: banho uma vez por semana (um padrão que alguns europeus parecem ainda hoje conservar)!

A higiene e a educação também imperavam à mesa, via de regra. Cada pessoa levava o próprio talher para a refeição e, como ainda não existia louça à farta, em vez de prato usava-se um pão duro, onde os alimentos iam sendo colocados. Num banquete formal, era costume que os convidados se sentassem segundo uma hierarquia de importância, e a quantidade de alimento se fazia proporcional a tal regra. Quase não se bebia água (por causa da poluição dos rios e fontes), e, já que não havia uma técnica desenvolvida para preservar o vinho, a preferência era pelo hidromel e pela cerveja.

Nesta segunda tarde, dedicada à culinária, o aroma dos temperos me fez pensar no quanto o preparo da comida, o convívio com os próprios ingredientes mesmo, foi se modificando ao longo do tempo. E no entanto, ainda é tão simples fazer um retorno a esse passado, em termos gustativos: cravo, gengibre, hortelã, canela, noz moscada… Talvez por isso alguns desses aromas pareçam enfeitiçados – por causa de sua história medieval…

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A terceira tarde foi a mais animada – o trio dos Menestréis de Mandini animou a plateia com músicas e danças. Mas, para além dos festejos e cirandas, fiquei encantadíssima com a possibilidade de ouvir canções de trovadores e goliardos, ao som de uma vieille à rue e de uma cítara. A música medieval tem um apelo irresistivelmente místico, e os versos, em langue d’oc, um sabor que me transporta de imediato aos livros, a velhos poemas, livros de horas, tapeçarias.

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Para fechar a experiência, intercalei todas essas jornadas com a leitura dos Contes du Moyen-Âge, de Michel Zink, com as ótimas ilustrações de Pierre-Olivier Leclercq. Foi uma boa viagem no tempo!

Le Grand Curtius e a Idade Média

Se depois de uma semana em Liège certas ruas já me parecem familiares, os museus, par contre, continuam sendo uma atração inesgotável.  Hoje tive a alegria de visitar o Grand Curtius, que fica perto da rue Hors Chatêau. Vi apenas metade do acervo, com a sensação inédita de poder voltar amanhã para contemplar o resto (e com isso pude dimensionar a plenitude em que vive, por exemplo, monsieur Armand, o senhor francês que certa vez encontrei no Louvre e que me disse que, a cada semana, voltava ali para ver alguma sala).

A metade do Grand Curtius consiste num mergulho que começa pela pré-história e, no meu caso, foi até a Idade Média. Essa é uma época que sempre me faz parar, embevecida. Selecionei algumas imagens e informações riquíssimas para compartilhar com o leitor interessado no tema.

Vierge à l'enfant

Vierge à l’enfant, vers 1530

(Venerada numa capela da antiga catedral. Revela um estilo gótico tardio com traços da produção limbourgeoise. Denota também influência da escultura suábia)

Christ mosaneO Cristo acima é um bom exemplo de “art mosan”, um estilo que se desenvolveu no vale do rio Meuse (e daí o nome “Mosa”, de Meuse) entre o fim do século X e a metade do século XIV. A cultura era herdeira da época carolíngia; Liège no século XII contava com mais de 20 paróquias, além dos colegiados, estabelecidos nos locais em que seus fundadores haviam evangelizado. Essas instituições ligadas à igreja desenvolviam o ensino e a arte, contando com importantes bibliotecas e ateliês de iluminuras e ourivesaria.

vers 1260-1270

vers 1260-1270

Fiquei absolutamente magnetizada pela dramaticidade deste cristo, com seu esquema arcaicizante (flexão dos braços em W, posição dos dedos). A obra provém da capela de Frenay, em Lens-sur-Geer.

Vierge d'Évegnée, vers 1060-1070

Vierge d’Évegnée, vers 1060-1070

A iconografia acima é a da “Siège de la Sagesse”, em referência ao trono de Salomão: Maria serve efetivamente de trono ao seu filho, sabedoria encarnada. Mas a virgem está igualmente representada como uma nova Eva: ela segura na mão direita uma maçã, símbolo do pecado original. Fortemente esquematizada, esta figura traz vestígios de arcaísmo, sobretudo pela frontalidade. Estilisticamente, pode ser comparada às portas da igreja Sainte Marie de Capitole, em Colônia, datadas de 1050.

