O lugar dos bichos

Da minha coluna Tudo é Narrativa, publicada no jornal Rascunho:

O LUGAR DOS BICHOS

 

          Nas narrativas clássicas – incluindo-se aí as religiosas – o animal sempre ocupou um lugar secundário, tendo a sua existência sob risco constante. O antropocentrismo que orienta nossas práticas moldou um olhar de superioridade em direção às demais espécies, e os relatos de sacrifícios jamais tiveram a intenção de provocar horror pela matança de bichos; ao contrário, passavam a mensagem de justeza, de uma busca de “equilíbrio” na ordem dos fatos: algumas vidas animais a menos serviam para aplacar a ira dos deuses, ou para expiar os pecados humanos.

      Lembro que, na infância, a leitura do Antigo Testamento me pareceu uma sequência de crimes impunes e abomináveis para com ovelhas, cordeiros e outras criaturas do tipo. E o absurdo era que, na mesma idade, eu recebia toda uma literatura voltada para a idealização de porquinhos, galináceos, formigas, ursos ou sapos. Não demorou para que eu compreendesse que o mundo rosado, construído pela ficção infantil, nada mais era que um artifício de fantasia que – em grande parte – tinha o propósito de distrair ou ensinar preceitos de moralidade ou comportamento. A estratégia do antropomorfismo revelava que também esses autores (por melhores que fossem suas intenções) rendiam-se ao impulso de medir toda experiência pelo critério da humanidade.

       Adolescente, tornei-me leitora de obras realistas ou regionais, sem encontrar alívio no tratamento dessa questão. Os animais vinham retratados como brutos, irracionais, incapazes de sentir ou até mesmo sofrer. Em vários relatos, eram mencionados somente como um alimento em fase ainda não degustável. Mesmo um caso de exceção, como o da famosa cachorra Baleia, confirma a regra geral. A riqueza psicológica que lhe é concedida tem o peso de um contraste que ressalta os estreitos limites em que as pessoas de Vidas secas circulam.

    Ermelinda Ferreira, num artigo que discute a metáfora animal como representação do outro na literatura, bem resumiu a tendência dominante: a maioria dos autores brasileiros tomou a decisão de desconsiderar os animais em termos ontológicos. Graciliano Ramos, por exemplo, em diversas passagens célebres de São Bernardo, de Infância e do já citado Vidas secas, valeu-se da metáfora animal somente para demonstrar a baixa escala alcançada pelo humano.

     Artistas contemporâneos talvez estejam mais dispostos a rever essa atitude – quando não por motivação ideológica precisa, por simples opção estética. Para ficarmos com o espaço sertanejo, basta o exame de algumas fotografias de Tiago Santana, que inclusive batizou um de seus livros como O chão de Graciliano (2006). Em diálogo com o cenário do escritor, o volume reúne imagens realizadas em viagens ao sertão de Alagoas e Pernambuco. A partir do próprio título evocador de telurismo, o fotógrafo (re)constrói signos agrestes e propõe um trânsito entre linguagens artísticas – interesse que se renova em sua recente publicação, O céu de Luiz (2014), dedicada a uma série de imagens inspiradas na obra de Luiz Gonzaga.

        N’O chão de Graciliano parece haver uma aproximação de técnicas entre as duas artes de grafar, seja com o verbo ou com a luz. Já se ressaltou, em analogia fisiológica, que Graciliano Ramos executa uma “composição por decomposição”. Tal aspecto é reprisado na fotografia de Tiago Santana, que também decompõe, mutila ou desfoca o indivíduo. Os cortes dos enquadramentos, os ângulos escolhidos, a própria escolha do preto e branco – tudo revela a intencionalidade de uma grande força sintética: exatamente como podemos classificar, pela precisão linguística, o projeto literário de Graciliano Ramos.

      Mas, ao contrário do romancista, o fotógrafo não parece considerar que a figura do animal traga um sinal de inferioridade. Se o autor, num trecho de Memórias do cárcere, escreve: “Homem das brenhas, afeito a ver caboclos sujos, famintos, humildes, quase bichos” (1954, p.112), podemos afirmar que essa gradação qualitativa – com o bicho ocupando o último nível – não ilustra o trabalho de Tiago Santana, onde vemos os animais elevados à individualidade, com vários indícios de valores positivos atrelados a eles.

