As fobias

Há mistérios que circundam os medos peculiares. Para certas pessoas, uma situação de terror pode ser desencadeada por um objeto ou situação trivial. De tanto conhecer fobias alheias, aprendi a respeitá-las – mas não deixo de achar algumas bem esquisitas. Às vezes, penso que a atitude pode ser confundida com uma excentricidade ou simples repulsa. A fobia clássica, entretanto, domina por inteiro o indivíduo, reduz seus nervos a frangalhos. É o que leva um sujeito musculoso a gritar feito um bebezinho, diante de abelhas; ou o que desespera uma dondoca, capaz de quebrar os saltos altos numa correria para fugir de um sapo absolutamente imóvel. A fobia é uma coisa íntima, intransferível. Há quem chore de pavor diante do mar, e não por medo das profundezas ou da violência das ondas, mas por intolerância à espuma. Aquele rendilhado líquido causa nojo em certas almas frágeis…

Houve aquela vez em que uma amiga entrou na minha casa e deu um grito ao ver a cabeça de ex-voto (que comprei por ser parecida com Drummond), na estante da sala. Ficou tão transtornada que não conseguia olhar para o objeto; pediu-me que o cobrisse com um lenço e depois fugiu para a cozinha, onde me contou que o seu pior medo era receber uma máscara mortuária pelo correio. Tentei argumentar que não tinha recebido a cabeça, mas a comprara no Mercado Central e, além disso, ela não fora esculpida no molde de nenhum defunto – mas a amiga estava nervosa demais. Tomou um copo d’água e inventou compromissos, para se despedir.

Outra colega me relatou o seu pânico por banheiras. De piscina, não tinha medo nenhum, conforme explicou. O problema eram as banheiras, esmaltadas ou cromadas, com hidromassagem ou sem, pés de garra ou não… todos os modelos lhe tiravam o fôlego e produziam calafrios. Um psicanalista poderia descobrir a origem dessa reação, mas eu apenas me espantei.

Minha história preferida, porém, é a mais bizarra. Trata da fobia que atacou uma pobre moça interiorana, recém-chegada a nossa capital. Em vez de se amedrontar com o trânsito e os aspectos temíveis de alguns monstros, digo, carros, a jovem apavorou-se com garrafas. Claro que ela conhecia garrafas de antes; é esquisito imaginar um lugar onde elas não existam. Mas foi em Fortaleza que o susto apareceu – e continuou. Até hoje a mocinha não pode ficar diante de uma garrafa, seja de que tipo for. É imediatamente acometida por tremedeira nervosa, com suores frios.

Os médicos sugeriram que o seu repúdio era uma resposta ao alcoolismo de um tio. Entretanto, a jovem jamais tivera grande contato com o parente, e também não fazia distinção quanto ao conteúdo das garrafas: contivessem vinho, água, suco ou absinto, sua atitude era idêntica. Outra prova de que a associação não era feita com o líquido e sim com a forma da garrafa, é que a moça podia beber em paz qualquer dose que lhe aparecesse servida num copo. Se, porém, visse a garrafa, começava o nervosismo. Por causa dessa fobia, a garota perdeu vários empregos: nunca pôde ser garçonete ou caixa de supermercado. Ela perdeu até mesmo o noivo, quando ele propôs levá-la a um boliche…

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Morandi

Os coléricos de Nassar

Temos demonstrado, nos textos anteriores desta série dedicada a Raduan Nassar, como o caráter teatralizante de seus livros pode ser percebido por uma disposição ambígua de seus enredos: são construídos dentro do gênero épico, por serem narrativas, mas trazem o estilo do gênero dramático. Assim, como parte sequencial de nosso estudo, passaremos à análise de Um copo de cólera __ obra que traz grandes afinidades (e não só no aspecto dramático) com Lavoura Arcaica.

O livro demonstra uma explícita circularidade, visto que o último capítulo traz o mesmo título do primeiro: “A Chegada”. Muda, entretanto, a personagem narradora. Quem primeiro assume o comando da história, e durante grande parte de livro, é o protagonista masculino. A mulher atinge o monólogo e alcança a postura referencial da cena somente no final, no capítulo de encerramento que surge como um ciclo, reiniciando a história, sob outra perspectiva.

O fato de que a personagem masculina (nenhum dos dois, homem ou mulher, receberá nome próprio, nesta obra) domina a voz narrativa em praticamente todo o livro, é sintomático. Sabrina Sedlmayer (1997: 45) atentou para a circunstância de que em Lavoura Arcaica as mulheres quase nunca eram escutadas: “Com Ana, Rosa, Zuleika, Huda e a mãe __ as personagens femininas do romance __, em nenhum momento da narrativa encontraremos o diálogo do narrador, que sempre se dirige aos homens, Pedro, Lula e Iohána.”

Em Um Copo de Cólera, também é o lado patriarcal que se evidencia, com a predominância do discurso do homem, que parece reger toda a narrativa a partir do seu ponto de vista particular. Entretanto, desta vez a mulher se faz ouvir, e deste choque de falas é que se produz a tensão.

A princípio, logo no primeiro capítulo, o leitor tem noção da total incomunicabilidade entre os amantes. O jogo amoroso faz-se presente, baseado na falsidade das aparências:

(…) e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente (…), depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate (…), e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse. (CC, p. 10)

O capítulo seguinte, “Na Cama”, acrescenta novas considerações sobre o jogo amoroso, a estranheza do relacionamento a dois. Interessante é observar que, para a análise deste livro, convém seguir-lhe as páginas em sua sequência normal, visto que o tempo cronológico, através da sucessividade das ações, aparece aqui mais marcado do que em Lavoura Arcaica. A estrutura deste último livro, antilinear por excelência, nos remete aos traços barrocos da construção literária em Raduan Nassar. Porém, ainda teremos oportunidade de ver, de outro modo, o barroquismo presente também em Um Copo de Cólera.

