Resoluções

Para que servem as datas, os marcos simbólicos, afinal? Eles têm uma função organizadora – embora eu comece as práticas antes do calendário, só para ir pegando o jeito. Assim, 2018 deve intensificar resoluções que já são realidade, de certa forma; mas o que é novo passa a ser hábito (e não existe negatividade neste termo, quando se trata de coisa boa). Decisões relativas a bem-estar, autocuidado, amor com todos os seus exageros, arte… É preciso uma vida inteira para se desconstruir, retirar as carapaças e escudos que nos vão colando por cima, dizendo que isso é o nosso próprio corpo. Mas hoje vejo claramente que não; meu corpo, minha identidade é leve, um molusco flexível. Nada a ver com essa rigidez de papeis previstos, comportamentos aceitos e sorrisos convencionais. E também estou longe de metas, expectativas ou prazos – na verdade, exercito o tal presente permanente: única forma de domar o tempo, torná-lo sólido. Então, com a intensidade máxima em cada momento – e sempre pensando no que de fato é desejo –, mergulho nas experiências. Que elas continuem.

 

Varo, essa alquimista

Não é raro que artistas se sintam atraídos pelo mágico. Talvez o próprio processo de criar ainda conserve sua aura de mistério – malgrado o que afirmam certos críticos ou softwares. Caso contrário, se o encanto foi mesmo descartado para esta e as próximas gerações, consolemo-nos vendo o que se fazia tempos atrás. Podemos pensar em Artaud e seu teatro ritual, assimilado a uma cura xamânica, ou então lembraremos Rimbaud e a cabala, Borges e suas ligações com o ocultismo, Jodorowski ou Mutarelli e as práticas com o tarô… Muitos exemplos seriam apropriados – mas, como sempre tenho grande interesse no México, aproveito-me do tema.

Remedios Varo, embora nascida na Espanha, encontrou ali a sua morada e refúgio. Dizia que sua pintura, misteriosíssima e cheia de fabulações cosmogônicas, poderia ter sido criada em qualquer lugar – porém, duvidemos. O México, conforme bem assinalava André Breton, é um “lugar surrealista por excelência”.

Sua chegada ao país em 1941 foi reflexo da política de Lázaro Cárdenas, que na ocasião defendia o Direito de Asilo e se posicionava contrariamente às violações de liberdade praticadas tanto pelo imperialismo nazista quanto pelo franquismo. Por causa dessa atitude, uma importante corrente de refugiados – dentre os quais estavam grandes nomes da intelectualidade europeia – foram se encontrar no exílio. Surrealistas como Leonora Carrington, Wolfgang Paalen, Alice Rahon, Kati e José Horna, Benjamin Péret, César Moro e vários outros assim conviveram. A efervescência entre os estrangeiros fez com que eles se encastelassem numa espécie de gueto convivial – em que havia inclusive um combate aos “três emes”: Mexicanidade, Machismo e Muralismo, considerados muito poderosos na arte nativa.

Ao lado de Leonora especialmente, Remedios fez parcerias artísticas, como a elaboração de uma peça de teatro “irrepresentável”, devido à complexidade do cenário, ao número de personagens e sua peculiar caracterização. Mas as próprias autoras mostraram-se cientes disso, ao afirmar no início: “Esta obra foi feita somente para divertimento dos atores. O público é mero acidente”. Fragmentos da peça – que, ao que parece, foi feita ao modo surrealista do cadavre exquis, em que cada autora escrevia uma parte ignorando totalmente o que a outra escreveria – podem ser vistos no livro Cartas, sueños y otros textos de Remedios Varo, publicado pelas Ediciones Era.

Com Leonora, Remedios também preparava receitas enigmáticas, feitas para curar a insônia ou produzir sonhos eróticos. Ambas frequentavam livrarias ocultistas, o que sem dúvida contribuiu para a construção do universo mutante, misterioso e quase fantasmagórico de vários de seus quadros.

Entretanto, a sua principal postura foi a de criação solitária, concentrada na disciplina e jamais na vaidade de um possível aplauso. Em carta destinada ao primeiro marido, Gerardo Lizarraga, ela inclusive comentava: “Me custa muito entender a importância que parece ter para ti o reconhecimento do teu talento. Eu pensava que para um criador o importante seria criar, e o futuro de sua obra seria uma questão secundária, e fama, admiração, curiosidade das pessoas etc muito mais consequências inevitáveis que coisas desejadas”.

