Paradisus, do Helle

No princípio, era o Paraíso. O mito, a ficção, o mundo vegetal perfeito. Sérgio Helle em sua nova série nos leva a esse regresso de êxtases. Mas aqui o paraíso está cheio de mudanças acontecendo. Cada tela mostra uma transformação da natureza – com a presença da morte também. Ora, introduzir a morte no paraíso é um grande risco; ela vem sempre como sinal de dor, castigo ou sofrimento nas interpretações convencionais. Entretanto a arte, em seu propósito mais vigoroso, busca romper com o previsível. No Paradisus de Helle a finitude surge bela e tranquila.

A morte nas folhas acontece de modo limpo, delicado e poético – não há nada grotesco nessa existência que desaparece pela gradual mudança de cor, pela água que se evapora e deixa um corpo crepitante, quebradiço, esfarelável. Não há cheiros pestilentos, miasmas nocivos: no mundo vegetal o fim encontra sua expressão menos agressiva. A natureza se torna generosa com os seres imóveis; talvez sua decrepitude seja indolor. Eu lembro quando, criança, me disseram que as folhas caíam das árvores como os cabelos caem espontaneamente de uma cabeça – não eram membros amputados, como eu pensava, num horror infantil; os galhos, sim, seriam membros, braços. Mas as folhas pareciam com os cabelos. As árvores carecas do sertão seriam idosos sob um sol inclemente, mas idosos encantados, capazes de surgir com suas cabeleiras verdes e esplêndidas na outra estação.

Diferentes comparações me vieram depois. As folhas eram os pulmões, o respiradouro das árvores, o seu fôlego na forma de pelagem. Ou seriam também os seus olhos, observando e criando paisagens. Eu gostava de pensar nessa ideia de criaturas com múltiplas visadas, com tantos olhos quanto uma centopeia teria patas. E, além do privilégio de ver tudo por todos os ângulos, elas teriam a capacidade de enviar um daqueles órgãos a passeio. Vinha um vento e… puft! Lá ia um olho velejando no ar, viajando de um jeito que a própria árvore jamais poderia, tão infelizmente presa vivia.

Eu tinha pena das plantas, grudadas pelo tronco. Achava que estavam sob feitiço, sofrendo como alguém eternamente condenado ao jogo da estátua. Mas então certa vez encontrei uma árvore caída, arrancada por um temporal. Eu vi suas vísceras como ela tivesse morrido num bombardeio – e entendi. As pernas das árvores são o solo inteiro. Elas se movimentam por dentro, enquanto os outros seres andam por cima. E ainda há as folhas, mensageiras. Não pode haver indivíduo mais livre.

Sérgio Helle celebra a liberdade vegetal, a sua predisposição paradisíaca. Sua arte nos carrega por um pensamento espiralado, à medida que fitamos estas plantas assumindo curvas, torneios. Cada quadro sugere uma tapeçaria, dessas que antigamente retratavam motivos sagrados. É o éden em sua autenticidade: com silêncio e delicadezas, com tantas texturas e temperaturas que, se pudéssemos entrar num único desses ambientes, teríamos a experiência de um banho sensorial.

Há uma espécie de art nouveau essencial aqui. Sobretudo com o torém, a árvore da preguiça, com folhas que parecem mesmo se enrolar, procurar o feitio de conchas, a postura fetal.

Algumas telas passam uma impressão antiga, clássica. É como se descobríssemos um raro camafeu, ampliado. Ou o balé parado nas tramas de uma renda. Coisas que sobrevivem discretas neste contemporâneo high tech, que prega o asséptico mas ignora o aconchego. No entanto, enquanto não nos tornarmos serem completamente metálicos, com chips aderidos ao cérebro e computadores na corrente sanguínea, seremos propensos ao conforto da natureza. É isso, principalmente, o que Sérgio Helle nos lembra.