Em “Na Cama”, o jogo de sedução já pode ser visto numa perspectiva cênica (teatral), como se confere na seguinte passagem, em que a personagem calcula o efeito de suas ações, o poder visual que elas terão:

(…) e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos pra minha andança no quarto (…), e eu, sempre fingindo (…), eu ia e vinha com meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por instantes ao banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama, fiquei aguardando por ela já teso e pronto. (CC, pp. 13-4)

O sexo parece mesmo ser a única possibilidade de integração entre as personagens, em Um Copo de Cólera: o diálogo corporal estabelece a comunhão que, através de palavras, torna-se improvável. O poderio masculino se evidencia em várias passagens ligadas ao sexo: o macho é visto como o todo-poderoso da relação __ embora (como veremos mais adiante) seja exatamente neste ponto que a mulher vá insultá-lo, no momento do clímax dramático. Entretanto, durante a comunhão dos corpos, o poder é do homem, como quando ele comenta que levava a companheira “invariavelmente a dizer em franca perdição ‘magnífico, magnífico, você é especial’” (CC, p. 16).

A disputa começa pelo terreno das palavras. Se os amantes se afinam no sexo, quando se trata das ideias, tudo muda. A explosão inicial, a deixa para que a disputa comece, é criada a partir da reação do homem diante do estrago que as formigas fizeram na cerca-viva do terreno. Em sua raiva desmedida, no susto e no ódio que exprime contra os insetos, vai todo um desejo de preservar os limites da casa, e, por extensão, os limites do eu __ desejo que constrói também uma barreira contra o outro, para conservar a ideologia da personagem a salvo de qualquer invasão.

Diante da reação intempestiva do companheiro, a mulher assume a posição contrária, de calma e crítica. O ódio do protagonista se intensifica, quando a mulher o atinge com ironia, advertindo-o para que use a razão. Seu desejo é o de explodir, “esbofeteá-la na cara” (CC, p. 33), mas consegue controlar-se, questionando seus impulsos de reagir à provocação: “(…) não que eu cultivasse um gosto raivoso pelo verbo carrancudo, puxando aí pro trágico, não era isso e nem o seu contrário, mas a ela, que via naquela prática um alto exercício da inteligência, viria bem a calhar”. (CC, p. 34)

A situação vai se tornando tensa, preparando gradualmente o conflito. O aspecto teatral invade o texto de forma decisiva, como quando o narrador diz que “já puxava ali pro palco” quem estivesse a seu alcance, pois “haveria de dar um espetáculo sem plateia”, forjando dessa vez, na voz, a mesma aspereza que marcava sua “máscara” (CC, p. 36). Prepara-se o disparo inicial, faltando apenas o mote, a gota d’água para o estouro: “eu cavalo só precisava naquele instante dum tiro de partida, era uma resposta, era só de uma resposta que eu precisava”. (CC, p. 36)

Presenciando o discurso agressivo do companheiro, a mulher prepara-se para o confronto. Os indícios teatrais apontam para a força dramática que o texto assumirá: “deglutindo o grão perfeito” do seu chamariz e representando o “seu papel”, ela “entrou de novo espontaneamente em cena” (CC, p. 38). A expressividade também se valoriza: ao descrever o rosto da mulher, o narrador diz que ela desenhava “enfim na mímica o que a coisa tinha de repulsivo” (CC, p. 38).

O homem atua em ânsia de domínio e poder viril, comentando que não iria confundir “um arame de alfinete co’a iminente contundência” do seu “porrete”, tentando não se impressionar com a mulher, com as “unhas que ela punha nas palavras” (CC, p. 41). O artifício do homem é o desprezo; chega a considerar a mulher apenas como alguém com quem se pode contracenar, pois ele precisava “mais do que nunca __ para atuar __ dos gritos secundários duma atriz”, querendo apenas ouvir o seu próprio “berro tresmalhado” (CC, p. 43).

O temperamento explosivo deste homem dará ensejo a comparações com o André, de Lavoura Arcaica. Não só os dois vivem em ambientes rurais (assim como também o próprio Raduan Nassar), mas em várias passagens de Um Copo de Cólera podem-se observar referências ao aspecto marginal ou diabólico que a personagem masculina assume __ da mesma forma que André se declarava maldito, ovelha negra da família. Ora é a mulher quem chama o companheiro de “demoníaco” (CC, p. 48), num tom de sarcasmo, ora é o próprio homem quem afirma: “(…) te digo somente que ninguém dirige aquele que Deus extravia!” (CC, p. 62) Ficar à margem das regras é uma posição assumida pelos dois protagonistas.

Também o próprio Raduan Nassar poderia dizer o mesmo: a margem agora é a minha graça.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, no jornal Rascunho de abril de 2022)

Cena do filme Um copo de cólera (1999)

FRANCISCO

Hoje, dia 4 de outubro, meu pensamento vai para ele – o filósofo do altruísmo, o poeta do meio ambiente, o caridoso em extrema coerência, o santo que protege os animais. Uma figura tão emblemática de humildade que o papa decidiu homenageá-lo, tomando-lhe o nome – e, como consequência, um pouco da sua postura despojada, sem tantos riquíssimos paramentos católicos. Aliás, acho que combina muito bem com Jorge Mario Bergoglio, com seu sorriso e simpatia, chamar-se de Francisco.

Das cenas de sua vida tão longínqua, gosto especialmente de imaginar a pregação aos pássaros, a conversa com o lobo de Gubbio e a descoberta de que o desprendimento é libertário. Quando ele doou até a roupa que vestia, renunciou a qualquer grilhão de vaidade ou convenção social – e, além disso, seu gesto o consagrou como o primeiro santo performático e naturista do mundo…

Tenho em casa algumas estatuetas que o recordam: uma comprei em Salvador; outra, em Sabará. Mas a mais realista foi adquirida em Assis, o lugar de maior encanto que já visitei. Durante todo o dia em que ali estive, num passeio-relâmpago cinco anos atrás, eu me senti abençoada, não há melhor palavra. Entrei na Basílica, arrepiei-me diante dos afrescos de Giotto, andei pelo espaço sagrado da cripta, depois percorri sem rumo as ruas inclinadas e antiquíssimas – mas o fundamental permaneceu invisível: a emoção de ainda encontrar, naquela cidade, a energia de um ser iluminado. Ele esteve ali oito séculos antes, sua túnica exposta na Basílica era tão desgastada quanto uma pele que se queimou, do seu próprio corpo provavelmente só restam vestígios… porém nada disso importava. A presença de Francisco paira em Assis e, óbvio, dirão os devotos, não somente lá.

