Os muitos medos

Madonna, por Edvard Munch

Eu era bem menina quando tive o meu primeiro medo abstrato, por assim dizer – um sentimento motivado por algo que eu não via, nem se relacionava à dor física (pelo menos, não diretamente). Era o medo da inflação. A palavra, em pronúncia diária na minha casa durante a década de 1980, fazia com que eu pensasse num corpo grande, uma espécie de balão a inflar. E, quando mais ele inflasse, menos os meus pais teriam dinheiro no fim do mês.

Depois, muitos outros medos invisíveis se apresentaram a mim: aprendi a ter medo da guerra fria, da Aids, do câncer, e medo de bala perdida, assalto, sequestro, acidentes. Eu misturava sensações de pavor próximas com outras bem distantes, que chegavam por notícias. Tinha medo de cachorro feroz, morcego e, claro, barata – mas também queria fugir quando pensava em asteroides desgovernados pelo céu, buracos negros, tempestades.

Através de gibis, percorri paisagens temíveis, que me deixavam arrepiada e causavam uma espécie de vício. Quanto mais eu sofria com a aflição, mais procurava senti-la – e demorava nos pântanos, nas areias movediças ou florestas tenebrosas. Encontrava, naquelas histórias, criaturas que nunca veria no mundo, mas ainda assim me deixavam assustadíssima: dinossauros, saúvas, serpentes, alienígenas…

Tive um insuportável medo da aritmética e de sua respectiva professora, com olhos azuis-gélidos. E medo do mar, de ruídos estranhos à meia-noite, medo de filmes de terror, de possessões, de doidos e bêbados. Depois, o suspense deixou de causar um friozinho divertido na barriga, passou a ser um pavor selvagem e ao mesmo tempo sutil, conforme eu crescia. Conheci o medo de estupro e de assédios, o medo de ficar grávida, medo de ser morta num relacionamento abusivo – e medo de matar também, por defesa ou ódio repentino.

Mais recentemente, veio o medo do covid-19 e, cada vez mais, o medo que me inspiram os estúpidos e os crápulas.

Dizem que o medo se confunde com respeito; em alguns casos, submissão? Se for assim, nunca entendi perfeitamente este sentimento. Às vezes, acho que ele se mistura com raiva, repulsa… mas jamais me inspira reverência.

“Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come” – ouvi bastante isso, na época em que pensava na inflação como aquela bolha prestes a estourar. Era a tradução de um dilema, volta e meia revirado por meu pai ou minha mãe. Quando os ouvia pronunciarem aquela frase diante de um impasse qualquer, eu sabia que a expressão não exigia resposta, mas mesmo assim mentalmente sempre fazia a escolha: “correr” – porque nesta opção cabia um movimento, uma ação enérgica, em vez da desistência frágil.  Depois entendi que minha alternativa indicava coragem.

Pois até hoje creio que esse é o único aprendizado que se pode tirar de um medo: justamente a força para enfrentá-lo. Ainda que as circunstâncias provem que essa força foi pouca, ou até mesmo inútil, pelo menos não se teve um gesto passivo, uma atitude acomodada. Se me aquieto diante do ruim, portanto, nunca é por medo. Será, em alguns casos, cansaço; em outros, desprezo.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

Teoria da Teia

maman

Neste período de confinamento, não sei se pelo motivo de estar mais atenta – dedicada às minúcias do espaço doméstico, em vez de me perder na dispersão das paisagens –, tenho encontrado inúmeras teias. E não me refiro às redes virtuais, estruturas tecnológicas que, com um misto de consolo e desalento, trazem uma ilusão qualquer de proximidade (do mundo, das pessoas amadas, sim – mas também de muito conteúdo nocivo). Estou falando em algo bem mais simples e pouco problemático: teias de aranha.

Aranhas tecem moradas no topo dos meus armários, ficam suspensas de modo fantasmagórico quando passo e as encontro, em aparente flutuação. Num canto de parede, também é provável descobrir seus vestígios; às vezes consigo acompanhar suas operações de caça e alimento.