Vierge de Xhoris, vers 1030

Vierge de Xhoris, vers 1030

Esta outra “Sediae Sapientiaie” tem uma silhueta caracterizada pelo alongamento, ao contrário da anterior. O rosto apresenta similitudes com o cristo de Tancréamont, o que conduz a uma datação próxima a 1030.

Vierge, início do séc. XII

Vierge, início do séc. XII

Vierge à l'enfant, vers 1149-1150

Vierge à l’enfant, vers 1149-1150

Acima, a dita Virgem de Dom Rupert mostra um estilo mosan mesclado com o bizantino (no véu da Virgem e na almofada do tipo “obus” sobre a qual ela se senta). Este relevo provém da abadia beneditina de Saint-Lorent, em Liége, e o seu nome é atribuído a uma lenda segundo a qual Dom Rupert, famoso teólogo liégeois do século XII, pouco voltado aos estudos durante a juventude, teria sido abençoado pela Virgem, que permitiu que “seu espírito se desenvolvesse”.

Para terminar esta postagem (e tendo que suprimir muitas imagens lindas, para não me estender infinitamente), vão ainda estas duas, que me comoveram por sua semelhança com as esculturas populares nordestinas. Não é que elas têm um quê de mestre Noza? Ou melhor: em verdade histórica seria bem o contrário – mas em termos emotivos foi assim que estabeleci a conexão: do Ceará para o mundo, sempre. O sentido é esse.

séc. XIII

séc. XIII

De um relicário. Fotografada por trás de vitrine; perdão pela qualidade!

De um relicário. Fotografada por trás de vitrine; perdão pela má qualidade!

Mon seul désir

Continuando a postagem anterior, prossigo na tentativa de traduzir Paris através dos museus. Ainda no Louvre, visitei as obras medievais e deparei logo com a beleza da Bôite Reliure, caixa-livro da primeira metade do século XI, que a partir de 1677 continha a “fórmula do sermão dos duques de Brabant”, com filigranas, esmaltes carolíngios e os quatro evangelistas nos cantos – uma peça que merece longos momentos de contemplação.

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Também o Relicário do braço de Carlos Magno (Liège, 1165-1170) e o Relicário de São Francisco de Assis (ateliê de Limoges, c.1228), em forma de trevo, me fisgaram.

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A Idade Média se mostrava ainda em faianças e tapeçarias medievais. Estas últimas, em vermelhos e azuis pálidos, delineando-se em meio a tons terrosos para compor uns rostos crespos de lã, foram um ótimo prelúdio do que eu veria no Musée de Cluny. A famosa sequência dos tapetes da Dame à la licorne me arrebatou, como não poderia deixar de ser. Mas, se todas as atenções apontavam o tapete enigmático do sexto sentido, intitulado “Mon seul désir”, nem por isso deixei de passear longamente pelas outras salas, transportando-me às termas de Cluny (na época da Lutécia), olhando lápides do século XIII ou apreciando as esculturas antigas. O destaque vai para este capitel mostrando Daniel na cova com o leão (Paris, vers 1030-1040):

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E, embora as esculturas góticas (e as igrejas!) mereçam um espaço específico de comentários, por enquanto eu apenas atiço, com a beleza destas estátuas longuíssimas (ainda do Musée de Cluny):

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A Cesária o que é de Cesário

A CESÁRIA O QUE É DE CESÁRIO

Tércia Montenegro

26/12/2013

       Só agora, que já “assentei a poeira” desta última viagem, posso organizar as minhas impressões – tão boas e impactantes – da África. De uma parte dela, melhor dizendo: a parte talvez mais próxima de nós, pela língua, pela arquitetura colonial, pela culinária que herdamos dos portugueses. “Que Cabo Verde não amadureça!”: era o refrão dos amigos poetas, que (re)encontrei graças à Feira Mundial da Palavra. Num pequeno grupo bem humorado, exploramos as marcas de uma cultura ainda intacta – e não somente no passado luso que citei, mas em outros ricos indícios, de uma raiz bem mais remota. Os penteados e as roupas, com distinções tribais, a incrível destreza dos belos corpos negros, o artesanato (com as franjas dos panos de téra, a ressaltar os movimentos dos quadris), tudo era ensinamento ancestral.