Embora eu não me sinta à vontade em nenhuma religião (fujo de líderes e dogmas), sei reverenciar as energias superiores e reconheço o exemplo de São Francisco. Confesso inclusive que, de tão presente em meu cotidiano, ele às vezes me surge em sonhos, oferecendo a inspiração da sua existência, que foi tão simples quanto extraordinária.

O seu amor pela natureza, a sua integração com o todo traz o maior testemunho a respeito da paz. Ele condenou o especismo e desenvolveu uma consciência ecológica em plena Idade Média – foi, portanto, um visionário (mas assim não são todos os iluminados?). Os seus milagres e contemplações nos lançam a uma poética que só a mais refinada literatura atinge. Ele foi andarilho e recluso, reuniu multidões mas também sempre agiu sozinho. O que esse homem, defensor da harmonia holística e da fraternidade astral, diria atualmente sobre o planeta? Talvez usasse as mesmas orações, a mensagem que – por ser perfeita – permanecerá idêntica. Entretanto ela parece bem mais urgente agora, não é? Meditemos.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

Surtos de quarentena

      Alguém me disse que o artista cearense Paulo Montserrat infelizmente abandonou a releitura que preparava de “Haraquiri em um encontro de ventríloquos”, obra-prima de René Pollesch, e resolveu passar o confinamento numa floresta bávara, vivendo de coleta. Ele não é um caso único: várias pessoas têm apresentado um comportamento estranho, graças ao mix de 2020. Vírus, medo, desemprego, situação política em mistura com ódios, recalques e frustrações inconfessáveis compõem a fórmula cotidiana de muita gente.

     Assim, não é de espantar a notícia sobre um homem que, durante uma briga com o parceiro, pegou todas as máscaras faciais que ambos possuíam e atirou pela janela. Quero imaginar o arremesso daqueles estranhos pássaros de pano, caindo do vigésimo segundo andar – mas a cena não me agrada (como também não agradou ao síndico do prédio, que multou a dupla por jogar lixo semi-hospitalar no pátio).

     Há também o caso de uma amiga que – logo no início da quarentena – sentiu-se tão aprisionada, que começou a doar os móveis do apartamento. Sua família se desesperou, ao saber que a mesa da sala, com seis cadeiras, tinha ido embora, e ainda uma cristaleira e um guarda-roupa. Ao final, minha amiga se viu apenas com a cama, um armário e a mesinha do computador. “Parece que as paredes estavam se aproximando de mim”, ela disse, “então precisei tirar os móveis para criar distância”.

      A maioria das crises vem pelo desejo de liberdade, e as estratégias para obtê-la vão surgindo, de modo simbólico ou concreto – mesmo que, neste último caso, possam durar pouquíssimo. Certa senhora de um bairro acolá, para escapar do aperreio constante, deixa a filha de 5 anos invadir as casas vizinhas. A mulher se põe distraída, conversando na porta, enquanto a menina explora gavetas, pula no sofá alheio ou, frequentemente, abre a geladeira e agarra o primeiro frasco que encontra… Ao todo, já bebeu soro fisiológico, xarope de groselha, infusão contra reumatismo e vinagrete. É preciso que a própria dona da casa ou outro morador qualquer segure a pequena intrusa e a arraste de volta à mãe, pois esta aproveita cada minuto do descanso e jamais iria, por um gesto espontâneo, recuperar a criatura infatigável.

     Eu também – confesso – tenho exercitado pensamentos mirabolantes para escapar da rotina. Mas freio qualquer atitude prática, quando lembro o perigo de contaminação: a ameaça da pandemia persiste, por mais que alguns finjam o contrário. Portanto, a saída que encontro são as viagens – através de livros, fotos, ou por meios virtuais. Outro dia, fiz um trecho do caminho de Santiago de Compostela pelo google street view. Creio que amanhã visitarei Galápagos… ou, quem sabe, Cracóvia? Enquanto mantiver a curiosidade, vou escapando dos surtos, do precipício que espreita os que se sentem rodar, autômatos e fechados nessa gaiola urbana.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

Ecologia da presença

Tenho feito estudos sobre o teatro, refletindo sobre as mudanças que o isolamento social trouxe para este setor. Assim como outras artes do espetáculo, o teatro por princípio compartilha de um tempo-lugar com seu público – aspecto que se altera ferozmente através de exibições on line. Uma parte das investigações publiquei na coluna que mantenho no jornal curitibano Rascunho; é o meu texto para este espaço durante o mês de setembro: um(a) leitor(a) curioso(a) pode depois conferir no site. Agora, entretanto, gostaria de apenas roçar o tema, trazendo passagens do livro de Hans-Thiers Lehmann, “Teatro Pós-dramático” (Cosac Naify, 2007).

O primeiro trecho que ressalto surge quando o autor menciona um “nicho ecológico” instaurado pela via da percepção, “o campo de uma intersubjetividade que põe em jogo a interação entre os corpos, uma relação de encontro comum em uma situação social que constitui um outro ‘tempo’ entre sujeitos.” E logo adiante afirma: “tanto na atitude ética quanto no cerne da afetividade em geral, encontra-se a indisfarçável situação da ‘presença’ do outro”(p.366). Naturalmente, o(a) leitor(a) percebe que aqui se fala tanto de teatro quanto de vida.