A arte pode ser um tipo de paraíso, inclusive. A criação restaura um senso do divino – embora sem associações religiosas, nada de inspiração sobrenatural ou leis do espírito. Refiro-me apenas à liturgia íntima do fazer artístico: seus procedimentos, rituais de nascimento. Toda obra passa por isso, um mínimo de bênção luminosa, por assim dizer. E esse facho de êxtase envolve muitas vezes um processo infernal. O artista – até que atinja o que almeja – pode se atormentar, penar em dúvidas, experiências confusas.

Aliás, o trabalho artístico, como qualquer outro, tem o seu lado de sacrifício. Ainda levamos entranhada a crença bíblica da expulsão, com seu castigo: chega de bem-bom, vida contemplativa, colhendo os frutos permitidos e perenes. Tudo ganha esse amargor obrigatório a partir da sentença: necessário trabalhar para o próprio sustento. Mas o artista – se tem a finança como a parte mais problemática do ofício (basta ver a relação flutuante que a arte trava com pagamentos, cachês, vendas) – talvez seja o profissional mais felizardo em sua rotina. Porque, inquestionavelmente, trabalha criando. Acrescentando coisas ao mundo. Crescendo.

A trajetória de Sérgio Helle mostra como o seu processo começa de modo sempre mágico: um estalo de imagem, que desencadeia uma série de atrações visuais. Com “Dobras moles”, foi uma camisa listrada jogada no chão do banheiro; em “Acqua”, a percepção da lente da água transformando os tecidos; em “Fragmenta”, a possibilidade de unir os resquícios de trabalhos anteriores, à maneira de um mosaico, com a chance de partir para a abstração e uma reflexão sobre a desmontagem e montagem de infogravuras, um make in off do fazer criativo.

Para esta nova série, talvez ele já se preparasse desde o arquivo de figuras que montou na infância, catalogando suas referências e construindo um paraíso particular. A importância da estética sobressai, o agradável à vista é crucial. O artista se transforma num arqueólogo vegetal, interessado em reviver a planta, ressuscitar o fóssil.

Mas este paraíso não tem qualquer sintoma de imobilidade eterna. Longe de ser um espaço onde o mundo congela, os quadros de Sérgio Helle nos convidam a uma experiência vibrante, por dentro das folhas: suas rugosidades crepitantes, seus tons múltiplos revividos. O sagrado da natureza transborda – e nos convida a um retorno às origens.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Diário do Nordeste)

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A vida que há nas pedras

Assistindo a uma série documental sobre o império romano, sofro aquele assombro óbvio diante das proezas antigas – não as proezas bélicas, porque a meu ver elas não podem ser consideradas assim; são na verdade insanidades, desperdícios de vida. Mas o admirável está em todo o resto: a moda, o mobiliário, as joias, a arquitetura. Toda a disciplina absurda que foi necessária para construir cidades e rotinas, organizações implacáveis. E, dentre os artifícios e artefatos, algumas peças especialmente me sensibilizam. É por elas que visito os museus arqueológicos.

Há um mês, em Taranto, quando achava que depois dos museus mexicanos (vistos alguns anos atrás) eu já não me espantaria mais diante de lâminas, espelhos velhíssimos, pontas de lanças ou cacos de cerâmica e urnas funerárias, tive o encanto de voltar a esse passado. Um passado que não é especificamente meu – e justamente por isso seduz e assusta, filosoficamente lembrando como a humanidade estava no mundo e continuará (?) nele, extravasando os limites individuais. De maneira específica, as esculturas me atraem. Elas dão vida à pedra – ou melhor, lembram que há uma vida também nelas. Basta saber olhar para perceber sua identidade única: o polido, as cores, os reflexos, os formatos. Cada pedra em si é uma joia e conta uma história, no momento em passa pelas mãos de alguém. Colher pedras – um gesto simples, mas tão raro, que os sensíveis compreendem.