      Em diversas imagens do artista cearense, temos estratégias de composição que dispõem a figura humana em relação presencial com os bichos, e estes surgem em realce ou com maior nitidez – em detrimento da pessoa, que costuma surgir com o rosto encoberto ou desfocado, ou ainda com menor peso visual devido a tratamentos de luz, contraste ou textura. Em certos arranjos, a fotografia constrói verdadeiros corpos híbridos: figuras se criam a partir de uma complementaridade física. O cão, o cavalo, o jumento e a cabra aparecem articulados ao cotidiano sertanejo de tal forma que o animal existe sobretudo por um componente afetivo de convivência.

      Logicamente, o espaço é também uma simbolização, uma construção subjetiva. Graciliano Ramos e Tiago Santana construíram temas sertanejos a partir de escolhas que, nos dois autores, indicam uma preferência pela apresentação do cenário como propício à interdependência entre homem e bicho. Entretanto, se na obra literária esse aspecto colabora para uma “historiografia da angústia”, no corpus fotográfico de Santana parece antes haver uma ponderação sobre a existência e a relação das outras espécies com o ser humano, sem que este assuma um local de superioridade.

        Firma-se a mensagem – infrequente, embora tão óbvia – de respeito pelos animais a partir da constatação de que eles são distintos de nós. É um equívoco considerá-los, por suas características específicas, inferiores às pessoas, ou, conforme o movimento oposto, idealizados enquanto seres de um tipo ingênuo. Qualquer base comparatista se destrói, ao pensarmos que, mudando-se a essência, muda-se a maneira de estar no mundo, e os critérios têm de ser particulares para cada caso. O que vale para um, deixa de se aplicar no lugar alheio.

      Esse exercício de reflexão talvez nos faça mais justos diante das criaturas que nos rodeiam. Cada uma delas, humana ou não, encontra-se mergulhada na própria narrativa vital. O respeito à trajetória e ao espaço do outro, antes de ser um ato de cidadania ou caridade, é simplesmente a noção de que somos todos limitados por alguma circunstância – e a finitude comum talvez seja a principal.

 

Tércia Montenegro

 

 

Tudo é narrativa – A luz e o mistério

A luz e o mistério

Como não gostar imediatamente de um pintor que se denominava “o rei dos gatos”? E, de quebra, ainda tinha origem polonesa…

Eu já conhecia superficialmente a obra do conde Klossowski de Rola, mas foi a partir do livro Le paradoxe Balthus, de Raphaël Aubert, que pude me aprofundar. O título empenha-se em levantar os aspectos mitômanos da personalidade deste artista, circulando principalmente pela esfera erótica de vários de seus quadros. Entretanto, a leitura torna-se proveitosa sobretudo pelas relações entre a obra de Balthus e a de artistas anteriores: às páginas 85 e 86, por exemplo, o autor demonstra como a personagem do quadro A rua (1933), que atravessa uma rua com uma tábua sobre o ombro, teria sido diretamente inspirada pelo homem que porta a cruz no afresco de Piero della Francesca em Arezzo (1452-1459).

O melhor é que Balthus não concordava absolutamente com esta inspiração (apesar de venerar a obra de Della Francesca). Numa entrevista, consta que ele explodiu numa gargalhada e observou que não existem trinta e seis maneiras naturais de carregar uma tábua, ou seja, basta olhar em torno para se dar conta da postura adequada; não é preciso evocar nenhuma influência estética para isso. Embora Raphaël Aubert defenda que tal resposta foi uma estratégia do artista para se furtar às revelações e criar uma atmosfera de mistério, a gente que produz arte sabe o quanto os críticos e intérpretes de uma obra muitas vezes viajam – com a melhor das intenções, talvez, mas jamais alguém fora do processo criativo saberá inteiramente o que esteve envolvido ali. Toda e qualquer leitura, por mais fundamentada, é válida, sim, mas não tem peso de verdade. Dito isto, esclareço que a verdade muitas vezes não é a via mais interessante das coisas…

Porém, voltemos ao livro citado. À página 87 surge um ponto curioso, que cito em tradução minha: “Uma outra particularidade do trabalho de Balthus e que choca aqueles que descobrem pela primeira vez suas telas, vem igualmente dos seus pintores preferidos. O fato é que sobre o rosto dos seus modelos, o sorriso está como que fixado, voltado para o interior, e ali paira uma invencível melancolia. Um traço que se encontra em muitos pintores da Renascença, justamente: Gaddi, Botticelli e, claro e sempre, Piero della Francesca, tal como se pode ver no afresco da Visita da rainha de Sabá ao rei Salomão na igreja de Arezzo ou n’A madona de Senigallia do museu de Urbino.”