Surpreendo aranhas dentro do meu carro, quando – para a ida semanal ao supermercado – me lembro dele. E, se penso na Teoria da Catástrofe, que menciona mudanças bruscas e súbitas, suponho que possa existir, em alguma revista acadêmica de secreto prestígio, um trabalho sobre a Teoria das Teias, mas numa proposta longe de modelos econômicos…

Ora, antes atribuí simplicidade a este tema, porém agora me corrijo. As aranhas são muito complexas. Elas criam arquiteturas invisíveis, moram em autocasas diáfanas; parecem, por excelência, seres circenses – embora, pela discrição, avessos a espetáculos. Elas trabalham onde tudo se aquieta, matam por armadilha e não por ataque (o que parece menos cruel, pois numa armadilha a própria vítima, distraída, de algum modo escolhe o seu destino). São minuciosas e persistentes… e amam a elegância, com certeza.

Aranhas desenham, bordam, praticam matemática e design. São criaturas de porte poderoso: basta admirá-las na escala da escultura Maman, de Louise Bourgeois. Desde sempre me fascino por suas redes translúcidas, feixes tão perfeitos nos caminhos aéreos. Uma brisa os transforma em pula-pula de brinquedo; imóveis, são ornamento para os ângulos no muro, tanto quanto os paninhos rendados que uma avó põe sobre a mesa.

Certa vez, numa viagem a Cococi (cidade-pioneira dos isolamentos, olha só!), ao entrar na igreja e buscar assento num dos bancos, senti a resistência de uma longa teia que me barrava o caminho, como um tipo de algodão-doce finíssimo. Lamentei a destruição involuntária do material e me senti uma invasora. A igreja estava ali para os insetos e as aves; eles que davam vida ao lugar – o que queria eu, estouvada visitante?

Trabalhar em silêncio e com capricho; ser criativa a cada salto. Eis a lição aracnídea. Mas há outras, muitas outras, nesta teoria: uma teia cria conexões, alonga (fisicamente mesmo) os elos. E quando se cai em sua armadilha, a vítima vira múmia, antes de ser deglutida (atenção agora para as teias virtuais). Essa estrada tecida é um tipo de labirinto; a aranha reconstrói o cosmo. Ela imita o olho. O diamante. A corola.

A aranha é uma explosão que levita.

Aprendamos com sua existência.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

Aquele estranho chá e mais eu

chá

Retomamos, do texto que aqui publicamos no mês anterior, a referência a estátuas na obra de Lygia Fagundes Telles, para agora observar como este elemento contribui para a criação de suas histórias com traço sobrenatural. O controle das ações e dos estados emotivos das personagens também aqui será nosso objeto de análise, evidenciando como a natureza atua em conformidade ou confronto com mecanismos disciplinadores.

Em “A mão no ombro”, texto integrante dos livros Mistérios (1981) e Seminário dos ratos (1984), encontramos a fusão do humano com o vegetal. Este último elemento revela a imobilidade de uma vida similar à das estátuas, sem emoção para extravasar: “O húmus que subia do chão o impregnava do mesmo torpor da paisagem. Sentiu-se oco, a sensação de leveza se misturando ao sentimento inquietante de um ser sem raízes: se abrisse as veias não sairia nenhuma gota de sangue, não sairia nada.” (TELLES, 1984, p.119) O jardim, espaço em que o protagonista se acha, é o território dos mistérios, e podemos inclusive notar, no trecho final do conto, como a transição para a morte é feita dentro desta paleta esverdeada, por “entre a sonolência verde-cinza” (idem, p.129).

Em “O jardim selvagem”, temos talvez o melhor exemplo dessa questão. Entretanto, se neste conto também é possível delinear o território de um jardim como um ambiente místico, podemos ainda vê-lo, nessa medida, como ambiente imprevisível, não sujeito aos rigores de qualquer disciplina. Confira-se o fragmento abaixo como ilustração – atentando ainda para a presença da estátua, que (conforme já sabemos de análises anteriores) em Lygia não indica necessariamente ausência de paixões, embora aponte para um comportamento controlado: “Sentiu o coração disparar. Habituara-se tanto ao quotidiano sem imprevistos, sem mistérios. E agora, a loucura desse jardim atravessado em seu caminho. E com estátuas, aquilo não era uma estátua?[1]” (TELLES, 1974, p.120)