A verdade flutuante

Tive um desconforto, alguns meses atrás, quando tentava organizar minha biblioteca. Coloquei bem próximos Natalia e Carlo Guinzburg: havia motivos alfabéticos, familiares e nacionais para isso. Mas eu não podia deixar de pensar que a vigilância de Carlo, sua obcecada perseguição por uma fidelidade histórica entrava em descompasso com os livros de sua mãe, reconhecida ficcionista. Eu poderia me contentar com mais um curioso caso de um filho que segue caminho contrário ao dos pais para afirmar a própria identidade – mas não achei que a coisa fosse tão simples.

Existe, afinal, algum tipo de ficção que assombra o relato histórico de maneira inerente mesmo, constitutiva? Será totalmente utópico pensar num relato que não contenha qualquer forma de invenção? Parti para uma pesquisa que aplacasse minhas dúvidas.

Conversei com profissionais da área, informalmente. E busquei não só historiadores, mas também jornalistas. Dizem que o Jornalismo é o rascunho da História – e, óbvio, há aspectos similares no método investigativo, no tratamento dado ao fato. Mas (agora eu me inquietava) se quisermos considerar um texto que seja o contrário da ficção, qual seria o mais propenso para isso – o histórico ou o jornalístico? Cada pessoa me dava argumentos distintos, indicava referências, emprestava livros.

O próprio Guinzburg, em obra sobre Piero della Francesca, discute como a verdade pode ser flutuante. Ela envolve um processo de adesão, confiabilidade. É um pacto que depende de várias circunstâncias – mas, para o profissional, deve estar na mira de uma disciplina implacável.

Enquanto historiador, Guinzburg eriça-se diante de “séries cronológicas relativas”, que são aquelas indicadas pelos métodos estilísticos. Critica severamente Roberto Longui, atribuindo-lhe “implicações divinatórias” na sua atividade de conhecedor, sobretudo por utilizar múltiplas séries documentais – estilo, biografia, molduras, iconografia etc – para resolver dilemas na datação de uma obra – no caso, a Flagelação de Piero della Francesca.

Considerando que “mesmo o calendário é coisa arredia às vezes”, o filho da romancista observa que todo elemento iconográfico é polivalente: “Como saber se, num determinado quadro, uma ovelha, por exemplo, representa Cristo e a mansidão ou apenas uma ovelha?” Às vezes a verdade é improvável, e somente pelo contexto pode ser resgatada. Guinzburg se entrega à extrema modernidade da Flagelação de Piero, que coloca em primeiro plano três personagens misteriosos (cujas identidades provocaram inúmeros debates), numa espécie de desinteresse pelo tema principal. Aproveita para lembrar os também profundamente modernos retratos de Frederico da Montefeltro e sua esposa, Battista Sforza: seus perfis foram prenúncios importantes para o cubismo (e ao ler sobre isso entendi porque a visão destes pequenos quadros na galeria Uffizi, muitos anos atrás, provocou dubiedades em mim).

Didi-Huberman, por sua vez, questiona a certeza do historiador, proclamando um olhar sobre o não-saber, um olhar fenomenológico, experiência sensitiva que – ressalta – é “o mais belo risco da ficção”. No seu livro Diante da imagem, a análise de um trecho branco de muro num afresco de Fra Angelico é semelhante ao impacto que Proust sente diante de Vermeer: Didi-Huberman, a propósito, também tem um trabalho sobre este pintor. A sua análise, junto com o livro de Daniel Arasse, L’ambition de Vermeer, são obras-primas interpretativas. Aliás, Arasse em outros lugares igualmente se debruça sobre Fra Angelico e della Francesca – o que me põe novamente inquieta, agora em busca de possíveis nexos entre os artistas (e os pesquisadores). Mas isso é assunto futuro. Por enquanto, tento circular a ideia inicial. Didi-Huberman afirma que o passado está ligado ao impossível, ao impensável – o seu resgate, portanto, envolve a ilusão “de que o discurso mais exato é necessariamente o mais verdadeiro”. Guinzburg também chegou a comentar que “os mesmos ingredientes, cozidos em molhos hermenêuticos diferentes, resultam em pratos de sabores no mínimo diversos”. Portanto, a tal verdade sobre um fato seria sempre utópica – ou relativa?

