Multiartistas

Quando estreei na literatura, mais de vinte anos atrás, as pessoas da área me receberam dizendo que eu era contista por essência, tinha ritmo para a prosa curta – e assim recebi um rótulo feito para definir e, ao mesmo tempo, afastar. Poetas e romancistas estavam em categorias bem diferentes da minha; ensaístas e cronistas talvez se aproximassem, mas com relativas distinções. Eu me sentia constrangida a uma espécie de “pureza” do ofício, pois a especialidade (era o que ouvia) leva à excelência, e “não se pode querer fazer tudo”: melhor batalhar num campo específico e não se dispersar por mil interesses.

Acontece que logo me aborreci com esses esforços de contenção. Notei que o ato de classificar produz um recorte, uma triagem – restringe a impulsividade. Tudo o que menos queria enquanto artista era uma cartilha, um guia de procedimentos para me limitar. Afinal, por que não reconhecer identidades em processo, instáveis e dinâmicas como a própria vida? Com o tempo, fui ingressando na fotografia, na performance, tive experiências com dança e, agora, mergulho em técnicas do teatro.

Para que tudo isso? alguém pode inquirir. Respondo com trechos do pernambucano José Cláudio da Silva, num artigo intitulado “Em defesa dos sumérios”, publicado na revista Continente, na década de 1990. Nele, o autor elabora seu protesto contra a tendência de, no Brasil, exigir-se que um artista visual “mantenha-se pré-sumeriamente de bico calado, sob pena de, por escrever, ser, como pintor, desclassificado”. Contra essa patrulha, nasce a revolta: “Escrever, pintar, são as minhas velhas companhias; em Ipojuca, para vencer o tédio da loja no interior que só tem movimento dia de feira; no Recife, para vencer o tédio do internato no Colégio Marista. E até hoje pinto, escrevo, como faço escultura e gosto de desenhar. Sinto-me diminuído, mas é por não ter aprendido mais coisas, como fagote ou violino.”

Ao final, José Cláudio reconhece: “Mesmo não havendo necessidade de nos justificarmos, perante seja quem for, pelo ato de escrever ou de esculpir, além de pintar, posso acrescentar que, do ponto de vista da minha experiência pessoal, a prática da escultura, depois de dez ou mais anos de exercê-la, me vem aos poucos livrar, nos quadros, de um antigo compromisso volumétrico que, atendo-me excessivamente à figura, impedia-me de enxergar o quadro como um todo; exatamente como o hábito de escrever, a pretensão ao cultivo das belas-letras me deixa puro diante do quadro ou da pedra, limpo de preocupações literárias.”

O exercício de práticas criativas plurais, ao contrário do que pensam os rotuladores de plantão, não dispersa um(a) artista – pelo menos, não no sentido de fazê-lo(a) perder algo, distrair-se do mais importante, ou algo do tipo. Essa dispersão é da ordem do crescimento, do impulso livre. É o festejo de uma autodiversidade que levou Mário de Andrade a declarar num poema: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta.”

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Um escritor fora de cena

Raduan Nassar não tinha cinquenta anos, quando decidiu abandonar o sucesso que a carreira literária estava proporcionando. Lavoura Arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978) receberam vários prêmios, e tudo aconteceu rápido: da metade para o fim da década de 1970, aquele que era até então um desconhecido escritor, praticamente inédito, conheceu o susto da fama.

As edições dos seus dois primeiros livros se multiplicavam, e repercutiam até internacionalmente. Nada gratuito, claro __ apenas o resultado de uma disciplina mantida por anos a fio, e agora vinha o momento de recolher os frutos do trabalho. Exatamente por essa época, no entanto, Raduan abandonou a prática de publicação literária, negando-se à glória. Em 1984, comprou a Fazenda Lagoa do Sino e foi viver em Buri, sudoeste de São Paulo, dedicando-se à criação rural. De sua escrita, posteriormente os leitores encontraram somente uma novidade: Menina a caminho, livro de contos publicado primeiro em edição comemorativa dos 500 títulos da Companhia das Letras, em 1994, e três anos mais tarde reeditado em tiragem comercial.