A estátua da moça dentro do tanque seco é uma representação de toda a vida pulsante (“o inseto saindo do ouvido da estátua não seria um sinal?”, p.124), embora seja uma vida não realizada em gestos, em plenitude. Nesse ponto, a estátua simboliza o homem em sua apatia, como o trecho a seguir esclarece: “A moça dos pés cariados ainda estava em suspenso, sem se decidir, com medo de molhar os pés. Como ele mesmo, tanto cuidado em não se comprometer nunca, em não assumir a não ser as superfícies.” (p.128) Com a iminência da morte, entretanto, vem o desejo de tomar a emoção em detrimento do hábito:

(…) mais importante do que todos os jornais do mundo era agora o raio de sol trespassando as uvas do prato. Colheu um bago de mel e pensou que se houvesse uma abelha no jardim do sonho, ao menos uma abelha, podia ter esperança. Olhou para a mulher que passava geléia de laranja na torrada, uma gota amarelo-ouro escorrendo-lhe pelo dedo e ela rindo e lambendo o dedo, há quanto tempo tinha acabado o amor? Ficara esse jogo. Essa acomodada representação já em decadência por desfastio, preguiça. (p.125-6)

A ameaça da destruição desse homem-estátua dialoga com a esperança, indicada pela abelha, pelo inseto (“Só o inseto se movimentando no jardim parado. O inseto e a morte.”, p.124), à maneira do escorpião que, em “Anão de jardim”, também indica a promessa de outra vida.

Podemos ainda lembrar o conto “A fuga”, do livro A estrutura da bolha de sabão, em que a morte é representada por um passeio no parque: novamente aqui, o místico identifica-se com o verde. E, óbvio, não poderíamos deixar de mencionar o conto que dá título ao livro Antes do baile verde. Nesta história, o verde (místico, mortal) da fantasia carnavalesca de Tatisa faz contraste com a água (no suor, na bebida, nos esguichos que os meninos da rua davam nos passantes), que, como veremos, é sinal de vida e juventude, na obra lygiana.

O mundo estava em comemoração, mas o pai de Tatisa morria. Todo o diálogo que ela estabelece com a empregada Lu, enquanto termina de pregar as lantejoulas na roupa de carnaval, evidencia seu conflito entre o desejo de se divertir na festa e o remorso pela iminência da morte do pai. O fato de a fantasia ser inteiramente verde, feita para um baile verde, mostra a medida sufocante desta culpa que pesa sobre a personagem. No final, entretanto, ela escolhe a celebração da vida. Ainda que rolem pela escada “algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisesse alcançá-la” (TELLES, 1986, p.76), Tatisa vai para o carnaval, e o namorado vem buscá-la num carro vermelho – sinal de fervor e luxúria[2].

Também neste livro, o conto “Natal na barca” é outro exemplo de como o verde representa a morte. Chamamos a atenção para a personagem que a narradora encontra, levando uma criança (que por um momento se pensa estar morta) por um rio “quente e verde”: “tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada” (TELLES, 1986, p.136).

A disciplina da dor fica evidente nesta mulher, que ia “contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente” (idem, p.138) – a pobreza, a morte do primeiro filho, o abandono do marido e, agora, a doença do único filho que lhe restou, obrigando-a a pegar a barca numa noite de Natal, para consultar um médico. Ela, entretanto, não era apática: tinha “olhos vivíssimos” e “mãos enérgicas”. Ao final do conto, a descrição do rio (símbolo de travessia) é retomada, mas com os adjetivos em posição inversa: “Verde e quente” (p.141), o que indica que a quentura, o calor da vida, ultrapassou a morte, ao menos dessa vez.

Às vezes, no entanto, não se percebe necessariamente um traço mórbido anunciado pelo verde, mas somente um laivo espiritualista, que assim mesmo confirma a ligação desta cor com o misticismo, na obra de Lygia. Nessa perspectiva, é importante que nos descolemos de uma concepção maniqueísta que tenderia sempre a rotular a presença da morte como algo negativo, em oposição ao otimismo da vida. Em alguns momentos, a morte surge como transcendência desejável ou, ao menos, não amedrontadora, para certos personagens lygianos. Podemos lembrar, a propósito, o texto “O encontro”, em que a atmosfera misteriosa é anunciada pelo campo, o verde “pálido e opaco” (TELLES, 1981, p.67), a sensação de já conhecer o lugar, apesar de nunca ter estado ali. O encontro do título se dá com uma moça “tranquilamente desesperada” (p.70), vestida de modo antiquado, que se revela um eco fantasmagórico da narradora numa vida passada.