De fato, por mais que louvemos as vantagens tecnológicas que nos aproximam uns dos outros e expandem possibilidades comunicativas, há um lado pernicioso aí. Por que precisamos mesmo fazer aquele curso extra? Será por uma real necessidade ou prazer? Ou ativamos o hábito compulsivo de agir sempre mais e mais, porque o mercado exige, ou um modismo obriga, ou ainda porque essa é uma forma de fugir (dos pensamentos, do vazio rotineiro, das horas livres)? Ser workaholic muitas vezes significa deixar de existir e passar a funcionar, meramente.

A esse respeito, Lehmann é incisivo: “Se os gestos da interrupção reflexiva são considerados como algo antiquado e dispensável em relação ao registro sem demora das informações, a perspicácia versada tecnologicamente ameaça se converter em ideologia, na apoteose do funcionamento cego” (p.390).

Estão em jogo questões éticas, teóricas e sobretudo psíquicas, nesses ambientes computadorizados impostos na quarentena. O efeito zap – que nos leva a mudar o foco de atenção desvairadamente, considerando um fragmento qualquer como unidade informativa (e assim ninguém mais contempla uma foto, por exemplo, ou lê um texto inteiro na internet) – constrói a ilusão de que estamos “ganhando tempo”. Entretanto, adquirimos um vício ansioso, ignorando o que permanece inalcançável por baixo dessa mimese eletrônica.

Embora eu esteja vendo espetáculos on line, dando aulas remotas e fazendo tudo o que ficou obrigatório por força das circunstâncias, não esqueço que são paliativos. Bom mesmo é mergulhar numa experiência lenta de teatro ou outro tipo de convívio – uma troca física que lembre: eis a presença natural. Uma ecologia arcaica, irrepetível.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

Na paz e na guerra

A temporada de confinamento que enfrentamos, desde março deste ano, teve repercussões que ainda vão lançar raízes por longo tempo. Em minha escrita para o jornal curitibano Rascunho, inaugurei 2020 com uma série ensaística sobre Lygia Fagundes Telles, e esse projeto temático exigia persistência. Mas agora que o ciclo de textos se encerrou, eu me permito divagar por vários assuntos. E penso nas leituras que fiz durante a quarentena – sobretudo Guerra e Paz, obra que parecia esperar, paciente, a minha disponibilidade. Como diante de todo clássico, já suspeitava que as críticas não me tinham preparado o suficiente (tarefa impossível, aliás) para a aventura de mergulhar no texto. Porém, não imaginava que o livro de Tolstói fosse me cavar tantos abismos místicos, até anarquistas – que sei eu? –, no processo de leitura.

Sob o colossal trabalho do autor russo, fica clara não somente a extensa pesquisa histórica feita, mas também a necessidade de pôr questões filosóficas em pauta – e orquestrar tudo, saber em que hora, e com que personagem, certa deriva podia se desenvolver. A escrita em si, se para ele foi uma parte fácil, nem por isso se tornou veloz: fluir não significa correr. Em nenhum momento a narrativa perde compasso, e é magistral o tema implícito que, adotando esse ritmo, o autor injeta: o de que todas as histórias, todas as ações, são igualmente importantes… ou igualmente inúteis, conforme se enxergue.

A alternância que o enredo propõe, dedicando-se primeiro à vida frívola dos salões aristocráticos, e depois aos episódios das batalhas, poderia criar no(a) leitor(a) a expectativa de que estes últimos, sim, são o miolo do livro, a sua razão de ser (e inclusive o enaltecimento tradicional das guerras parece relegar a “paz” ou a vida cotidiana a um lugar mesquinho). Com a leitura, percebemos o equívoco: tudo é o miolo, tudo está no centro.

Não existe senão a vida cotidiana, e em cada batalha os personagens circulam, atordoados, do mesmo modo inconsciente como nos salões obedecem a rituais de polidez. Ninguém tem uma visão grandiosa de nada, porque a escala do indivíduo é sempre ínfima – e a tal glória de haver lutado numa guerra, no fundo, resume-se à pura sorte de ter escapado vivo (não por mérito, porque, na dança de um tiroteio, é apenas pela coreografia divina que um determinado soldado escapa de cair alvejado onde, um segundo antes, marcava o passo).

De forma equivalente, na sociedade, o jogo de interesses favorece uns, desmascara outros. Tudo é pequeno, mesquinho e passageiro; os soldados morrem inutilmente, para que depois os imperadores façam acordos – e em que a vida de Napoleão ou a do czar Alexandre pode ser mais valiosa do que a de outra pessoa qualquer? A única razão para essa hierarquia foi o juízo coletivo que a legitimou, santificou, exaltou uns pouquíssimos em detrimento de todos os demais.

Anotei no meu diário, em 20 de abril: fiquei profundamente impressionada com a cena em que o personagem Pierre encontra um idoso na estação de trem, ao fugir da esposa, sentindo-se indiferente ao próprio destino – se continuaria igual, ou se morreria ali sem um lamento. Ora, Tolstói escreveu Guerra e Paz aos 35 anos; com mais de 80, depois de seguir convicções que o levaram a doar grande parte de suas terras aos camponeses, perseguido judicialmente pela esposa (que tentava impedi-lo de doar o resto), ele foge do inferno familiar, tomando um trem – e morrendo numa das estações, em Astápovo.

É inevitável pensar que nessa cena do livro o personagem encontra o próprio autor, transfigurado no velho que ele seria 50 anos mais tarde – e os dois conversam. O personagem se sente irresistivelmente atraído pelo ancião, que sabe quem é Pierre, conhece a sua história e o aconselha. O movimento simula um encontro com o divino; se consideramos que há também uma Grande Narrativa por trás de nossas vidas, a possibilidade de um dia conversar com Deus é equivalente a essa, de um personagem encontrar-se com seu autor, numa espécie de mise en abîme diegética que nem Pirandello ousaria. Notemos: em Guerra e Paz o procedimento foi involuntário da parte de Tolstói, e em Seis personagens à procura do autor a metaestratégia ocorreu de modo bastante consciente…

Em outro capítulo, a cena de um debate entre Andrei Bolskónski e Pierre Bezukhov traz novas considerações à baila. Após sua conversão à maçonaria, este último sente-se santificado por ter ordenado, em suas terras, o fim do trabalho infantil, a construção de igrejas, hospitais, escolas e uma série de benefícios ao “próximo” – sem saber que sua sensação é ilusória, pois a corrupção administrativa de suas propriedades apenas finge desenvolver as melhorias, mas na verdade os camponeses seguirão explorados de qualquer maneira, talvez até mais que antes.