Sua pequena obra __ em termos quantitativos __ bastou para torná-lo escritor expressivo, alvo de estudos acadêmicos. O mito que tentaram formar sobre sua opção de vida não é justificado: trata-se de algo espontâneo, talvez parte de uma consciência ampla sobre a vida e a essência das coisas.  Sobre a leitura do mundo e o aprendizado intelectual, diz o próprio escritor:

“E tem isso: a leitura que mais eu procurava fazer era a do livrão que todos temos diante dos olhos, quero dizer, a vida acontecendo fora dos livros. Dessa leitura da vida não senti exatamente orgulho, embora achasse a leitura mais importante a fazer, como escritor (…) Agora, apesar da importância que eu punha na leitura do Livrão (Livrão com maiúscula), é certo que muito do meu aprendizado foi feito também em cima de livros, especialmente de uns poucos autores, autores que iam ao encontro das minhas inquietações (…) Nunca senti muito apego pelos livros. Os livros que me sobraram estão esquecidos lá nas prateleiras, me pergunto sempre que é que estão fazendo ainda nas estantes (…) Sentia também outros apelos, necessidade de fazer coisas, no sentido inclusive braçal, devido à minha formação familiar.”

A falta de “apego aos livros” revela-nos um homem distanciado das aparências e do materialismo. Bibliotecas imensas, às vezes repletas de volumes encadernados na mesma cor, com enciclopédias compradas por metro quadrado para enfeitar prateleiras embutidas ou servir de decoração às estantes da sala __ tal é o cenário doméstico que ornamenta a rotina de tantos que são (ou se dizem) escritores. Ao contrário da maioria destas figuras, Raduan Nassar prefere as paisagens naturais. 

A revista “Cadernos de Literatura Brasileira”, em seu segundo número, foi responsável por uma das mais completas entrevistas feitas com o autor, ilustrando suas matérias com fotos ao ar livre de um Raduan tranquilo, deitado na grama, sentado numa cadeira sob árvores ou bebendo café. Nenhum ambiente “intelectual” poderia servir de pano de fundo a este homem que parece extraído da terra, onde suas obras também estão firmemente plantadas.

A entrevista teve momentos polêmicos, e os mais fortes aconteceram a respeito da comentada opção de Raduan por se tornar um “ex-critor”. José Paulo Paes, em determinada altura da conversa, questiona de onde teria vindo o “relativismo radical” de Raduan Nassar, que afirmara certa vez não haver criação artística que pudesse ser comparada a uma criação de galinhas. A resposta foi incisiva: “Se eu fosse um sujeito equilibrado, eu não teria tido a liberdade de fazer aquela afirmação. Só desequilibrados é que descobrem que este mundo não tem importância. O bom senso seria uma prisão.”

Fugindo justamente do bom senso, do senso comum que forja para escritores um protótipo fixo, na entrevista Raduan Nassar fala sobre política, filosofia e experiências particulares, inclusive no manejo com a palavra. Acima de tudo, revela a autenticidade de não seguir modismos ou vibrações de glória: admite que sempre quis desenvolver o seu aprendizado da língua, crescendo através de leituras ou da observação do mundo.

Os livros de Raduan Nassar refletem a opção deste escritor que “saiu de cena”, pois sua obra caminha por fora da costumeira paisagem literária do Brasil pós-anos 64. Na época, a literatura tornava-se cada vez mais denotativa, assumindo uma postura contra a opressão política, e praticamente adquiria um caráter jornalístico de retrato da realidade.

Escritores como Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, Ivan Ângelo e Antônio Callado partilhavam a missão de denunciar os problemas sociais. Ao contrário, autores como Osman Lins, Clarice Lispector e Raduan Nassar rompiam com a homogeneidade dos temas políticos, sem, contudo, fazer obras alienadas. Seus textos refletem também uma visão pungente sobre a humanidade – mas pode-se dizer que seu engajamento principal é com a linguagem poética. Enquanto alguns escritores sacrificavam o lirismo em nome do conteúdo denunciatório, outros desenhavam uma linha artística mais voltada para os questionamentos existenciais, e, ao lado deste compromisso com a reflexão interior, trabalhavam com uma linguagem mais ornamentada.

