Sobre artistas e artesãos

A exposição “Natural Natural: Paisagem e Artifício”, em cartaz no Dragão do Mar, traz uma boa oportunidade de pensar sobre a matéria-prima das artes e dos artesanatos – e o que caracteriza cada ofício, ou o faz misturar-se ao outro. Os elementos cearenses ganham novas perspectivas, e há propostas lindas, como as flores doidas ou as vitórias-régias bordadas, flutuando em cima de espelhos (na exposição, essa é uma maneira de olhar para o Cocó, o mangue ameaçado e cada vez mais desprezado por políticos & todos aqueles que não têm sensibilidade).

Ana Maria Tavares, além de curadora da mostra, também colabora com vários trabalhos – e eu, que não a conhecia, gostei demais da série “Organismo Luz”, de 1985: são quatro desenhos lindos em dinamismo, a grafite e pastel seco. “Pandanus” é outra peça de impacto, feita em parceria com artesãos: em palha de bananeira, as formas serpenteiam como arabescos pela parede.

Em outras duas salas do Dragão, não se pode deixar de ver o conjunto de obras de Nice e Estrigas. Toda uma vida de arte e cumplicidade está ali. Quem conheceu o casal e o sítio do Mondubim consegue voltar àquela familiaridade de beleza e paz. Uma coerência absoluta entre bons pensamentos e gestos: o que mais alguém pode desejar, como herança à humanidade?

Nice bordando

 

Vem aí

Amigos,
Está para sair a nova antologia de ensaios sobre Chico Buarque organizada por Rinaldo de Fernandes, e eu tenho o prazer de participar deste belo projeto com um estudo sobre a canção “A Rita”. O lançamento nacional está previsto para o próximo sábado, na 9a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco – mas adiante haverá também lançamentos em outras capitais, inclusive em Fortaleza.
O livro já se encontra em pré-venda neste site.

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Todos os santos

      O turismo de aventura que enfrentei na Bahia, em agosto, justificou que eu chegasse no último dia a Salvador agradecendo a todos os santos pela integridade física, que a duras penas conservei. Não por acaso, a agência turística havia solicitado a minha assinatura de um “termo de conhecimento de riscos”, junto com o preenchimento de um questionário imenso, que indagava sobre mil tipos de alergias, câimbras e micoses que eu pudesse ter. No meio das incontáveis perguntas, havia uma voltada para homens: “Já serviu ao exército?” Meu namorado respondeu – no questionário dele – que sim, e acrescentou ter feito o ralo da boina com grande ímpeto de bravura.

       O questionário prosseguia, querendo saber da nossa experiência com natação em pântanos e equilíbrio na areia movediça. Perguntava se já tínhamos disputado um cacho de bananas com uma família de macacos – e o mais importante: vencemos? Eu marcava os itens com a impressão de que seria reprovada na seleção para o passeio. Fiz um xis para assinalar que temia insetos peçonhentos e outro para assegurar que não, não levava comigo o antídoto para o veneno do Phyllobates Terribilis – será que poderiam adicionar um frasco na bagagem? De toda maneira, eu teria cuidado com sapos de aparência carnavalesca…

      Depois de trilhas e escaladas entre três pequenas cidades – Igatu, Mucugê e Ibicoara – a parte pavorosa chegou ao fim. O Morro do Pai Inácio, em Lençóis, pareceu uma subida modesta para quem tinha enfrentado um treino tão árduo. Felizmente, a culinária (além da paisagem estonteante) nos consolava: bolinhos de chuva e sequilhos no café da manhã, suco de melancia ou mangaba – e o principal: um almoço com godó de banana e picadinho de palma. Pela primeira vez, eu tive vontade de aprender a cozinhar… Quem diria que isso ia acontecer na Bahia? E não foi com acarajé!

      Pisando em Salvador, tive uma hora de redenção; do alto do Farol da Barra, dei graças aos céus. Evoé, meu São Gregório de Matos, por esta beleza toda! Evoé, meu São Castro Alves em gesto-poderoso de estátua! E os outros divinos que por ali passaram: Pierre Verger, Caymmi, Jorge Amado, Zélia Gattai (fotógrafa!), Padre Vieira com seus sermões ainda ardentes no púlpito… A vibração explodiu com o Olodum no Pelourinho, descendo a ladeira sob a imagem em display do Michael Jackson na sacada de uma loja. Já estava bem perto de eu pegar o avião de volta – mas não me despedi sem trazer para Fortaleza as bênçãos de Obá e Iansã.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

Acontecimentos na irrealidade imediata

   Nesta semana concluí a leitura do livro do Max Blecher, Acontecimentos na irrealidade imediata (Trad. de Fernando Klabin, Cosac Naify, 2013). Há muito eu devia para mim mesma esta experiência, desde que entrei em contato com uns poemas deste autor romeno – versos estranhíssimos, de uma atmosfera indefinível: um tipo de surrealismo bem particular. O romance, então, segue a mesma pauta de desconforto diante do mundo, com um personagem esgarçando situações cotidianas de maneira visceral. A noção do tempo e do espaço, o contato desconfiado com os objetos (que pelo tema me lembrou as narrativas do Felisberto Hernández) fazem com que nada pareça simples, numa existência infelizmente mecânica. É contra isso que o protagonista se revolta, buscando atos extremos que, em alguns casos, parecem antecipar performances artísticas; em outros, soam como simples exercícios criativos – mas muito bem humorados. Confira o leitor, a este propósito, a passagem abaixo:

   “Eu costumava visitar Ozy assim como os cachorros entram em quintais alheios quando o portão está aberto e ninguém os afugenta. Atraía-me sobretudo uma brincadeira bizarra, inventada não sei mais por qual de nós e em que circunstâncias. A brincadeira consistia em manter, com a maior seriedade, diálogos imaginários. Tínhamos que permanecer sérios até o fim e não revelar de maneira alguma a inexistência das coisas sobre que falávamos.

