Metaforizar

Benjamin Moser, em sua recente biografia de Susan Sontag, indica – como um dos eixos obsessivos da trajetória desta pensadora – a permanente reflexão sobre a metáfora. Logo no início do livro, assinalo a seguinte passagem: “Para Sontag, a realidade – a coisa real, despida de metáfora – nunca foi de todo aceitável. Desde muito jovem, ela soube que a realidade era frustrantemente cruel, algo a ser evitado” (Companhia das Letras, 2019, p.22)

Não somente dois ensaios de Sontag, “Aids como metáfora” e “Doença como metáfora”, parecem confirmar a predileção da autora para se debruçar sobre o assunto. Nos seus volumes a respeito da arte fotográfica, Sobre fotografia e Diante da dor dos outros, ela reforça este aspecto: a fotografia não se confunde com a realidade. É sempre um processo representativo, metafórico – uma interpretação do mundo, jamais o mundo em si.

Em minhas aulas na Universidade Federal do Ceará, esse tipo de debate se instala de modo fácil, sobretudo nos estudos linguísticos e semióticos. A metaforização é um processo inevitável, porque a própria linguagem nos afasta do empírico, molda um simulacro, um substituto onde tantas vezes mergulha a maior parte da nossa vida, quando não a totalidade.

Podemos não fazer reflexões tão conscientes quanto as que Susan Sontag pôs em seus livros, mas para todos nós, humanos, metaforizar também se torna um procedimento crucial.

A ânsia pelo conforto simbólico nos faz rejeitar situações em que o corpo surge enquanto mero pedaço de carne, organicamente funcional, com seus ciclos, excreções, apetites etc. Criamos estratégias de erotização – transformação simbólica – para travestir nossos impulsos “animalescos”. Comer ou beber, por exemplo, passam a ser atos sociais, ritualísticos até. O sexo se reveste de sentimento amoroso (uma invenção cultural, alguns dizem), a procriação e a morte ganham interpretações sublimes ou religiosas (de novo, a cultura). Estipulamos pudores ao comportamento, escondemos o biológico de que somos feitos.

Acreditamos que a vida seria grotescamente insuportável, sem esses mecanismos de deriva.

Quase todos os seres humanos realizam transferências simbólicas (as exceções são conhecidas dos psicólogos); portanto, esse processo não é exclusivo das artes. Mas é claro que há uma grande diferença entre metáforas cotidianas, clichês desgastados que apenas reforçam hábitos mentais, e o tipo de golpe flamejante que encontramos na boa literatura, digamos.

Exatamente por ser inesperado, o gesto artístico nunca se reduz a imitações ou formulazinhas. Satisfaz – e depois escapa. Como a própria existência, aliás.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

 

UM HIPPIE TECNO

O músico e artista plástico David Byrne, no seu Diários de bicicleta (que foi uma viagem possível – e extremamente agradável – nesta quarentena), aborda inúmeros assuntos. Sob a proposta de compilar vivências em diversos países, através de turismo ou turnês, quando Byrne sempre encontra um modo de pedalar, seja em Manila ou Istambul, Salvador ou Berlim, o livro faz um percurso reflexivo variado. De questões urbanas e culturais a perspectivas históricas, artísticas e filosóficas, aprendemos a cada página. Eu poderia citar aqui muitos temas, mapeando os capítulos de Byrne – mas elejo um, em alerta sobretudo graças ao momento atual.

Ao tratar sobre a região do Vale do Silício, em São Francisco (EUA), o autor estabelece certo conceito à primeira vista estranho: o de um hippie tecno. Conforme sua percepção, os “jovens ponto-com” tinham, assim como a geração paz-e-amor, um interesse revolucionário em fazer algo que unisse todas as pessoas. “O livre-para-todos da blogosfera e a loucura total das coisas que as pessoas postam on line compartilham uma bela sensação de tanto faz. A sensação de liberdade anárquica permanece”, assinala.

Ora, essas podem ter sido iguais motivações de base, mas é inegável que a utopia nerd dos anos 1970 se transformou num meganegócio que apenas finge promover as possibilidades humanas livremente – na verdade, paga-se caro pelo acesso a informações, mídias, plataformas de reuniões remotas etc (não estou falando só no preço dos planos de internet, vocês me entendem). Com a pandemia de 2020, a vida virtual saiu favorecida: ainda mais pessoas agora devem pensar que presenças e paisagens reais são dispensáveis ou substituíveis.

Essa, acredito, é justamente a crença contrária à de um hippie.

Um hippie não prioriza alternativas práticas, “confortáveis” – especialmente se elas implicam em vigilância, monitoramento das atitudes.

O próprio Byrne comenta que, quando chegou a São Francisco na época da juventude, sentiu-se atraído pela visão hippie-eco-tech… mas acabou vagando com um amigo pelas ruas de Berkeley, tocando violino e ukulele. Entretanto, o estilo Woodstock terminou há tempo, alguém poderia dizer. Hoje os andarilhos utilizam GPS, os nômades já não são criaturas secretas… Concordo, porém imagino que uma nova tendência virá – um retorno ao rústico, pelo abuso total da tecnologia.