Andrei, por outro lado, não acredita que se possa “fazer o bem”, porque a própria interpretação do que é bom pode ser mera arrogância de quem acha que, devido a estudos que fez, por exemplo, conhece a Verdade. Como alguém presumiria o que é bom para uma pessoa, se não sabe sua realidade ou não ouve as demandas diretamente dela? Essa foi a perniciosa ideologia por trás de discursos colonialistas, populistas, salvacionistas ao longo dos séculos – e ainda hoje isso carrega polêmicas antropológicas ou culturais, dentre tantas. No fundo, ninguém faz nada senão por si mesmo – e um ato de caridade pretende muito mais aplacar a consciência do doador, ou construir dele certa imagem (pública, inclusive) de benéfico. A paz também se compra, assim como a opinião alheia.

Mas a postura de Andrei – que esteve a ponto de morrer numa batalha, e que antes disso desejava a “glória”, ou seja, vivia em função dos outros, para os outros – é de um radical egoísmo sábio. Ele decidiu viver só para si e, quando se dedica à família, sabe que continua no perímetro do seu eu, das coisas ou pessoas que lhe são caras e até, por assim dizer, ajudam a construir sua identidade. Os outros de fato, os desconhecidos, os anônimos, os figurantes que podem cruzar seu caminho, as pessoas por trás das estatísticas, de todo tipo de construção ou serviço, a humanidade em geral, essa massa distribuída ao longo dos séculos e países… isso não lhe interessa. Ou lhe interessa tanto quanto um cenário ao fundo de um espetáculo: é algo que existe ali, mas nunca em evidência.

Andrei – por sua experiência de quase-morte – entendeu como é responsável unicamente por si; ninguém lhe restituiria a vida ou a viveria em seu lugar. Portanto, cuidar dele mesmo é a sua missão grandiosa, o seu heroísmo. O que a sociedade elege para a fama, o sucesso em algum domínio (por exemplo, Napoleão), a Andrei se revelou como uma sombra que atrapalhava sua visão do céu, no momento da agonia, ferido na guerra. De que lhe importava se aquele homem a seu lado era um imperador, um tirano ou um sujeito vulgar? Andrei só se preocupava consigo, não fazia o mínimo esforço para reconhecer a personalidade tão aclamada que, ali, era apenas um incômodo.

Ao sobreviver, Andrei se transformou. Deixou de ter “uma vida a serviço de” e passou a ter “uma vida” – ponto. Sem se preocupar em justificar sua serventia, os atos que fizesse em prol da humanidade, os benefícios, a honra, a justiça. Todos esses valores se esvaziaram, saíram da casca das palavras e perderam o sentido. Assim como a vida alheia também perdeu o sentido, virou esse cenário distante que Andrei não se esforça mais por discernir ou compreender – sabe que isso agora não lhe diz respeito. Aliás, nada jamais diz respeito a uma pessoa a não ser ela própria: Andrei admite tal princípio com naturalidade e modéstia. Ele não é um monstro interessado em prejudicar os demais (como às vezes o egoísmo parece sugerir, embora o conceito de centrar-se no eu nada tenha, necessariamente, de inveja ou maldade). O seu lema poderia ser: viva e deixe viver. E deixar viver não é ajudar a viver; é largar o outro com a própria vida, fazê-lo responsabilizar-se por ela, porque essa é a situação inexorável de cada um no planeta.

O desenvolvimento posterior deste personagem, entretanto, mostra como uma condição filosófica é frágil, pode desmoronar facilmente. Depois de um tempo dedicado a si, voltado para a sua paz egoísta, Andrei se desestabiliza sob a influência de Pierre (que, no fundo, é um pobre imbecil manipulado, mas desconhece a própria realidade). Volta a participar de círculos sociais e políticos, ocupa sua vida com ações que não compreende nem questiona, simplesmente as repete porque é o que todo mundo faz, é o que esperam dele, o que de fato exigem. Sim, embora tudo pareça sutil e camuflado, é posto como obrigatório – se ele se recusa a caber no papel destinado, deve explicar-se, convencer, o que parece mais cansativo que a obediência. Caso se recuse sem dar explicações, será visto como um louco, um ser hostil ou no mínimo excêntrico, e vão isolá-lo, abandoná-lo… odiá-lo (por ter a coragem de fazer o que, inconscientemente, a maioria deseja mas não arrisca, e por destruir, ou arranhar ao menos, o escudo corporativo que sustenta a sociedade e inventa um sentido para a existência dos indivíduos, ao enfiá-los em papéis específicos).

É preciso uma disciplina imensa, para ser um dissidente. Mas não falo de quem abandona as regras de um grupo para seguir as de outro; alguém que se converte, por exemplo, a uma religião ou ideologia, não faz nada original. O dissidente é aquele que recusa (“I prefer not to”, como dizia o Bartebly de Melville), e para tal não precisa fazer anúncios, chamar a atenção para o espetáculo de sua negativa, como também não precisa arranjar adeptos, outras pessoas que o apoiem (isso já seria formar um grupo, cair em regras).

A recusa pode ser silenciosa, íntima. As atitudes de um dissidente podem soar distraídas, banais até, insignificantes: é quando alcançou o seu propósito. Porque, se a opinião social considera o opositor uma ameaça, não cessará de combatê-lo; porém, se vê em seus atos algo inofensivo, então vai deixá-lo em paz, com aquele tipo de gesto frustrado que os adultos adotam com crianças que não lhe parecem birrentas, mas ainda assim são teimosas. “Pois faça o que quiser!”, dizem, e não deixam de espiar ocasionalmente a criança, mas a vigilância relaxa.

