Nesta semana concluí a leitura do livro do Max Blecher, Acontecimentos na irrealidade imediata (Trad. de Fernando Klabin, Cosac Naify, 2013). Há muito eu devia para mim mesma esta experiência, desde que entrei em contato com uns poemas deste autor romeno – versos estranhíssimos, de uma atmosfera indefinível: um tipo de surrealismo bem particular. O romance, então, segue a mesma pauta de desconforto diante do mundo, com um personagem esgarçando situações cotidianas de maneira visceral. A noção do tempo e do espaço, o contato desconfiado com os objetos (que pelo tema me lembrou as narrativas do Felisberto Hernández) fazem com que nada pareça simples, numa existência infelizmente mecânica. É contra isso que o protagonista se revolta, buscando atos extremos que, em alguns casos, parecem antecipar performances artísticas; em outros, soam como simples exercícios criativos – mas muito bem humorados. Confira o leitor, a este propósito, a passagem abaixo:
“Eu costumava visitar Ozy assim como os cachorros entram em quintais alheios quando o portão está aberto e ninguém os afugenta. Atraía-me sobretudo uma brincadeira bizarra, inventada não sei mais por qual de nós e em que circunstâncias. A brincadeira consistia em manter, com a maior seriedade, diálogos imaginários. Tínhamos que permanecer sérios até o fim e não revelar de maneira alguma a inexistência das coisas sobre que falávamos.
Um dia entrei e Ozy me disse, num tom terrivelmente seco, sem erguer os olhos do livro:
– A aminopirina que tomei ontem à noite para transpirar me provocou uma tosse horrenda. Fiquei me revolvendo nos lençóis até de manhãzinha. Até que há pouco veio a Matilda – não existia Matilda alguma – e me aplicou uma fricção.
O absurdo e a estupidez das coisas que Ozy narrava atingiam-me a cabeça como poderosos martelos. Talvez eu devesse sair imediatamente do aposento, mas, com uma pequena volúpia de me colocar de propósito no seu nível de inferioridade, eu respondia no mesmo tom. Acho que era esse o segredo da brincadeira.
– Olhe que eu também me resfriei – disse-lhe, embora estivéssemos no mês de julho – e o doutor Caramfil – que existia – me passou uma receita. Pena que esse médico… sabe, ele foi preso esta manhã…
Ozy ergueu os olhos do livro.
– Viu, faz tempo que eu dizia que ele falsificava dinheiro…
– Mas é claro – acrescentei –, pois como ele faria para gastar com tantas atrizes de revista?
Nessas palavras havia sobretudo um prazer um pouco sórdido de mergulhar na mediocridade do diálogo e, ao mesmo tempo, uma vaga impressão de liberdade. Eu podia, assim, caluniar à vontade o médico, que morava ali perto e que eu sabia que se deitava toda noite precisamente às nove horas.” (pp.81-2)
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