Também no conto “A caçada”, o mistério novamente vem associado ao mundo vegetal, ao bosque em que está representada a cena de uma caçada numa tapeçaria. A própria obra tinha a “cor esverdeada de um céu de tempestade” (idem, p.24), e o momento trágico acontece num lance fantástico, quando a tapeçaria parece engolir tudo “com suas manchas esverdinhadas” (p.27) e o personagem penetra em seu cenário: de repente “estava dentro do bosque” (o que equivale a dizer que estava dentro da morte). Ocorre aqui uma ideia de transmutação, uma “familiaridade medonha” semelhante à de “O encontro”. É assim que o verde se impõe nestes espaços: reforçando uma sensação de imaterialidade que, se pode estar associada ao fim, não carrega forçosamente uma interpretação trágica para tal desfecho. Veremos, como mais um exemplo disso – e agora fora de ambientes sobrenaturais –, o conto “A sauna”.

Este é um dos poucos textos de Lygia sob a perspectiva de um homem de meia-idade. Mas, ainda assim, as figuras femininas são marcantes, e os elementos simbólicos, constantes, como em outras histórias. O protagonista, um artista plástico (feito o personagem “Gaby”), teve no passado uma companheira chamada Rosa – que lhe vem à mente associada ao mundo vegetal, e não somente pelo nome próprio, mas pela relação que a mulher tinha com as plantas.

O tio de Rosa, um idoso mudo, era o principal vínculo entre o mundo vegetal e humano. Pela prática da jardinagem (e também pelo fato de não se expressar com uma voz), o tio desenvolvera aquela sensibilidade quase transcendental no trato com a natureza – e a sobrinha lhe creditava até mesmo uma capacidade milagrosa, curativa:

(…) o caso dessa mãe que viveu além da data marcada porque Rosa a fazia tomar chá de ipê-roxo, quando a morte veio buscá-la, encontrou o tio mudo guardando a árvore e a árvore guardando a doente. Então parece que o tio mudo trocou com a morte algumas palavras e a morte fez meia-volta e só voltou dez anos depois. (idem, pp.70-1)

Apesar de toda a atmosfera mística a protegê-la, Rosa não resiste à deturpação mundana que o companheiro lhe impõe, com exigências de sacrifícios em nome de sua arte: era preciso livrar-se do tio, interná-lo num asilo, porque a casa “não era o lugar ideal para um velho mudo com mania de plantas” (p.63); depois, era preciso também vender a casa e fazer um aborto, porque a carreira artística do homem, a oportunidade de que ele viajasse rumo ao sucesso, era mais importante do que qualquer outra coisa. E se a sua estética começou impregnada pela imagem de Rosa, inspirando o primeiro grande quadro que ele pintou, depois tudo será perdido também para esse homem, condenado a perder o frescor de sua arte e submeter-se às leis do mercado:

(…) o olhar verde-água colado em mim, às vezes eu me escondia atrás do jornal, do livro, da tela, sempre atrás da tela e ainda assim, atrás do muro, me sentia observado. Sua face foi se integrando na folhagem, escurecia rápido. Peguei o tubo verde e fui espremendo até o fim, quis tudo verde-folha, a janela, o vestido, também eu sufocado numa alegria espessa como a tinta que só foi amadurecer na laranja que ela segurava com a maior gravidade, eu te amo, Rosa, está ouvindo? Eu te amo! gritei porque o retrato estava ficando como eu queria, antes de fazer todos os outros que fiz já estava sabendo que esse seria o melhor. (idem, p.61)