     Um dia entrei e Ozy me disse, num tom terrivelmente seco, sem erguer os olhos do livro:

     – A aminopirina que tomei ontem à noite para transpirar me provocou uma tosse horrenda. Fiquei me revolvendo nos lençóis até de manhãzinha. Até que há pouco veio a Matilda – não existia Matilda alguma – e me aplicou uma fricção.

    O absurdo e a estupidez das coisas que Ozy narrava atingiam-me a cabeça como poderosos martelos. Talvez eu devesse sair imediatamente do aposento, mas, com uma pequena volúpia de me colocar de propósito no seu nível de inferioridade, eu respondia no mesmo tom. Acho que era esse o segredo da brincadeira.

     – Olhe que eu também me resfriei – disse-lhe, embora estivéssemos no mês de julho – e o doutor Caramfil – que existia – me passou uma receita. Pena que esse médico… sabe, ele foi preso esta manhã…

      Ozy ergueu os olhos do livro.

     – Viu, faz tempo que eu dizia que ele falsificava dinheiro…

     – Mas é claro ­– acrescentei –, pois como ele faria para gastar com tantas atrizes de revista?

      Nessas palavras havia sobretudo um prazer um pouco sórdido de mergulhar na mediocridade do diálogo e, ao mesmo tempo, uma vaga impressão de liberdade. Eu podia, assim, caluniar à vontade o médico, que morava ali perto e que eu sabia que se deitava toda noite precisamente às nove horas.” (pp.81-2)

FotoBienal Masp

Minha visita ao museu de São Paulo, no início deste mês, trouxe outras boas emoções além daquelas provocadas pelas obras de Lucian Freud. A primeira edição da FotoBienal Masp fez com que eu encontrasse obras da Marina Abramović: “Retrato da artista com uma vela” e “Lugares de poder – o jardim de Maitreya”, ambas de 2013. Além destes belos registros de performances, também destaco os trabalhos de Gordana Manić: suas fotos de corpos nus, pinçados com arpões, provocam um poderoso incômodo. Berna Reale  talvez conferisse mais força a seu Palomo se o tivesse reduzido a uma única foto: a do policial usando focinheira, enquanto passeia sobre um cavalo pintado de vermelho. A outra imagem, em close, junto com o vídeo, faz a obra perder um pouco o impacto. Por fim, as fotografias de Marcelo Tinoco me agradaram muito, provavelmente pela atmosfera próxima do surreal de Florencia Rodríguez Gilles – que não estava na mostra, mas sempre pode ser recordada como uma artista incrível.

Retrato da artista com uma vela

Lucian – gravuras e fotos

          Não foi dessa vez que estive numa sala com as gigantescas pinturas do “humanismo incômodo” de Lucian Freud – mas a exposição de suas gravuras, no Masp, ainda assim foi sublime. Na sequência de águas-fortes, a gente aprende que não havia mistérios do corpo para esse artista, e seus modelos se expõem, abertos e entregues à pose que ele exige. As hachuras em novelo criam minúcias de pele e ruga – milagrosamente, o PB não lhes tira o estilo: a carne ainda palpita, bem ao jeito de Lucian Freud, e os olhos de todos são penetrantes, furam a tela, vêm para perto de nós.

         De pintura mesmo, o retrato de Kitty Garman, que foi sua esposa na década de 1940, merece destaque. Ainda não tem o traço inconfundível, com as marcas de volume freudianas; parece um Rousseau estranho, mas bem menos naïf, com uma textura no veludo e um mistério de horror nas pupilas. Outros quadros se veem através das fotografias – os cliques íntimos de David Dawson, que mostrou Lucian na intimidade: fazendo a barba, com o creme na ponta de um pincel, ou pintando, principalmente, dentro de um ateliê com paredes escamosas de tinta, como se fossem cascos submersos há tempo. Tudo era paleta para Lucian, e os modelos posavam em meio ao caos: igualmente o neto Albie e o galgo Eli, além das inúmeras mulheres e dos homens, amantes desnudos.

         “Trabalhando à noite” (2005) é talvez a foto mais bela. O artista surge como um xamã, um pano preso no cinto, nu da cintura para cima, velho e poderoso. Na maioria das imagens, ele não olha para a câmera; quando a encara, é com uma expressão surpresa ou quase raivosa. Fiquei a pensar nas concessões que fez a Dawson, em nome de seu relacionamento, para deixar-se fotografar assim. Mas deve ter havido momentos divertidos, como quando Lucian, na foto, pinta a rainha Elizabeth, num quadro ironicamente diminuto.