Sophie e as muitas formas de narrar

Descobri Sophie Calle mais ou menos na época em que começava a conhecer a obra de Marina Abramović – e houve inclusive um momento em que confundi as duas: Marina perdendo o seu grande amor, Ulay, na Muralha da China; Sophie soltando no mundo artístico o fim de um relacionamento infame, com “Take care of you”… As produções de ambas se encontravam, pelo veio íntimo – embora Marina me parecesse mais consistente, com um projeto prévio. Sophie deixava as coisas muito ao acaso, e isso, embora não me desagradasse de todo, plantava a dúvida: até que ponto essa arte era válida, estética – as velhíssimas questões.

Aproveitei minha estada na Bélgica para investigar as bibliotecas, que têm vários livros de Calle – num cadastro oscilando entre a seção de fotografia e a de biografias. O resultado dessa pesquisa foi bem nítido: agora para mim, Sophie é uma escritora. Pouco importa o instrumento que ela escolhe para narrar; a grande marca condutora de suas ideias é sempre um fluxo de ação, com personagens, com histórias. Ela pode “disfarçar” seus projetos na forma de um diário de viagem que se mistura com entrevistas sobre a dor (em Douleur exquise – um dos mais belos livros sobre a condição humana que já vi), pode elaborar minicontos autobiográficos (em Des histoires vraies), pode desmascarar a percepção equívoca das pessoas, para contar a história de monumentos e pinturas desaparecidos (em Souvenirs de Berlin-Est, Disparitions e Fantômes).

Em todas essas edições, fica evidente um plano (se não no início – pois a ideia pode nascer de puro improviso – ao menos depois, na elaboração de um livro que é sempre um objeto artístico). Aqui, a editora Actes Sud, responsável pelos títulos que citei antes, e a Éditions Xavier Barral, que realizou Elle s’est appelée successivement Rachel, Monique… tiveram um impacto decisivo na criação da obra. O cuidado com a qualidade do papel, a textura das impressões fotográficas, a escolha das fontes… cada detalhe mostra muitas outras pessoas, preparadores, capistas, todo um ateliê gráfico envolvido de maneira indispensável.

Um livro como este último, por exemplo, poderia resvalar pelo sentimentalismo com facilidade; afinal, foi concebido a partir de diários e fotografias da mãe de Sophie Calle, além dos registros de instalações e performances feitas após a morte dela. Mas o volume em si é um primor, com o título em letras bordadas, as fotos simulando a pátina do tempo. E, óbvio, Sophie sabe construir a narração: vai espargindo a existência de sua mãe em idas e vindas que têm datas ou temas como pretextos. Um simples carimbo, “Ce livre a été volé à Monique Sindler”, que aparece a determinada altura como um acessório, uma marca irônica que se costuma fixar nos pertences para preservá-los, retorna à última página do livro, a do colofão – um local aonde muitos leitores não chegam. Mas quem ali estiver, no fim do trajeto entende a mensagem: este livro foi “roubado” de Monique Sindler, foi o que a mãe de Sophie nunca escreveu.

Da mesma forma, a palavra salva um outro projeto, que sempre me pareceu lindo na ideia, mas nem tanto na execução. Voir la mer surge como uma sequência de vídeos em que Sophie filma pessoas que, em Istambul, nunca viram o mar. Quando encontrei esta obra como parte de uma exposição no Bozar, em Bruxelas, vacilei com o terror do pieguismo. As pessoas olhavam o mar, filmadas de costas para a câmera, e depois eram instruídas a se virar, para que Sophie pudesse fazer um registro dos “olhos que tinham acabado de ver o mar pela primeira vez”. A câmera dissecava o olhar das pessoas, que iam ficando mais constrangidas que emocionadas com o momento. Pois o livro, realizado após os vídeos, não me prometia grande novidade – além da beleza plástica, com a ótima qualidade das imagens e o papel-manteiga azul alternando com as páginas em que havia fotos. Mas então, no final do volume, veio o texto redentor – disfarçado dentro uma lista tão entediante quanto os vídeos. Sophie anota:

“A mulher com o bebê olhou o mar por 3 minutos e 26 segundos.

O homem profundo olhou o mar por 2 minutos e 13 segundos.

A mulher 738 olhou o mar por 1 minuto e 49 segundos.”

E vai assim por mais 8 linhas, durante as quais a gente se pergunta que raio de estilo antropológico é esse, e por que seria interessante um cronômetro a medir a contemplação dessa gente. Mas aí se chega à frase final, a maior de todas, onde Sophie prova que conhece tudo o que uma escritora deve saber:

“As crianças olharam o mar por mais ou menos 1 minuto e 30 segundos e depois correram na direção dele.”

 Com esses meninos apressados e desobedientes, correndo para o mar que conheciam há apenas um minuto e meio, retomamos o prazer de se lançar no que é imenso. E de todas as formas de narrar, a espontaneidade de correr riscos – como tão bem faz Sophie – talvez seja a mais intensa.

 

Tércia Montenegro (crônica publicada também hoje no blog da Companhia das Letras)

2 pensamentos sobre “Sophie e as muitas formas de narrar

  1. Tércia, você analisa com estilo e reflexão sobre a arte de narrar em Calle. Prende a atenção do leitor da primeira a última linha. Parabéns!
    Abraço!

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