Depois de nos obrigarem a usar tantas máquinas e conexões artificiais, e nos forçarem a manipular softwares para tudo, chegaremos um dia à exaustão revoltosa. Faremos um gesto que nem precisa ser grandioso – e, claro, não será divulgado no instagram. Simplesmente deixaremos o celular, a câmera, o carro, até mesmo as roupas, à beira de uma praia naturista. De lá sairemos com um tipo de sabedoria. Inigualável. Intraduzível. O trampolim da aventura.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

A memória da dor

Nesta parte final de nosso estudo sobre Lygia Fagundes Telles, trataremos de alguns de seus textos de cunho memorialístico, nos quais a autora revela os componentes de regra e também de mistério, que estão presentes no seu ato de narrar. Sem a técnica, um(a) artista não passa de alguém que improvisa de modo mais ou menos afortunado; por outro lado, sem a emoção, a verdadeira essência da arte lhe escapa – por isso, o equilíbrio entre estes elementos é tão importante.

Já percebemos uma discussão deste tema metaforizada no conto “A estrutura da bolha de sabão” – mas, antes que passemos à análise desta história, vamos recuperar sua origem. No texto “Bola de sabão”, presente no livro Conspiração de nuvens, encontramos a ideia da criação deste conto. Lygia explica como foi relacionando a memória com a ficção, dentro de um aprendizado infantil que também requer disciplina:

Então cerrei os olhos e como num sonho me vieram as lembranças das chácaras e quintais da minha meninice onde soprava as bolhas de sabão: enchia a caneca com sabão dissolvido na água, colhia o mais fino canudo do mamoeiro e sentada debaixo da mangueira ficava soprando as minhas bolhas. Bolas de sabão e não bolhas, alguém me alertou. Está certo, bolas, ah! como eram belas essas bolas coloridas que se desprendiam do canudo e iam subindo redondas e transparentes na mais delicada das mágicas. Película e oco. Era uma operação que exigia cuidado porque com o sopro forte a bola estourava no meu queixo. O sopro fraco também não funcionava porque assim elas nasciam tímidas e antes mesmo de se desprenderem desfaziam-se em espuma. Era preciso paciência até descobrir o sopro exato para que subissem gloriosas refletindo o verde da folhagem e o azul do céu… (TELLES, 2007, pp.22-3).

Mais adiante, a escritora ressalta que a bola de sabão era a própria “imagem do amor”, o que nos leva ao famoso título A disciplina do amor, reiterando a ideia de que o sentimento – bem como o trabalho artístico – parece requerer uma medida certa, para vibrar da melhor maneira.

Mas também pensamos no título da coletânea Conspiração de nuvens, pela associação entre bolas de sabão e nuvens, ambas efêmeras e voláteis. No conto “Anão de jardim”, integrante do livro A noite escura e mais eu, já observamos a perspectiva da alma como um “feixe de memórias”. Ora, há vários livros de Lygia que se enquadram nesta categoria de coleção memorialística – e, da mesma forma com que a recordação é um elemento imponderável (como a nuvem – ainda que reunida em coletividade, conspirando), igualmente podemos pensar na criação estética.

Muitos destes textos de memórias da autora são metalinguísticos, debruçam-se sobre o ofício da escrita, até mesmo como parte indissociável do universo biográfico e recordatório de Lygia. Nesse sentido, o processo de arquitetar as palavras em seu alcance certo, como o “sopro exato” para construir bolas de sabão, surge numa imagem representativa. E a sua estrutura misteriosa (“película e oco”) é tão frágil e surpreendente quanto o próprio ser humano – como aparece no conto intitulado “A estrutura da bolha de sabão” e como Lygia ressalta neste texto de memórias: “(…) só lá adiante vou descobrir (ou não) como funciona essa tal de estrutura que deve ser assim como o próprio ser humano, indefinível, inacessível. E incontrolável.” (p.23)

Esta é uma citação que, à primeira vista, parece contrariar o objetivo de alcançar a medida justa, a disciplina, o controle. Mas não esqueçamos que tal prática metódica – ajustada às emoções, ou ao fazer artístico – não apenas é um constante aprendizado, que passa pelas mais variadas frustrações (como o provam os contos que aqui analisamos, cheios de personagens que veem sua organização ou sua rotina ruir, em algum momento), mas é ainda uma prática que surge completamente despida de ranço doutrinário na obra de Lygia, visto que a própria reconhece que o humano é e sempre será “incontrolável” – embora o esforço da razão possa investir na direção contrária. O sucesso desta empreitada, porém, é circunstancial; como realização plena, será utópico.