Isso já representa a liberdade.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de agosto, com leves adaptações. Pode ser lido aqui)

Metaforizar

Benjamin Moser, em sua recente biografia de Susan Sontag, indica – como um dos eixos obsessivos da trajetória desta pensadora – a permanente reflexão sobre a metáfora. Logo no início do livro, assinalo a seguinte passagem: “Para Sontag, a realidade – a coisa real, despida de metáfora – nunca foi de todo aceitável. Desde muito jovem, ela soube que a realidade era frustrantemente cruel, algo a ser evitado” (Companhia das Letras, 2019, p.22)

Não somente dois ensaios de Sontag, “Aids como metáfora” e “Doença como metáfora”, parecem confirmar a predileção da autora para se debruçar sobre o assunto. Nos seus volumes a respeito da arte fotográfica, Sobre fotografia e Diante da dor dos outros, ela reforça este aspecto: a fotografia não se confunde com a realidade. É sempre um processo representativo, metafórico – uma interpretação do mundo, jamais o mundo em si.

Em minhas aulas na Universidade Federal do Ceará, esse tipo de debate se instala de modo fácil, sobretudo nos estudos linguísticos e semióticos. A metaforização é um processo inevitável, porque a própria linguagem nos afasta do empírico, molda um simulacro, um substituto onde tantas vezes mergulha a maior parte da nossa vida, quando não a totalidade.

Podemos não fazer reflexões tão conscientes quanto as que Susan Sontag pôs em seus livros, mas para todos nós, humanos, metaforizar também se torna um procedimento crucial.

A ânsia pelo conforto simbólico nos faz rejeitar situações em que o corpo surge enquanto mero pedaço de carne, organicamente funcional, com seus ciclos, excreções, apetites etc. Criamos estratégias de erotização – transformação simbólica – para travestir nossos impulsos “animalescos”. Comer ou beber, por exemplo, passam a ser atos sociais, ritualísticos até. O sexo se reveste de sentimento amoroso (uma invenção cultural, alguns dizem), a procriação e a morte ganham interpretações sublimes ou religiosas (de novo, a cultura). Estipulamos pudores ao comportamento, escondemos o biológico de que somos feitos.

Acreditamos que a vida seria grotescamente insuportável, sem esses mecanismos de deriva.

Quase todos os seres humanos realizam transferências simbólicas (as exceções são conhecidas dos psicólogos); portanto, esse processo não é exclusivo das artes. Mas é claro que há uma grande diferença entre metáforas cotidianas, clichês desgastados que apenas reforçam hábitos mentais, e o tipo de golpe flamejante que encontramos na boa literatura, digamos.

Exatamente por ser inesperado, o gesto artístico nunca se reduz a imitações ou formulazinhas. Satisfaz – e depois escapa. Como a própria existência, aliás.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

 

UM HIPPIE TECNO

O músico e artista plástico David Byrne, no seu Diários de bicicleta (que foi uma viagem possível – e extremamente agradável – nesta quarentena), aborda inúmeros assuntos. Sob a proposta de compilar vivências em diversos países, através de turismo ou turnês, quando Byrne sempre encontra um modo de pedalar, seja em Manila ou Istambul, Salvador ou Berlim, o livro faz um percurso reflexivo variado. De questões urbanas e culturais a perspectivas históricas, artísticas e filosóficas, aprendemos a cada página. Eu poderia citar aqui muitos temas, mapeando os capítulos de Byrne – mas elejo um, em alerta sobretudo graças ao momento atual.

Ao tratar sobre a região do Vale do Silício, em São Francisco (EUA), o autor estabelece certo conceito à primeira vista estranho: o de um hippie tecno. Conforme sua percepção, os “jovens ponto-com” tinham, assim como a geração paz-e-amor, um interesse revolucionário em fazer algo que unisse todas as pessoas. “O livre-para-todos da blogosfera e a loucura total das coisas que as pessoas postam on line compartilham uma bela sensação de tanto faz. A sensação de liberdade anárquica permanece”, assinala.

Ora, essas podem ter sido iguais motivações de base, mas é inegável que a utopia nerd dos anos 1970 se transformou num meganegócio que apenas finge promover as possibilidades humanas livremente – na verdade, paga-se caro pelo acesso a informações, mídias, plataformas de reuniões remotas etc (não estou falando só no preço dos planos de internet, vocês me entendem). Com a pandemia de 2020, a vida virtual saiu favorecida: ainda mais pessoas agora devem pensar que presenças e paisagens reais são dispensáveis ou substituíveis.

Essa, acredito, é justamente a crença contrária à de um hippie.

Um hippie não prioriza alternativas práticas, “confortáveis” – especialmente se elas implicam em vigilância, monitoramento das atitudes.

O próprio Byrne comenta que, quando chegou a São Francisco na época da juventude, sentiu-se atraído pela visão hippie-eco-tech… mas acabou vagando com um amigo pelas ruas de Berkeley, tocando violino e ukulele. Entretanto, o estilo Woodstock terminou há tempo, alguém poderia dizer. Hoje os andarilhos utilizam GPS, os nômades já não são criaturas secretas… Concordo, porém imagino que uma nova tendência virá – um retorno ao rústico, pelo abuso total da tecnologia.

Depois de nos obrigarem a usar tantas máquinas e conexões artificiais, e nos forçarem a manipular softwares para tudo, chegaremos um dia à exaustão revoltosa. Faremos um gesto que nem precisa ser grandioso – e, claro, não será divulgado no instagram. Simplesmente deixaremos o celular, a câmera, o carro, até mesmo as roupas, à beira de uma praia naturista. De lá sairemos com um tipo de sabedoria. Inigualável. Intraduzível. O trampolim da aventura.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

A memória da dor

Nesta parte final de nosso estudo sobre Lygia Fagundes Telles, trataremos de alguns de seus textos de cunho memorialístico, nos quais a autora revela os componentes de regra e também de mistério, que estão presentes no seu ato de narrar. Sem a técnica, um(a) artista não passa de alguém que improvisa de modo mais ou menos afortunado; por outro lado, sem a emoção, a verdadeira essência da arte lhe escapa – por isso, o equilíbrio entre estes elementos é tão importante.