Para Remedios Varo, realizar a Grande Obra era o que lhe permitia conhecer e conhecer-se. Numa espécie de concepção transcendental, o próprio processo estético se tornava um fazer mágico. Ela pintou perseguidores da sabedoria interior, como um taoísta em Ermitão (1955), um escalador espiritual em Ascensão ao monte análogo (1960) e um peregrino descalço cruzando o deserto em Caminho árido (1962).

No livro de Masayo Nonaka sobre a pintora, ressalta-se a raiz hispânica desses ritos – vindos de sábios influenciados pelo Islã, “astrólogos e alquimistas que adquiriram a sabedoria mística ao estudar a natureza e observar os planetas. Eram versados em geometria, matemáticas e teoria musical, cujos princípios estavam baseados na harmonia. O universo em si era harmonia. Varo se inspira nas sensibilidades místicas de sua herança espanhola”.

Sempre fascinada por eclipses, forças telúricas e zodiacais, Varo desenvolve um ponto específico de sua iconografia através do movimento. Muitas de suas figuras são viajantes, movem-se por meio de complicados aparatos mecânicos ou máquinas bizarras com polias, asas ou rodas; são deslocadas pelos astros ou pelas águas, sofrem traslados através de capilaridades ou quebras gravitacionais. Porém, como ressalta José Lucas, no artigo “Remedios Varo: el viaje interior”, este movimento é na verdade interior, cíclico, metafórico.

Novamente aqui, vemos que o autoconhecimento era o que impulsionava a artista. Mas engana-se quem imagina que essa busca foi severa, reflexo da implacável educação religiosa que Varo recebeu na infância. O seu humor está presente em diversas telas, como por exemplo nas invenções fantásticas de Vampiros vegetarianos (1962), de Banqueiros em ação (1962) e Locomoção capilar (1959). Além disso, as experiências surrealistas lhe asseguraram uma mirada risível sobre os comportamentos. Ela costumava lançar-se ao que denominava experimento “psico-humorístico”, que consistia no envio de cartas para desconhecidos, cheias de confissões disparatadas ou convites misteriosos. Conforme testemunhou Leonora Carrington, “Nunca chega uma resposta. As pessoas não têm tempo para nada realmente interessante”.

Outros que conviveram com ela – como foi também o caso de Octavio Paz – costumavam destacar a sua capacidade de ironizar qualquer tema, inclusive os que lhe eram mais sagrados. É o que vemos Varo fazer, numa de suas cartas, quando escreve (sob pseudônimo) a respeito de pintura – e chega a extremos cômicos com ímpetos que deve ter conhecido na prática:

“A coisa começou aproximadamente há seis meses. Eu pintava com entusiasmo um quadro onde se via um amável prado, com carneiros e vacas passeando serenamente. Confesso que me sentia satisfeito com a obra, mas aqui de repente uma força irresistível me impeliu a pintar, sobre o lombo de cada carneiro, uma pequena escada, em cujo extremo superior se encontrava uma imagem da minha vizinha da frente; sobre as vacas me via obrigado a colocar, não sem angústia, uns lenços bem pregados. Poderá você imaginar a minha surpresa e desolação. Escondi este quadro, começando outros, mas me via sempre instado a introduzir elementos estranhos neles, até que chegou um momento em que, tendo derramado por acaso certa quantidade de molho de tomate sobre minha calça, achei a mancha tão extremamente significativa e emocionante, que rapidamente cortei o pedaço de tecido e o emoldurei. Eu me vi obrigado a levar, a partir do momento em que pintei o primeiro quadro que lhe mencionei, uma vida quase clandestina, temendo que as pessoas me descubram e me façam examinar por um alienista.”

Em 1986, cerca de vinte anos após sua morte, Remedios Varo integrou a exposição Arte e Alquimia, na Bienal de Veneza. E hoje, três décadas depois, ela continua ensinando mistérios – de força ancestral, rito ou riso – a quem quer que seja. Basta que vejamos quadros como Bordando o manto terrestre (1961), Criação das aves (1957) ou Presença inquietante (1959), dentre tantos mais.

Tércia Montenegro (texto da coluna Tudo é Narrativa, publicado no jornal literário curitibano Rascunho)