Por mais que aceitemos esse deslizamento, não creio que a completa confusão de fronteiras aconteça, até agora. Todo artista oscila ou ocasionalmente mergulha em águas históricas, factuais – mas não se obriga ao testemunho ou ao documento (um tipo de “voz verídica”). O seu pacto com o público é outro: a construção do imaginário. O inventado, o falso e a farsa terão sempre a potência das possibilidades – jamais o fechamento de um ato consumado.

Existe, entretanto, um alerta no parágrafo acima: pensamos na situação até agora. Imagino os historiadores daqui a um século, as dificuldades que terão para se debruçar sobre nossa época, tão farta de notícias e documentos, sim – mas quais destes serão fake news? Com o surgimento de uma sofisticada tecnologia de adulteração da realidade, capaz de manipular áudios e vídeos, o phishing via laser parece abrir caminho para o chamado “Infocalypse”. Nessa altura, a inteligência artificial poderá mudar bastante a maneira como recebemos os fatos. A verdade por enquanto é flutuante – mas haverá um dia em que ela será engolida pela correnteza? No futuro, tudo será ficção? Quem sabe?

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho. Pode ser lido também aqui)

 

Viagem de salvação – parte 3

Lecce foi aquela cidade em que a recepcionista do hotel nos perguntou, espantada: “Por que vocês haveriam de sair agora à tarde?” Nós precisávamos almoçar, já com um certo atraso – mas de fato a ideia de andar sob o calor parecia não ocorrer a mais ninguém: todo o centro histórico estava deserto, passando uma sensação de abandono e sordidez que acende alertas de perigo. Horas depois, com apetite para jantar, o cenário estava completamente transformado. Intenso burburinho nas lojas, vida boêmia e familiar se entrecruzando nas ruas. Lecce foi onde pude ver a emocionante exposição do Elliott Erwitt – foi onde entrei em magníficas igrejas, onde contemplei um anfiteatro clássico.

Lecce – Chiesa del Gesù

No dia seguinte, tivemos um almoço em Ostuni (que também ostentava uma mostra do Picasso – mas dessa vez estávamos vacinados), e o restaurante era um charmoso local cavado na rocha. A parte culinária da viagem se tornava uma sensação à parte: para além das excelentes massas, dos inesquecíveis primitivi, havia os pães, os queijos e os quitutes. Ainda suspiro quando penso nos taralli, nos paticciotti… uma lástima que não se possa carregar um sabor como se faz com um artesanato ou uma fotografia!

Ostuni

Tomamos a estrada ladeada por antigos olivais – e dessa vez rumo à nossa última parada. Polignano a mare suplica por uma entrega poética: não há outra forma de entrar nessa cidade. A famosa Lama Monachile é de uma beleza tão profunda que, se não houvesse o bulício das multidões por perto, se alguém pudesse caminhar como antigamente se fazia, com silêncio e suspensão – seria uma experiência quase insuportável. Seria o inconcebível, como olhar direto nos olhos de Deus.

Polignano a mare

Talvez se possa dizer o mesmo de outros lugares (ou de qualquer lugar, se repararmos bem). Mas quando é que estamos em condições ideais de contemplação? Veneza, por exemplo: voltei para lá, por mais dois dias antes de pegar o voo de volta. É um local impossível, de tão mágico. Se não fosse exaurido o tempo inteiro pelas pessoas, pelo ruído em tantos idiomas simultâneos, também seria perfeito para uma viagem mística.

Il tramonto (Venezia)

Mas é verdade que o exercício espiritual pode ser tentado em qualquer parte. No avião de retorno (enquanto a França se tornava campeã na copa, para o festejo geral dos comissários) eu assistia a um documentário sobre os Rapanui e desejava ir para a ilha de Páscoa. Ou para Galápagos. Ou então (mais viável?), Patagônia. A ânsia pelo mundo não se acaba – mas, por enquanto, espero que um casal de pássaros aceite morar na minha varanda. Acompanhar o movimento deles tem sido igualmente um modo de voar.