(Per)formar histórias

 

             Numa época em que as fronteiras artísticas se fazem tênues, o trabalho de Paulo Montserrat surge como um dos melhores exemplos da necessidade de categorias flexíveis para absorver uma obra. Este cearense, atualmente vivendo em residência criativa no Estado de Minas Gerais, circula entre experimentos que envolvem performance, intervenção urbana, fotografia e instalações – mas o eixo de tudo é a capacidade de inspirar relatos. Nesse sentido, Montserrat considera-se um escritor conceitual, que articula ideias muito mais do que palavras.

            São várias as tentativas de autodefinição deste artista, aliás. Desde que largou um burocrático emprego num banco, aos 28 anos de idade, tomou a decisão de “jamais abandonar a inquietude”. Com tendências nômades e nem um pouco interessado em visibilidade (praticamente não se conhece o seu rosto e ele não frequenta qualquer rede de socialização virtual), Montserrat afirma, na única entrevista que concedeu, meses atrás, que o seu esforço é criativo, não comercial. Ele não está interessado em vender a própria imagem, falar publicamente de si, de suas rotinas ou opiniões. O tumulto do autoconhecimento envolve somente o próprio indivíduo; o que se entrega a uma plateia é a construção ficcional.

            Diante disso, convém desconfiar de suas afirmações, como quando, por exemplo, ele assume que se tornou “um atleta espiritual” e o seu grande anseio é continuar, em termos místicos, a experiência geodésica de Buckminster Fuller. Para alcançar o ponto em que poderia se caracterizar como um “surfista sufista”, Montserrat circula por inúmeros interesses: a arte é uma espécie de condensação para tudo.

            Sua visibilidade começou em 2011, com o projeto “Alívio cômico” – um início de carreira que provocou reflexões, protestos e constrangimentos. Materializada através de falsos anúncios publicados num importante jornal cearense, a proposta investigava as reações do público. Conforme os leitores reagissem, telefonando para os números de celular adquiridos para esta finalidade, Montserrat fazia um “levantamento da perspicácia”, observando quantas pessoas compreenderam o ludíbrio, em oposição àquelas que acreditaram nos pseudoanúncios. Claro que estabelecer a distinção não era fácil, sobretudo porque os textos do projeto circularam misturados aos outros, reais, na múltipla seção dos classificados. Não havia nada que os distinguisse, nenhuma letra diferente ou moldura especial. Somente a informação seria capaz de despertar a suspeita de que aquilo fosse mesmo um “alívio cômico”, em meio a avisos sobre vendas, aluguéis e profissões.

         Assim, por exemplo, na seção dedicada aos profissionais, encontravam-se coisas do tipo: “PROCURA-SE ENGENHEIRO. Centro de Estudos Espaciais contrata engenheiro de crateras lunares. Deve ser poliglota e telepata”. E houve quem se candidatasse… Outro anúncio era de uma suposta desempregada oferecendo seus talentos: “Ventríloqua de peixes, com grande experiência em circo e festinhas infantis. Também realiza dublagens e faz cover da Amy Winehouse”. Várias ligações telefônicas comprovaram o desejo do mercado. Em compensação, o anúncio da massagista que se dizia “especialista em genitálias e joelhos, com larga experiência em mutilados de guerra” recebeu apenas a ligação de um estrangeiro (com forte sotaque), que perguntava se a tal moça por acaso não tinha nascido no Vietnã.

           Montserrat concluiu que os anúncios de teor mórbido quase não atingem o efeito de humor, ao passo que os exóticos ou simplesmente bizarros têm alta adesão. Senão, como explicar o recorde de 32 chamadas em um único dia, para responder ao anúncio erótico de uma suposta russa que prometia: “Faço sexo oral enquanto recito Maiakósvki na língua de sinais”? Esta marca quase empatou com um anúncio de procura para “ufólogo profissional ou amador, com pelo menos três relatos comprovados de contato sideral. Abdução imediata”. 29 pessoas telefonaram, dispostas a viajar para bem longe deste nosso planeta cruel. Ganharam, ao menos, uma pausa para o espanto e a risada.

          O projeto “Alívio cômico” inspirava-se – sempre conforme a entrevista mencionada – nos microrrelatos embrionários de Cortázar, um “fabular sem historiar que permite uma fuga por estados narrativos anteriores à clausura dos gêneros textuais”. Assim, seu vínculo se estabelecia com o absurdo e o aleatório, o fabuloso e o fantasmático. Este foi caminho novamente adotado em 2013, quando Montserrat concebeu a série “Mensagens do além”, realizada durante uma estada em São Paulo.

           Espalhando bilhetes como pistas falsas, o artista se propôs a “injetar uma dose de ficção e verdade na existência alheia” – embora jamais se possa constatar em que medida, pois o anonimato dos destinatários foi uma premissa do projeto. Num percurso por livrarias, Paulo enfiou dentro de livros esotéricos papeizinhos contendo a frase “A cabra comeu a cobra: às vezes os fracos vencem”. Em paradas de ônibus, esqueceu envelopes com as frases: “O seu atual relacionamento não lhe convém” ou “Você precisa fazer a mudança que há tanto tempo planejou”.