Com tanto brilho e tantas luzes vindas com a fama, Raduan Nassar, homem simples, nascido de pais libaneses em Pindorama, São Paulo, decidiu também sair da cena da “mídia” literária. Resgatou seu prazer da infância, retornou ao campo, à criação de animais domésticos, ao descompromisso dos dias puros. A relação entre vida e escrita, aliás, é algo fundamental na criação artística deste autor. Podemos lembrar as palavras de Ruth Silviano Brandão: “Para falar do sujeito que escreve (…), deve-se pensar numa escrita-inscrição, em que ele se constitui, não de forma definitiva, pois o escrever se confunde com o viver, pela via do desejo”.

A carreira literária tinha, de certo modo, artificializado a rotina do escritor: vieram aclamações e elogios, críticas e eventos __ mas em nada daquilo estava a essencialidade que ele experimentou na infância, e que não deixaria de desejar, quando adulto. Como diz José Castello em Inventário das sombras, a atitude de Raduan Nassar não reflete “uma postura contra a literatura, mas sim contra as exigências secundárias que o ato de escrever demanda”. Em outro momento, o mesmo crítico afirma: “A história de Raduan exibe os desconfortos, os desgostos, as pressões a que os escritores, e os artistas em geral, estão sempre expostos. Ele precisa se descolar dessa identidade, recusá-la, para então existir”.

Em homenagem a esse autor ímpar dedicaremos a coluna Tudo é Narrativa, nos primeiros meses de 2022, a um ciclo de textos analíticos concentrados na estética de Lavoura Arcaica e Um copo de cólera. Aguardem a sequência!

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de janeiro de 2022)

Sempre desobedecer

Este ano eleitoral vai, mesmo que a gente não queira, nos fazer questionar as estruturas políticas, com seus papéis simbólicos tão óbvios e repetidos. No meio das preparações para o exercício de cidadania, eu me pego antecipando uma decidida náusea: abomino os discursos inflamados, venham de que lado for, detesto o carnaval ruim dos comícios, dos autos-de-fé que persistem com incessantes demônios a expurgar. A sedução pelo tom emotivo, a criação de ídolos ou o apelo a esperanças maníacas… nada disso me engana, como não enganaria ninguém que se desse ao trabalho de observar.

A ânsia por um líder, um mestre ou guru deve ser resquício de comportamento infantil: a pessoa quer ser conduzida, guiada, protegida por alguém que parece mais autorizado que ela, num determinado assunto. Aos poucos, o discípulo pode se transformar num dependente, atraído pelo gozo desse alívio; não precisa decidir nada, decidem por ele. A desresponsabilização pode ser outro nome para a covardia. Existe uma paz no apagamento de si – mas o custo é altíssimo, envolve a abdicação da individualidade, da chance de existir enquanto sujeito único neste mundo.

A concordância fanática ou automatizada vira um gesto submisso. Se queremos ser livres, dentro das restrições em que podemos praticar nossas escolhas, que pelo menos tenhamos esse “trabalho” de raciocinar, fazer ponderações prévias, como se exige de uma pessoa adulta. Como dizia o poeta Henry David Thoreau, “se eu não for eu, quem o será em meu lugar?”.

Oportunamente, consulto o livro de Frédéric Gros, Desobedecer (Ubu, 2018). Encontro um trecho que destaco:

“É o pensamento pensante, o trabalho crítico que nos faz desobedecer. O exame socrático requer esse pensamento pensante, e não um pensamento pensado (a lição que recitamos, o dogma que repetimos). Quero dizer com isso que cada um deve esforçar-se para se postar na vertical da questão e que seu pensamento só se anime em eco a essa convocação. Impedir-se de recitar receitas, de gaguejar fórmulas aprendidas, de aplicar soluções prontas, de receber evidências passivas – e principalmente confiar nas hesitações da consciência. Mais uma vez, princípio de responsabilidade indelegável: ninguém pode pensar em seu lugar, ninguém pode responder em seu lugar.” (p.183)

Belchior já recomendava, em “Como o diabo gosta”, nunca reverenciar. Admiro, sim, algumas pessoas, mas não me prostro aos pés de nenhuma – nem assumo postura de marionete. Persigo o paradoxo de sempre obedecer ao ímpeto da desobediência, porque talvez essa seja uma forma de conservar a própria voz – de pensar em si como alguém livre para debater, arguir e, ainda que pelo silêncio, contestar o que me dizem.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

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