Já percebemos uma discussão deste tema metaforizada no conto “A estrutura da bolha de sabão” – mas, antes que passemos à análise desta história, vamos recuperar sua origem. No texto “Bola de sabão”, presente no livro Conspiração de nuvens, encontramos a ideia da criação deste conto. Lygia explica como foi relacionando a memória com a ficção, dentro de um aprendizado infantil que também requer disciplina:

Então cerrei os olhos e como num sonho me vieram as lembranças das chácaras e quintais da minha meninice onde soprava as bolhas de sabão: enchia a caneca com sabão dissolvido na água, colhia o mais fino canudo do mamoeiro e sentada debaixo da mangueira ficava soprando as minhas bolhas. Bolas de sabão e não bolhas, alguém me alertou. Está certo, bolas, ah! como eram belas essas bolas coloridas que se desprendiam do canudo e iam subindo redondas e transparentes na mais delicada das mágicas. Película e oco. Era uma operação que exigia cuidado porque com o sopro forte a bola estourava no meu queixo. O sopro fraco também não funcionava porque assim elas nasciam tímidas e antes mesmo de se desprenderem desfaziam-se em espuma. Era preciso paciência até descobrir o sopro exato para que subissem gloriosas refletindo o verde da folhagem e o azul do céu… (TELLES, 2007, pp.22-3).

Mais adiante, a escritora ressalta que a bola de sabão era a própria “imagem do amor”, o que nos leva ao famoso título A disciplina do amor, reiterando a ideia de que o sentimento – bem como o trabalho artístico – parece requerer uma medida certa, para vibrar da melhor maneira.

Mas também pensamos no título da coletânea Conspiração de nuvens, pela associação entre bolas de sabão e nuvens, ambas efêmeras e voláteis. No conto “Anão de jardim”, integrante do livro A noite escura e mais eu, já observamos a perspectiva da alma como um “feixe de memórias”. Ora, há vários livros de Lygia que se enquadram nesta categoria de coleção memorialística – e, da mesma forma com que a recordação é um elemento imponderável (como a nuvem – ainda que reunida em coletividade, conspirando), igualmente podemos pensar na criação estética.

Muitos destes textos de memórias da autora são metalinguísticos, debruçam-se sobre o ofício da escrita, até mesmo como parte indissociável do universo biográfico e recordatório de Lygia. Nesse sentido, o processo de arquitetar as palavras em seu alcance certo, como o “sopro exato” para construir bolas de sabão, surge numa imagem representativa. E a sua estrutura misteriosa (“película e oco”) é tão frágil e surpreendente quanto o próprio ser humano – como aparece no conto intitulado “A estrutura da bolha de sabão” e como Lygia ressalta neste texto de memórias: “(…) só lá adiante vou descobrir (ou não) como funciona essa tal de estrutura que deve ser assim como o próprio ser humano, indefinível, inacessível. E incontrolável.” (p.23)

Esta é uma citação que, à primeira vista, parece contrariar o objetivo de alcançar a medida justa, a disciplina, o controle. Mas não esqueçamos que tal prática metódica – ajustada às emoções, ou ao fazer artístico – não apenas é um constante aprendizado, que passa pelas mais variadas frustrações (como o provam os contos que aqui analisamos, cheios de personagens que veem sua organização ou sua rotina ruir, em algum momento), mas é ainda uma prática que surge completamente despida de ranço doutrinário na obra de Lygia, visto que a própria reconhece que o humano é e sempre será “incontrolável” – embora o esforço da razão possa investir na direção contrária. O sucesso desta empreitada, porém, é circunstancial; como realização plena, será utópico.

Assim é que, na história intitulada “A estrutura da bolha de sabão”, temos o “amor calculado” para controlar o delírio das bolhas – um “amor de ritual sem sangue”. Mas sabe-se que a perfeição está condenada à ruptura; a disciplina não resiste por muito tempo; é frágil como uma bolha, transparente. Talvez por isso o personagem que se dedica ao estudo físico dessas bolhas de sabão seja um doente e apareça de chambre verde (a cor do místico), fazendo lembrar, no seu relacionamento com a esposa, os personagens-vítimas de mulheres representativas da morte, surgidos nos contos “Herbarium” e “O jardim selvagem”, por exemplo.

O texto “Elzira” também é bastante esclarecedor do universo criativo de Lygia. Trata de uma história contada pela mãe de Lygia, sobre uma antiga parenta, a “morta virgem” Elzira, que diante de um amor impossível preparou o próprio fim, com sinistra meticulosidade.

A persistência demonstrada por aquela parenta, através do seu plano para “apressar a morte”, talvez tenha sido uma das primeiras lições que Lygia Fagundes Telles recebeu, a respeito de como lidar com a dor. A tragédia de Elzira não é apenas o suicídio, mas passa pela constância de seu sofrimento que, apesar de aparentemente tão moderado (ou traduzido numa simples tristeza), foi grande o suficiente para aniquilá-la. É essa corrosão pela amargura íntima e sua capacidade de discrição o que interessa a Lygia e se transforma em matéria-prima da maioria de seus contos.

