Ficções de si

Virginia Oldoini, a condessa de Castiglione, foi uma entusiasta da fotografia. No século XIX, quando esta tecnologia ainda era uma novidade, Virginia se fez retratar, deixando quase quinhentas imagens. Frequentando semanalmente o estúdio do fotógrafo Pierre-Louis Pierson, a aristocrata explorou a própria fisionomia em disfarces, poses e atitudes que pareciam nunca esgotar a versatilidade de sua lendária aparência. Afinal, dizia-se que as pessoas “Contemplavam sua beleza como iam ver as aberrações”. Os encantos de Virginia teriam tido até mesmo influência política, conforme algumas versões de alcova sobre a unificação italiana.

Não espanta, portanto, que os registros dessa personagem tenham inspirado um livro da francesa Nathalie Léger, escritora e curadora de artes. A exposição (DBA, 2023, em tradução de Letícia Mei), surge como uma renovada tentativa de responder à célebre indagação freudiana: o que quer (e, no fundo, o que é), uma mulher? “No trajeto um pouco sinuoso da feminilidade, a pedra na qual tropeçamos é outra mulher”, diz a autora. O tropeço que a Castiglione proporciona faz com este livro explore uma série de associações – com outras obras artísticas e com a própria vida familiar de Léger, a autora. “O que eu procuro é a inconsequência de uma lembrança, seu traço um tanto titubeante por meio dos objetos, é um gesto, ou apenas uma intenção que persiste e se desfaz na matéria”, ela assinala à página 53.

Desde o início, a Castiglione me trouxe à mente a personagem retratada por Susan Sontag em O amante do vulcão, outra figura histórica e de beleza memorável: Emma Hamilton. Vivendo numa época pré-fotografia, Emma posou muitíssimo, mas para pintores; dentre eles, Elisabeth Vigée-Le Brun, que a retratou como uma Ariadne. Era comum que modelos transitassem entre papéis míticos, sacros e outras poses mais realistas, e Emma exercia seus talentos interpretativos também numa série de espetáculos conhecidos como “Atitudes”. Vale a pena reler a descrição de Sontag:

“Sobre a cabeça ela atirava um longo xale que chegava até o chão e a cobria por completo. Assim oculta, enrolava-se em outros xales e começava a fazer os ajustes internos e externos (drapeado, tônus muscular, sentimentos) que lhe permitiam emergir como outra pessoa, uma pessoa diferente). Para fazer isto – não era como colocar uma máscara – deve-se ter uma relação muito solta com o próprio corpo. Para fazer isto deve-se ter um dom para a euforia. Ela flutuava, ela pousava, ela se imobilizava – o coração martelando, enquanto enxugava a transpiração do rosto. Uma rápida sequência de expressões faciais, tendões tensos, mãos enrijecidas, a cabeça pendendo para trás ou para o lado, uma inspiração profunda –

E então de repente levantava-se o xale, seja atirando-o fora ou elevando-o um pouco, e fazendo-o parte da vestimenta da harmoniosa estátua viva em que se transformara.”

A mímica de Emma, minuciosamente premeditada, traz o mesmo tipo de cuidado que vemos nos disfarces escolhidos por Virginia, ao se fotografar. As duas estão motivadas pelo “momento de perfeito esquecimento de si”, pela invenção de uma outra mulher possibilitada pelos travestimentos do retrato. Escreve Léger:

“Ela pensou bastante no objeto da sessão, qual cena, qual figurino, qual personagem? e a luz, a direção do perfil, e a história, o relato de si mesma, a lenda a cada vez retomada, reinterpretada, com incisos incontáveis e variantes, a história interior, certos dias murmurada, em outros fiada, fluida, um canto. Montesquiou conta que ela volta para casa para se trocar, apanhar um acessório, vestir uma roupa. Podemos também imaginar que ela se despe numa das pequenas cabines contíguas ao estúdio, ela mandou levarem alguns figurinos para lá, será Judite ou Elvira ou a rainha da Etrúria, é uma normanda da região de Caux (sentada bem ereta numa pequena cadeira de palha, de vestido de lã vermelha, avental azul-escuro, penteado alto em fina guipure, ela tem nas mãos um tricô, uma meia grossa listrada que ela parece terminar, os cotovelos junto do busto, mas, sob as anáguas de tecido pesado, as coxas estão afastadas, pernas solidamente plantadas, pés presos em sapatinhos de verniz com tiras, o novelo rolou no chão, um estranho sorriso bobo paira em seu rosto), é uma marquesa do século XVIII, é uma carmelita severa, ela é a Beatriz de Legouvé, ela é Virginie, a casta afogada, é a devoradora de homens como Donna Elvira, ela se veste de chinesa, de finlandesa, é um funeral, um banquete, um baile.” (pp.27-8)

N’A exposição, a condessa de Castiglione é comparada a uma Cindy Sherman dos primórdios fotográficos. Mas lembremos de preferência Telma Saraiva, artista brasileira que igualmente compôs autorretratos para desenvolver uma ficção de si, inspirada em atrizes e outras figuras célebres – com o mérito de ter tido essa iniciativa trinta anos antes de Sherman. Apesar de toda a dificuldade de importar tintas para colorir retratos, Telma Saraiva, sem sair do Crato, no sul do Ceará, compôs um rico acervo de autotransformação, precursor do trabalho de tantos artistas atuais. O simulacro que subjaz à persona representada em obras de Ana Mendieta, Helga Stein e Daniela Comani, dentre outros nomes, repousa nesse princípio de que o retrato posado não escapa à simulação.

Annateresa Fabris, em estudo sobre identidades virtuais, já assinalava que através da pose “o indivíduo deseja oferecer à objetiva a melhor imagem de si, isto é, uma imagem definida de antemão, a partir de um conjunto de normas, das quais faz parte a percepção do próprio eu social”. Não é garantido que esta “melhor imagem” seja algo estável, nem mesmo belo, conforme os conceitos tradicionais de beleza. A flutuação por várias possibilidades é o que faz interessante a iniciativa da Castiglione, tanto quanto a das outras artistas aqui mencionadas.

Nathalie Léger ao contar, nas brechas de suas reflexões sobre a protagonista, a própria narrativa familiar, também maneja disfarces, hipóteses que se insinuam nos fragmentos associativos. Ela produz assim retratos literários de sua mãe, de sua avó, de seu pai, como se dispusesse em cena mais personagens posados, arranjados com máscaras e acessórios excêntricos. Afinal, A exposição se volta para uma instância do invisível, a fantasmata que o movimento extravasa: “A fotografia permite captar, na dança incessante da mulher sob o olhar do outro, esse estado de pedra que revela a instantaneidade de um segredo. É isso que ela teria desejado expor.” (p.106)

E é isso o que este livro revela – para quem o lê como quem contempla.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de abril de 2024)

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