A cor verde, tão presente em outros contos de Lygia para criar uma aura de mistério ou fatalismo, neste texto transborda. Além das associações com o mundo vegetal na família de Rosa (o tio mudo, dedicado à jardinagem, e os pais, também naturalistas, dedicados à botânica), temos a sua relação – praticamente sagrada – no convívio com as plantas. E se a carga mística se revela como um traço emocional, ao identificar espécimes vegetais com imagens de santos que inspiram adoração e fervor, por outro lado não esqueçamos o quanto há de disciplina nesta ligação com o mundo natural. A disciplina do sacrifício, talvez, da abnegação da própria individualidade: assim como uma árvore – ou uma estátua – é incapaz de se defender, de fugir, Rosa não escapa à voracidade do companheiro; deixa-se explorar e murchar com subserviência.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho. Pode ser lido também aqui)

[1] O imprevisto que a visão da estátua proporciona lembra, em certa medida, a presença do caçador camuflado no conto “A caçada”, do livro Mistérios: a diferença é que o mundo vegetal, em “O jardim selvagem”, representa os enigmas que no outro conto se concentram nas linhas de uma tapeçaria. De fato, o jardim é a própria morte sonhada, e o caçador, a figura fatal que se lhe associa: se em “A caçada” o personagem mergulha na imagem-armadilha do tapete, o jardim proporciona igualmente uma inserção no além, através do sonho.

[2] Oportunamente, veremos outros atributos associados à cor vermelha, nos contos de Lygia.

Olhe com atenção

No belo filme A câmera de Claire, há uma passagem em que a personagem-título, interpretada por Isabelle Huppert, responde ao motivo pelo qual fotografava: “Porque o único jeito de mudar as coisas é olhar para elas novamente de modo bem devagar”. Penso agora que, num período de quarentena, essa estratégia pode servir como alívio, ou até como solução.

Olhar com atenção: de fato, sem contar a prática fotográfica, creio que só fiz isso – com espontânea intensidade – na infância. Toda criança tem curiosidade pelo mundo; tudo, em sua experiência tão tenra, parece inverossímil e, por isso mesmo, possível. Crianças se espantam continuamente, sobretudo as muito pequenas, que ainda não falam; portanto, ainda não receberam modos de rotular o mundo. Para elas, as formas e superfícies transitam em fluxos mágicos. Talvez tenham ilusões óticas ou vejam fantasmas – o seu assombro permanece constante, pois não sabem discernir as fronteiras do real.

Mas depois… ah, depois o crescimento é uma perda de ilusões. As coisas se fixam nos lugares, cabem nos aprendizados. A própria identidade parece estável – e daí a pensar que uma situação se torna imóvel, um ser se paralisa num estado qualquer… eis um mero passo. As ilusões da infância são substituídas por enganos, juízos simplistas: o equívoco-mor de achar que algo “vai ser sempre assim”.

Se voltarmos a observar o mundo, aprendendo a apenas estar na experiência de um espaço, notamos que nada permanece. A luz muda, as partículas de poeira dançam aqui em raios solares, mas ali já são invisíveis. Há uma sombra fina nesta parede, uma silhueta cuja companhia durou um segundo. Os ruídos da vizinhança, junto com os pássaros, criam timbres familiares – mas não quero pensar em sua rotina, não quero enfiar tudo no saco “sons familiares”. Quero perceber o grito periódico sem classificá-lo com palavras: “canto do galo”, “sirene” ou “buzina”. Quero apenas o grito, e quero escutá-lo como se não soubesse o que ele é, de onde vem, e sequer soubesse que o que faço é escutar.

Quero somente estar disponível à vivência. Isso, que talvez alguém entenda como um tipo de meditação, é na verdade um regresso. Já fomos entregues e confiantes, sem qualquer defesa (e sem pavor por essas circunstâncias). Depois, apenas depois, aprendemos a lutar, a produzir, a fazer coisas úteis, fazer coisas também belas, e aprendemos o medo, a preocupação, a raiva, a vingança, ativamos emoções e crenças coletivas, agimos conforme a sociedade, praticamos obediência ou rebeldia…

Mas agora eu descubro que é possível retornar – visitar, nem que seja por um instante, o estágio sutil da existência primeira. Simplesmente sentir, sem buscar um nome, uma expectativa, um pensamento. Trata-se de estar e observar. Olhar com atenção me parece a prática mais vital.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)