Ainda podemos lembrar, dentro desse veio biográfico, que a escritora aprendeu também a disciplina através da prática esportiva, como estudante de Educação Física na Universidade de São Paulo. Nesse sentido, o texto “O chamado” é uma das mais belas sínteses, pela menção à prática da esgrima. Por sua imagem simbólica do coração exposto que se entrega ao ataque, o esporte mostra como a técnica e o controle são vitais:

O professor provocava e investia enérgico nos treinos com máscara e florete. Em guarda! ele ordenava e eu tentando disfarçar a natural lerdeza, tinha que ser sagaz e me confundia em meio às ordens, Se defenda depressa que agora você se descobriu, olha o peito desguarnecido! Eu reagia tarde demais porque ele avançava implacável até tocar com a ponta do florete no meu coração exposto. (TELLES, 2007, pp.127-8)

Novamente no livro Conspiração de nuvens, encontramos outra relevante passagem. No texto dedicado a Machado de Assis, Lygia faz uma homenagem ao autor brasileiro, evocado não apenas por sua literatura, mas pela estátua posta na instituição que ele fundou, a Academia Brasileira de Letras. Inspirada pelo estilo machadiano, ela reflete sobre como o ser humano, apesar de toda a necessidade, quase sempre escapa de uma disciplina:

A natureza humana sem controle e sem explicação, e isso vem de longe, aquele lá da estátua sabia que o sedutor ou o repulsivo, o jovem ou o velho, o amado ou desamado, na paz ou na guerra – ah! ele sabia que esse ser inocente ou culpado não tem mesmo explicação. Afinal, não é em vão que se esmerou no ofício de “remexer a alma e a vida dos outros. (TELLES, 2007, p.33)

Um momento de identificação entre Lygia e Machado, neste texto, é quando ela menciona os “coágulos de sombra” da estética machadiana, as ambiguidades. É pertinente lembrar todas as análises anteriores que fizemos e que mostraram histórias roçando por enredos ambíguos, cheios de símbolos ou subentendidos que não se mostram claramente. Mas, para além disso, é sintomático observar como Lygia usa, para Machado de Assis, essa expressão, “coágulos de sombra”, retirada de um conto dela mesma, “O menino”.

As tais áreas nebulosas, portanto, zonas de descontrole ou mistério, são realçadas tanto por Machado de Assis quanto por Lygia Fagundes Telles – uma prova de como a autora reconhece que, em que pese o esforço por uma disciplina, permanecem os territórios imprevisíveis na literatura e na vida.

***

Este ciclo de textos se encerra aqui – provisoriamente, porque na verdade nada se fecha por completo. E, na expectativa de apontar horizontes disponíveis, recomendo um livro belíssimo, A construção de Lygia Fagundes Telles (Edufal, 2016), escrito por Nilton Resende. A obra realiza uma edição crítica de Antes do baile verde, acompanhando as revisões que a autora empreendeu ao longo do tempo. Os rastros de mudança, evidenciados pela trajetória das edições do livro, mostram “uma escritora que assume a coragem de ferir a própria criação, curando-a depois e entregando-a mais uma vez ao seu leitor” (p.477).

Observar as eleições estéticas que Lygia Fagundes Telles preferiu, de uma edição a outra, possibilita seguir o seu percurso de amadurecimento narrativo, compreender o processo criativo inquieto, que nunca cessa, em sua produção. Como destaca Resende, ao fim destas análises, o entendimento nos leva a uma certeza sobre Lygia: “é hora de reler”.

Tércia Montenegro (texto publicado também no jornal Rascunho)

Pandemundo

No canal do psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet, uma live do mês de junho traz uma conversa com Colette Soler, a principal herdeira das bases lacanianas. Essa pensadora já havia me capturado desde o seu livro O que Lacan dizia das mulheres, que uma pessoa querida me emprestou e até hoje não consegui devolver (por causa da quarentena, juro).

Pois bem, no tal vídeo, disponível no youtube, parte-se do conceito de “Pandemundo”, discutido por Soler para o levantamento de questões pertinentes a uma pós-epidemia. O assunto enseja inclusive um debate sobre a incidência política da psicanálise: afinal, esta, conforme Lacan, é uma compensação, o “pulmão artificial de um mundo que se tornou irrespirável”. Vale notar como o autor francês ultrapassou profeticamente a metáfora, se lembramos a atuação da covid, prejudicando sobretudo a capacidade respiratória.

O psicanalista recolhe o que sufoca, nas urgências subjetivas. Se isso parece ser algo essencial, não se torna necessariamente popular, tendo em vista que analisar o sofrimento nem sempre significa apaziguá-lo (o que outras terapias psicológicas parecem perseguir de modo imediato). E esse girar em torno da “impotência da verdade” agora talvez se defronte com circunstâncias ainda mais singulares.

A retomada dos hábitos e valores antigos, vinda com o desconfinamento, será um golpe nos que acenavam com utopias. Mas de fato torna-se difícil perceber o que muda na realidade, no que Lacan mencionava como esse “caminhar nas profundezas do gosto”, da escolha em si. A relação do sujeito com a morte – o significante-mestre – certamente foi responsável pela virada que despertou quase todos nós, por alguns meses em 2020. O temor da morte se tornou planetário; o evento foi, portanto, histórico.

Porém a hipótese de um despertar da humanidade, após o estupor, é polemizada pela frase de Lacan: “Quando despertamos de um pesadelo, é para continuar a dormir”. Eis o grande risco que vivemos: todas as reflexões, autoaprendizados, atitudes solidárias e políticas, decisões ecológicas e anti-consumistas, tudo o que de certa forma ganhamos com o pesadelo que nos tirou de uma vida mecânica em prol do(s) sistema(s) poderá persistir?

Talvez já estejamos readormecendo, diz Soler. E sobretudo a partir de agora, com uma reabertura ou “flexibilização” dos serviços e atividades públicas. Algumas pessoas começam a roncar, outras foram decididamente engolidas pelo velho estado catatônico, confundindo felicidade com rotina. Como bem pontuam os psicanalistas, o choque pode ter sido mundial, mas as respostas são particulares. O trauma revela o temperamento – ou a fantasia, o sintoma, aquilo que cada um tem na sua individualidade.

Eu sinceramente me apego aos que persistem atentos, validando mudanças que aconteceram em si próprios. Em respeito a esse processo, resistimos ao mecanismo anestésico de tudo o que se vende – e venderá – como “normal”.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)