Assim é que, na história intitulada “A estrutura da bolha de sabão”, temos o “amor calculado” para controlar o delírio das bolhas – um “amor de ritual sem sangue”. Mas sabe-se que a perfeição está condenada à ruptura; a disciplina não resiste por muito tempo; é frágil como uma bolha, transparente. Talvez por isso o personagem que se dedica ao estudo físico dessas bolhas de sabão seja um doente e apareça de chambre verde (a cor do místico), fazendo lembrar, no seu relacionamento com a esposa, os personagens-vítimas de mulheres representativas da morte, surgidos nos contos “Herbarium” e “O jardim selvagem”, por exemplo.

O texto “Elzira” também é bastante esclarecedor do universo criativo de Lygia. Trata de uma história contada pela mãe de Lygia, sobre uma antiga parenta, a “morta virgem” Elzira, que diante de um amor impossível preparou o próprio fim, com sinistra meticulosidade.

A persistência demonstrada por aquela parenta, através do seu plano para “apressar a morte”, talvez tenha sido uma das primeiras lições que Lygia Fagundes Telles recebeu, a respeito de como lidar com a dor. A tragédia de Elzira não é apenas o suicídio, mas passa pela constância de seu sofrimento que, apesar de aparentemente tão moderado (ou traduzido numa simples tristeza), foi grande o suficiente para aniquilá-la. É essa corrosão pela amargura íntima e sua capacidade de discrição o que interessa a Lygia e se transforma em matéria-prima da maioria de seus contos.

Ainda podemos lembrar, dentro desse veio biográfico, que a escritora aprendeu também a disciplina através da prática esportiva, como estudante de Educação Física na Universidade de São Paulo. Nesse sentido, o texto “O chamado” é uma das mais belas sínteses, pela menção à prática da esgrima. Por sua imagem simbólica do coração exposto que se entrega ao ataque, o esporte mostra como a técnica e o controle são vitais:

O professor provocava e investia enérgico nos treinos com máscara e florete. Em guarda! ele ordenava e eu tentando disfarçar a natural lerdeza, tinha que ser sagaz e me confundia em meio às ordens, Se defenda depressa que agora você se descobriu, olha o peito desguarnecido! Eu reagia tarde demais porque ele avançava implacável até tocar com a ponta do florete no meu coração exposto. (TELLES, 2007, pp.127-8)

Novamente no livro Conspiração de nuvens, encontramos outra relevante passagem. No texto dedicado a Machado de Assis, Lygia faz uma homenagem ao autor brasileiro, evocado não apenas por sua literatura, mas pela estátua posta na instituição que ele fundou, a Academia Brasileira de Letras. Inspirada pelo estilo machadiano, ela reflete sobre como o ser humano, apesar de toda a necessidade, quase sempre escapa de uma disciplina:

A natureza humana sem controle e sem explicação, e isso vem de longe, aquele lá da estátua sabia que o sedutor ou o repulsivo, o jovem ou o velho, o amado ou desamado, na paz ou na guerra – ah! ele sabia que esse ser inocente ou culpado não tem mesmo explicação. Afinal, não é em vão que se esmerou no ofício de “remexer a alma e a vida dos outros. (TELLES, 2007, p.33)

Um momento de identificação entre Lygia e Machado, neste texto, é quando ela menciona os “coágulos de sombra” da estética machadiana, as ambiguidades. É pertinente lembrar todas as análises anteriores que fizemos e que mostraram histórias roçando por enredos ambíguos, cheios de símbolos ou subentendidos que não se mostram claramente. Mas, para além disso, é sintomático observar como Lygia usa, para Machado de Assis, essa expressão, “coágulos de sombra”, retirada de um conto dela mesma, “O menino”.

As tais áreas nebulosas, portanto, zonas de descontrole ou mistério, são realçadas tanto por Machado de Assis quanto por Lygia Fagundes Telles – uma prova de como a autora reconhece que, em que pese o esforço por uma disciplina, permanecem os territórios imprevisíveis na literatura e na vida.

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Este ciclo de textos se encerra aqui – provisoriamente, porque na verdade nada se fecha por completo. E, na expectativa de apontar horizontes disponíveis, recomendo um livro belíssimo, A construção de Lygia Fagundes Telles (Edufal, 2016), escrito por Nilton Resende. A obra realiza uma edição crítica de Antes do baile verde, acompanhando as revisões que a autora empreendeu ao longo do tempo. Os rastros de mudança, evidenciados pela trajetória das edições do livro, mostram “uma escritora que assume a coragem de ferir a própria criação, curando-a depois e entregando-a mais uma vez ao seu leitor” (p.477).

Observar as eleições estéticas que Lygia Fagundes Telles preferiu, de uma edição a outra, possibilita seguir o seu percurso de amadurecimento narrativo, compreender o processo criativo inquieto, que nunca cessa, em sua produção. Como destaca Resende, ao fim destas análises, o entendimento nos leva a uma certeza sobre Lygia: “é hora de reler”.

Tércia Montenegro (texto publicado também no jornal Rascunho)