Em plena luz – Sinopse

“Uma história de amor entre uma artista e um matemático, com o cenário de Paris”: este foi o primeiro argumento para o romance. Mas, no decorrer do processo, o livro se torna uma história sobre fugas. Lu, a fotógrafa que se faz escultora antes de voltar a exercer o seu ofício, precisa pensar sobre o corpo: o seu próprio corpo, que escapa para outras paisagens, foge do sofrimento e dos convívios desastrosos, e o corpo dos outros – refugiados, imigrantes que levam apenas o que a experiência de si carrega, pois abandonaram todo o resto. É contra eles que o matemático Étienne se revolta: este personagem detestável também foge. Os seus preconceitos são modos de se desviar do alheio, esquivar-se à diversidade do mundo.

O corpo dos terroristas, o corpo estilhaçado dos fanáticos e das vítimas: Lu está em Paris na época do atentado de 13 de novembro de 2015, e não pode evitar uma comparação entre os tipos de violência. É violento tudo o que agride o indivíduo, seja aos poucos ou subitamente, seja no ataque físico ou psíquico. Nesse sentido, a sociedade é uma potência de agressividades, com seus códigos de repressão moral, religiosa, comportamental… Lu também se agride, mutila o próprio nome, que não aprecia por inteiro. Quando volta a Fortaleza, ainda suporta a violência de um emprego que detesta – mas por fim, após um aprendizado de arte e de autoconhecimento, ela (que neste percurso conheceu várias pessoas, com suas singularidades) está pronta para experimentar.

Acabou a fase dos esconderijos, das horas úmidas em que se debruçava sobre a matéria pegajosa das esculturas. Lu superou a prisão dos medos e das conveniências; sabe que tudo pode acontecer em plena luz do dia – e volta a fotografar. Volta a celebrar as imagens, de si mesma e de um novo amor, com suas possibilidades de aventura.

 

Vamos conhecer este meu novo livro? Em plena luz: lançamento neste sábado, às 15h, no Museu da Fotografia de Fortaleza.

Literatura para pensar

No começo da juventude, quando comecei a comprar meus próprios livros, ocasionalmente fui atraída pelas estantes dos “mais vendidos” – sem saber ainda que o critério de mercado não dava qualquer garantia de qualidade, às vezes muito pelo contrário. Toda a ficção que adquiri nesses espaços fez com que me sentisse fraudada – mas na época eu não alcançava bem o motivo. Afinal, ali estavam as histórias, narradas com estratégias de suspense que não me deixavam largar o livro antes do final, como se diz. Entretanto, a sequência de ações, de fatos mais ou menos surpreendentes, não bastava para causar impacto. Quando eu terminava de ler, já havia esquecido o conteúdo; ele não reverberava nem um pouco em mim, não me fazia querer guardar o livro para depois recuperar um trecho, pensar a respeito.

Eu me atormentei por um tempo com essa espécie de incômodo: intimamente irritada com aquelas obras descartáveis, passei a evitá-las, mas de um modo quase secreto. Filha de professores que era, e desde sempre adoradora de bibliotecas, a ideia de abominar um livro me parecia herética.

Aos poucos, fui admitindo a verdade: havia, sim, muita publicação péssima. Previsível. Repetidora de fórmulas. E o que não corria esse risco era apenas um tipo de literatura que fui reconhecendo como filosófica.

Muitos autores de glória universal – Marcel Proust, Wisława Szymborska, Sylvia Plath, Clarice Lispector, Robert Musil, por exemplo – se encaixam nessa proposta. E também Witold Gombrowicz, que no seu Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos demonstra como exerceu, de modo bem consciente, essa escolha ao longo de sua carreira.

Esse livrinho, conforme o prefácio de Francesco M. Cataluccio, nasceu de aulas que ajudaram “o escritor polonês a suportar os últimos meses de sua vida”. A ideia veio de Dominique de Roux, que percebera como a filosofia era um tema estimulante para Gombrowicz, conseguindo distraí-lo de sua doença. Assim, por sugestão do amigo, o Curso foi ministrado de 27 de abril a 25 de maio de 1969, para apenas dois alunos: o próprio Dominique de Roux e a esposa de Gombrowicz, Marie Rita Labrosse.

