Aos amigos que se queixaram de não compreender as duas últimas postagens deste blog, por serem citações em francês, eu dedico esta passagem magnífica, do escritor lusitano Gonçalo M. Tavares:
“O fato de escrever numa língua marca tudo. Uma língua não é um objeto, não é uma caneta, uma faca – uma língua não é algo exterior ao corpo, não é algo que se possa pousar numa mesa. A língua portuguesa, nesse caso, faz parte do meu organismo, desde que me conheço. Começamos a comer e a ouvir uma língua logo no primeiro dia, ou antes do primeiro dia. Esse contato com os sons primeiros de uma língua, esse contato pré-natal tem consequências para toda a vida. Eu sou português desde o início ao fim do meu organismo, não há nada a fazer. Bem, posso querer viajar muito, aprender a língua mais afastada, apaixonar-me por completo por outra cultura ou país, mas não há nada a fazer. Tudo já foi decidido logo no início. Quando caminho ou penso, está lá a língua. Penso com os sons que ouvi desde bebê, com o ritmo mental que a sonoridade da língua tem. E, portanto, eu diria que, no limite, tudo o que fazemos, não apenas escrever ou falar, tem a marca da nossa cultura e da nossa língua. Eu ando em português, como em português, durmo em português etc. Não adianta correr. Nem fugir. Correrei e fugirei sempre em português.” (In: O livro das palavras – conversas com os vencedores do prêmio Portugal Telecom, p.115)
Apesar de achar o fragmento acima belíssimo, de uma beleza intensamente sentimental, não posso concordar com ele em termos racionais. A ciência prova que o pensamento se adapta aos aprendizados linguísticos – tanto é que se costuma dizer que alguém aprende uma língua quando começa a pensar (e sonhar) nela. Isso não é mito: não estamos aprisionados num determinismo de língua materna, apesar de esta ocupar um lugar preponderante em nosso cérebro (onde estão, além dos pensamentos e sonhos, os afetos, a memória, as emoções e tudo o mais que nos transforma em gente). Assim, por que não buscar outras formas de crescer, de compreender a humanidade, através de suas nuances comunicativas? As línguas estrangeiras assombram, sim, mas sedutoramente – são promessas de mundos inteiros a desvendar. Sempre que eu quero recordar esse princípio, releio um trecho do Milan Kundera (um dos meus favoritos, já sabem os amigos), retirado d’O livro do riso e do esquecimento. Este fragmento vai então dedicado aos que leram as postagens em francês (ou pelo menos não se sentiram intimidados, mas atraídos pelo desejo de algo diferente):
“Litost é uma palavra tcheca intraduzível. Sua primeira sílaba, que se pronuncia de maneira longa e acentuada, lembra o lamento de um cachorro abandonado. Para o sentido da palavra, procuro inutilmente um equivalente em outras línguas, embora tenha dificuldade de imaginar que se possa compreender a alma humana sem ela.
Vou dar um exemplo: o estudante tomava banho com sua amiga, também estudante, no rio. A moça era esportista, mas ele nadava muito mal. Não sabia respirar embaixo d’água, nadava devagar, a cabeça nervosamente levantada acima da superfície. A estudante estava tão irracionalmente apaixonada por ele e era tão delicada que nadava quase tão devagar quanto ele. Mas como o horário de banho estava quase na hora de acabar, por um instante ela quis dar livre curso a seu instinto esportivo e dirigiu-se num crawl rápido à margem oposta. O estudante fez um esforço para nadar mais depressa, mas engoliu água. Sentiu-se diminuído, desmascarado em sua inferioridade física, e sentiu a litost. Lembrou-se de sua infância doentia, sem exercícios físicos e sem amigos, sob o olhar excessivamente afetuoso da mãe e ficou desesperado consigo mesmo e com sua vida. Ao voltarem para casa por um caminho campestre, os dois se conservaram calados. Ferido e humilhado, ele sentia um irresistível desejo de bater nela. “O que está acontecendo com você?”, ela perguntou, e ele a censurou: ela sabia muito bem que havia correntes perto da outra margem, ela a tinha proibido de nadar daquele lado, porque ela corria o risco de se afogar – e deu-lhe um tapa no rosto. A moça começou a chorar e, diante das lágrimas em seu rosto, ele sentiu pena dela, tomou-a nos braços e sua litost se dissipou.
Ou então um outro acontecimento da infância do estudante: seus pais lhe fizeram tomar lições de violino. Ele não era muito dotado e o professor o interrompia com uma voz fria e insuportável, censurando-lhe os erros. Ele se sentia humilhado e tinha vontade de chorar. Mas, em vez de se esforçar para tocar de maneira correta e não cometer erros, ele se enganava deliberadamente, e a voz do professor ficava ainda mais insuportável e dura, e ele mergulhava cada vez mais em sua litost.
Então o que é a litost?
A litost é um estado atormentador nascido do espetáculo de nossa própria miséria repentinamente descoberta.”
Em tempo: no polonês (que em certos aspectos se aproxima bem do tcheco) há a palavra litość, traduzida de maneira concisa por “piedade, misericórdia, pena”. Mas quando lemos o Kundera percebemos que a convivência com uma língua nos alarga a vida a ponto de favorecer o autoconhecimento. É o caso de nos perguntarmos se, mesmo falantes de português, não experimentamos algum dia a litost – ainda que seja em relação ao parco aprendizado de um outro idioma… Esse questionamento é o caminho por onde eu me deixo seguir.
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