            Cada uma dessas performances mostra a potencialidade narrativa por trás de um simples gesto. No final de 2015, influenciado pela proposta de Miranda July, Montserrat experimentou um novo ciclo de anúncios. Mas, ao contrário da escritora, que seguiu o curso do acaso ao contatar os anunciantes de um jornal e coletar suas histórias para o livro O escolhido foi você, o cearense voltou à postura de ele mesmo criar situações extravagantes – esperando apenas, do público, uma reação bem-humorada. Na série “Procura-se”, realizada na capital mineira, foram afixadas em locais públicos fotos de pseudodesaparecidos, com o pedido desesperado de informações. O detalhe é que todas as imagens mostravam rostos de escritores famosos sob nomes falsos; houve certo tratamento na qualidade do papel, para instilar um disfarce mínimo nas fisionomias – entretanto, segundo Montserrat, cada autor estava “profundamente reconhecível”.

           Devido ao alto grau de familiaridade dos rostos – conhecidos desde os livros escolares por muita gente –, ou talvez ainda por causa de um parentesco que carimbe os indivíduos com feições parecidas naquela região do país, Montserrat recolheu o impressionante resultado de 142 contatos feitos, dando conta de pessoas que identificaram Guimarães Rosa e Fernando Sabino em vizinhos, parentes distantes ou transeuntes com os quais costumavam topar num cruzamento da avenida Afonso Pena. Adélia Prado foi reconhecida como uma antiga professora por 8 pessoas, e mais três asseguraram que ela podia ser encontrada num supermercado da rua da Bahia, fazendo compras sempre aos sábados pela manhã. Paulo Mendes Campos, numa foto de juventude, foi apontado como um segurança da boate Madeireira, como um comerciante de pão de queijo na rua dos Andradas ou como o funcionário de uma corretora de imóveis.

            Para os próximos anos, Montserrat promete mais incursões, (per)formando narrativas pelo país. Fiquemos atentos!

 

Tércia Montenegro (da coluna Tudo é narrativa, publicada no jornal Rascunho)

 

 

Reviajar – Ghent

Há exatamente um ano, eu partia do Brasil para viver um semestre em pesquisa de pós-doc, na Bélgica. Essa experiência, que eu previa rica em termos intelectuais e artísticos, acabou se revelando muito mais profunda no quesito pessoal. Foi um momento de virada, posso dizer: mas não é que me transformei – acho que aprendi a me conhecer com um tipo de consciência que apenas o isolamento e as diferenças culturais permitem ativar. Apesar disso, ainda não me dei conta de todos os níveis de observação que atingi durante e depois dessa viagem: em várias ocasiões me pego refletindo sobre os contrastes entre o que vejo agora aqui, em Fortaleza, no meu hábito, e o que vi lá.

Precisei de outro semestre inteiro de repouso dentro de uma rotina para me decidir a resgatar as fotos que fiz na Bélgica, os passeios, as anotações, os catálogos de museus que trouxe, as ideias. Tudo isso se transforma em matéria-prima para um novo romance – e, para além disso, é uma forma de maturar os efeitos. Já se instalou uma distância, um tempo irreversível: posso usar esse caminho para fazer um retorno imaginário. Você, leitor(a) deste blog, sinta-se convidado(a) a me acompanhar nesta série de postagens, que não terão uma periodicidade fixa – mas devem acabar apenas quando se esgotarem os temas relativos a essa estada. Assim, à medida que reviajo por situações e paisagens, elejo o que de mais importante ficou. Se a lembrança resistiu até aqui, creio, é porque merece o espaço, as palavras.

Começo o ciclo pelo finalzinho. Em dezembro de 2015 eu estava em Ghent, num dia de passeio com amigos (também estrangeiros e pesquisadores na Université de Liège). O grande objetivo nessa cidade belga era – claro – o Retábulo do Cordeiro Místico. A obra-prima de van Eyck está na catedral de Saint Bavo, e, sendo completamente sincera, a catedral me emocionou bem mais que o quadro. Entrar numa sala cheia de turistas para contemplar uma obra imensa por trás de um espesso de vidro de segurança nunca provoca perfeitas epifanias… mas a questão não era apenas essa. Se o(a) leitor(a) visita, por exemplo, um site que traga boas reproduções do retábulo (aproveito para indicar um aqui),  consegue perceber detalhes que, ao vivo, são até mais difíceis de notar, pelas dimensões da obra e pela posição que o espectador é obrigado a assumir. Não é o mesmo que encontrar um Vermeer ou um Rembrandt no Rjiskmuseum, por exemplo: aí, sim, a gente percebe que a visita foi um privilégio extremo, porque aquelas cores são tão diferentes de qualquer reprodução em livro, e a textura da tela, com suas ranhuras, suas crepitações, suas espessuras de tinta, tudo nos conjuga tanto com o gesto criador do quadro, que não há substituto possível para a experiência.

A catedral de Saint Bavo, porém, trouxe-me – na sua cripta – a beleza de afrescos do século X. A arte medieval sempre me põe emocionada, e ainda mais quando se apresenta assim, desgastada, incompleta – uma sugestão do esplendor ingênuo que um dia teve:

afresco1 (1)

afresco1 (2)

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A visita ao Castelo de Gravensteen também foi um anticlímax. Não chego a me arrepender, porque, afinal, eu precisava conhecer o único castelo medieval preservado na região de Flandres. Mas foi ver um exemplar dessa arquitetura para servir de lição, e acho que pelo resto da vida não vou querer de novo entrar em calabouços, masmorras ou câmaras de tortura.

em Ghent

Finalmente, para concluir o passeio da maneira mais bela possível, Ghent com sua iluminação noturna trouxe o melhor espetáculo: um jogo de volumes, reflexos e sombras que faz a gente ter vontade de apenas caminhar – como se caminhasse dentro de uma obra de arte.

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