Como todo volume que reúne apontamentos ou anotações, o Curso tem irregularidades, repetições, trechos incompletos. Mas até isso contribui favoravelmente: parecemos ler como quem conversa, raciocina em voz alta – filosofa. Gombrowicz nos leva por uma história do pensamento que vai de Kant a Marx. Há passagens bem-humoradas (e nelas reconhecemos o autor de Cosmos, de Ferdydurke), como quando ele resume: “Kierkegaard era um pastor dinamarquês, grande admirador de Hegel. De repente, ele lhe declarou guerra e foi um dos momentos mais dramáticos da cultura.” Em outros momentos, torna-se sarcástico: “Os filósofos, menos Schopenhauer, parecem pessoas que, comodamente sentadas em suas poltronas, tratam a dor com um desprezo absolutamente olímpico, desprezo esse que desaparecerá no dia em que, indo ao dentista, gritarão: ai, ai, doutor.”

Mas as suas grandes críticas e reflexões circulam a obra de Sartre: “Declarou simplesmente e honestamente que apesar de ser impossível reconhecer a existência do outro, não existe outra maneira senão reconhecê-la como uma existência que salta aos olhos. Aí se desfaz dramaticamente toda a filosofia de Sartre, todas as suas possibilidades criativas, e este homem dotado de um gênio extraordinário torna-se um triste senhor que, no fundo, é obrigado a fazer uma filosofia de concessões. Seu pensamento torna-se um compromisso entre o marxismo e o existencialismo. E então todos os seus livros tornam-se a base de um sistema moral em que tudo vai servir para sustentar uma tese concebida anteriormente.”

Lembro agora que Gombrowicz numa entrevista certa vez afirmou que “o propósito da literatura não é resolver problemas, mas colocá-los”. Esse rumo – de levantar questões, muito mais do que ações – aponta para uma literatura do pensamento, que dialoga estreitamente com textos filosóficos que “não se acovardam”, como ele dizia. Nesse sentido, também está clara, por exemplo, a presença de Merleau-Ponty e de sua fenomenologia da percepção em Rituais, livro do holandês Cees Nooteboom. Vejamos alguns trechos:

“E sua mão que acariciara o primeiro seio, que fechara os olhos do primeiro morto, traíra sua memória, traíra esse primeiro seio e traíra a si mesma ao envelhecer, deformar-se, macular-se com as primeiras marcas escuras da idade, com as veias mais grossas, tornando-se uma mão de quarenta e cinco anos, poluída, deteriorada, experimentada, precoce mensageira da morte que consumira, tornara irreconhecível, impossível de se encontrar, a mão de outrora, mais fina, mais branca, hesitante – embora ele continuasse dizendo “minha mão” e assim fosse fazer até o dia em que uma mão futura, viva, a colocasse, inerte, sobre seu corpo, em forma de cruz sobre a outra mão gêmea.”

“(…) ele [o personagem Inni] continuaria experimentando uma certa irritação para com aqueles que exigem sempre respostas precisas, ou que pretendem possuí-las. O interessante era justamente o aspecto enigmático das coisas, e não convinha querer colocar tudo em ordem. Com esse tipo de comportamento, causava-se uma perda irreparável. Ele ainda ignorava que às vezes o mistério se torna mais denso com uma reflexão precisa e metódica.” Os grifos anteriores são meus, para realçar como é exatamente isso o que a reflexão filosófica faz.

Haveria ainda várias passagens, destes e de outros autores, que eu poderia trazer para mostrar, digamos, que a formulação do Ser-no-mundo (onde a pessoa e o mundo são mutuamente constitutivos) é central também para a arte literária. Mas vamos encerrar por aqui, esperando que estas palavras já encontrem eco. Em mim, elas são essenciais para o exercício da mente. Parafraseando o que os surrealistas diziam acerca da beleza e sua necessidade convulsiva, hoje eu percebo: a literatura, ou será filosófica, ou não será.

 

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho)

 

 

 

Nuvens

Stieglitz

“Era a técnica daqueles dias o que fazia com que a foto ficasse antiquada e agudizava a contradição: o atemporal continuava sendo-o e, ao mesmo tempo, ficava marcado no tempo como algo dos anos vinte. O mesmo havia acontecido com as formações de nuvens de Stieglitz. O que ia flutuando pelo céu era uma única nuvem que já nunca se deteria e que havia passado rápido através da paisagem como um globo dirigível, uma nuvem que haviam visto pessoas que já não existiam. Mas, através da foto, essa nuvem se havia convertido em todas as nuvens, nas anônimas formas de água que sempre estiveram ali, que estavam ali antes de que houvesse pessoas, que se tinham aninhado em poemas e refrões, corpos celestes fugazes que quase sempre percebemos sem ver até que chega um fotógrafo que outorga ao mais efêmero de todos os fenômenos uma durabilidade paradoxal, obrigando-te a refletir sobre o fato de que é inconcebível um mundo sem nuvens, e que cada nuvem, seja onde for, represente todas as nuvens que nunca vimos e que nunca veremos.” (Cees Nooteboom. El día de todas las almas. pp.89-90)