            A paisagem às vezes parecia indecisa, entre a caatinga e a savana. No ônibus do time futebolístico Tubarões Azuis, fiz um passeio de reconhecimento. Na praia de São Tomé, divisei um cenário de descobrimento; a areia escura, de chão poroso como um bolo macio, abria-se para águas infinitas. Na Ponta Bicuda, diante da praia Mulher Branca, uma chapada exibia as fases geológicas do terreno, e alguns turistas aproveitaram para catar pozolanas, as rochas vulcânicas que assumem desenhos curiosos. Não desci à Cova de Lázaro, o famoso bandido que fez de certa gruta o seu refúgio – e não me arrependi. Disseram-me que havia ali ossadas de cães caídos por descuido.

          De outros locais, já mais perto do Plateau, estende-se costa de Santiago, em sua forma de ferradura. Do restaurante “O poeta”, visitei o farol de D. Maria Pia, dito “A ponta temerosa”, guardado pelo velho Malaquias e seu sobrinho, o atual faroleiro Jorge. Ambos eram de uma simpatia irresistível, daquela que nos constrange na hora de partir (porque afinal queríamos ficar, para um café e uma longa conversa sobre a vida). Ali, com o sabor do vento marítimo, senti palpitar minha aventura africana. Em frente, o ilhéu de Santa Maria sobressaía-se, e eu já tinha ouvido as pessoas murmurarem sobre o antigo leprosário. Imaginei fantasmas mutilados e tristes naquele gueto – e depois pensei nos três pescadores que se perderam, saídos para um dia de trabalho normal. Talvez tivessem ido em busca de atum, um dos peixes mais atrativos de Praia. Por algum motivo, escapou-lhes a rota, e ficaram sozinhos por 24 dias num barco de cinco metros, até aportarem em São Luís do Maranhão. Isso me contou o faroleiro, e lamentei não conhecer a costa maranhense, os ditos lençóis, e tanta coisa que ainda há por ver neste mundo.

Farol

            Vista do farol

        Mas pelo menos vou conhecendo o que consigo. Em Cabo Verde, visitei apenas (parcialmente) uma das ilhas do arquipélago. Para conhecer mais, precisaria de outras semanas: o acesso aos locais é lento, como o tempo tranquilo do povo. Não fui a Fogo, que era o meu grande interesse vulcânico – mas em compensação conheci a Cidade Velha, em Santiago. D. Rosalinda, a guardiã das chaves da igreja de Nossa Senhora do Rosário, transporta-nos a uma atmosfera medieval. O único ponto de ressalva foram os camelôs, insistentes em sua negociação. Eles estendem suas mercadorias na praça do Pelourinho e, quando eu quis comprar uma fruteira com peças miúdas, de madeira, subitamente me vi dentro de uma disputa entre dois senegalenses. Os vendedores me mostravam produtos semelhantes, mas cada um oferecia um preço menor do que o do outro, numa espécie de leilão ao contrário. Fui salva pelos amigos brasileiros.

            Ainda precisaria falar do mercado Sucupira, das mechas de cabelo à venda, para serem trançadas in loco. E dos alfaiates sorridentes, que preparam vestidos em meia hora. Precisaria abrir um espaço grande para o batuku, espetáculo de dança e canto que parece nos raptar para dentro de uma floresta, onde as mulheres se transformam em deusas fortes. Sim, é necessário voltar à África (não só fisicamente, mas com outros textos). Por enquanto, eu termino com a lembrança de Cesária Évora, enquanto ouço uma morna. Conduzida pelos nomes, lembro aquele poeta português, um dos meus preferidos, e de quem também se dizia para não amadurecer. Não é um despropósito fechar com seus versos, já que Cabo Verde tem – na sua genética de palavras e na própria história – um sabor de Portugal:

  “E evoco, então, as crônicas navais:

Mouros, baixeis, heróis, tudo ressuscitado!

Luta Camões no mar, salvando um livro, a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!”

(Cesário Verde)