Ora, Balthus – novamente sem desprezar todo o crédito aos pintores antigos, que ele tanto amava – poderia responder a isso também com uma risada. Afinal, há muitas motivações para inserir melancolia num rosto, ou para colocá-lo à maneira de efígie (Piero della Francesca não foi criador ou detentor autoral dos retratos em perfil). Mas o que me interessa na análise é a ponderação a respeito desta tendência nos rostos renascentistas. A característica poderia ser observada inclusive no sorriso “voltado para o interior” exibido pelas personagens de Da Vinci (e aqui penso não somente na Mona Lisa, mas n’A dama com o arminho, n’A Virgem e o menino com Santa Ana, n’A virgem das Rochas… Penso sobretudo no esplêndido São João Batista, que poderia ter alcançado tanto sucesso em termos de risinho enigmático quanto a Gioconda, célebre a ponto de me instilar um certo tédio e fazer preferir os outros quadros deste gênio.

Finalmente, para concluir a apreciação do livro de Aubert, é interessante reparar, às páginas 100 e 101, no efeito de “Unheimlichkeit” (inquietante estranheza), emprestado de Freud e possível de ser aplicado tanto a um quadro como A rua como à obra dos pintores metafísicos em geral (especialmente De Chirico). O esclarecimento vem de Jean Clair, que traduzo: “Existe inquietante estranheza apenas na medida em que o real é expressamente colocado como tal e onde a sua figuração representa somente um desvio, o menor possível em relação ao normal”. O projeto surrealista não poderia, portanto, ser enquadrado assim, já que estes artistas buscavam o maior afastamento possível da realidade. Mas seria o caso de pensar: e Magritte? Não há inquietante estranheza nele? Assunto para outro dia…

De qualquer maneira, grande parte deste sentimento de incômodo que a “Unheimlichkeit” parece inspirar não está exatamente associado à composição ou figuratividade de uma tela – mas à forma com que uma sutil deformação da realidade nela se impõe. Balthus, assim como o seu contemporâneo Hopper, encontrou a via para este trabalho através da luz. Os dois artistas se assemelham já pela incrível atmosfera narrativa de muitos de seus quadros: basta aproximar Morning Sun (1952) e Morning in the city (1944), de Hopper, a de The room (1953) e Nude before a mirror (1955), de Balthus.

Para além da semelhança cênica, a paleta e a luminosidade – em ambos – produz o resultado de confissão e enigma. Um paradoxo desta espécie nos faz ver a luz como um elemento do mistério, e o mistério às vezes é uma das principais qualidades da arte.

Qualquer tentativa de “esclarecimento” destas questões (que existem para permanecer suspensas) pode decepcionar, restringindo o impacto estético. Eis porque um filme como Shirley (2013), que utiliza os ambientes e personagens de Hopper, mergulha em terrível monotonia, apesar do virtuosismo técnico. Ao “solucionar” algumas incógnitas, atribuindo nome, profissão e contexto histórico às figuras dos quadros, o diretor Gustav Deutsch obviamente exclui outras possibilidades, e essa escolha – tão inevitável quanto fatal –, mesmo que se mantenha fiel à luz e às cores do pintor, elimina sua estranheza. Como resultado, o espectador deixa de se sentir inquieto e cai em sonolência.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho – clique aqui)

Dizer teu nome

De Luis García Montero:

“Vicente piensa que algo del nombre y de los apellidos se filtra en el interior de cada persona. El carácter establece relaciones secretas con la forma de llamarnos. El subconsciente, según él, es un pozo de palabras. Y, claro está, los nombres y los apellidos ocupan un lugar importante. Nos bautizamos todos los días a lo largo de la vida, al ir al colegio, al pedir alojamiento en una pensión o al encontrar un trabajo. Enamorarse no es más que pintar un corazón con dos nombres. Nunca faltan los nombres. Aunque seamos muy solitarios, oímos nuestro nombre miles, millones de veces. Lo primero que hacemos para escondernos es ocultar nuestro nombre. Lo primero que hacemos para presentarnos es decir nuestro nombre. Por eso conviene pronunciar los nombres muchas veces.”