Os coléricos de Nassar

Temos demonstrado, nos textos anteriores desta série dedicada a Raduan Nassar, como o caráter teatralizante de seus livros pode ser percebido por uma disposição ambígua de seus enredos: são construídos dentro do gênero épico, por serem narrativas, mas trazem o estilo do gênero dramático. Assim, como parte sequencial de nosso estudo, passaremos à análise de Um copo de cólera __ obra que traz grandes afinidades (e não só no aspecto dramático) com Lavoura Arcaica.

O livro demonstra uma explícita circularidade, visto que o último capítulo traz o mesmo título do primeiro: “A Chegada”. Muda, entretanto, a personagem narradora. Quem primeiro assume o comando da história, e durante grande parte de livro, é o protagonista masculino. A mulher atinge o monólogo e alcança a postura referencial da cena somente no final, no capítulo de encerramento que surge como um ciclo, reiniciando a história, sob outra perspectiva.

O fato de que a personagem masculina (nenhum dos dois, homem ou mulher, receberá nome próprio, nesta obra) domina a voz narrativa em praticamente todo o livro, é sintomático. Sabrina Sedlmayer (1997: 45) atentou para a circunstância de que em Lavoura Arcaica as mulheres quase nunca eram escutadas: “Com Ana, Rosa, Zuleika, Huda e a mãe __ as personagens femininas do romance __, em nenhum momento da narrativa encontraremos o diálogo do narrador, que sempre se dirige aos homens, Pedro, Lula e Iohána.”

Em Um Copo de Cólera, também é o lado patriarcal que se evidencia, com a predominância do discurso do homem, que parece reger toda a narrativa a partir do seu ponto de vista particular. Entretanto, desta vez a mulher se faz ouvir, e deste choque de falas é que se produz a tensão.

A princípio, logo no primeiro capítulo, o leitor tem noção da total incomunicabilidade entre os amantes. O jogo amoroso faz-se presente, baseado na falsidade das aparências:

(…) e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente (…), depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate (…), e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse. (CC, p. 10)

O capítulo seguinte, “Na Cama”, acrescenta novas considerações sobre o jogo amoroso, a estranheza do relacionamento a dois. Interessante é observar que, para a análise deste livro, convém seguir-lhe as páginas em sua sequência normal, visto que o tempo cronológico, através da sucessividade das ações, aparece aqui mais marcado do que em Lavoura Arcaica. A estrutura deste último livro, antilinear por excelência, nos remete aos traços barrocos da construção literária em Raduan Nassar. Porém, ainda teremos oportunidade de ver, de outro modo, o barroquismo presente também em Um Copo de Cólera.

Em “Na Cama”, o jogo de sedução já pode ser visto numa perspectiva cênica (teatral), como se confere na seguinte passagem, em que a personagem calcula o efeito de suas ações, o poder visual que elas terão:

(…) e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos pra minha andança no quarto (…), e eu, sempre fingindo (…), eu ia e vinha com meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela deixou o quarto e foi por instantes ao banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama, fiquei aguardando por ela já teso e pronto. (CC, pp. 13-4)

O sexo parece mesmo ser a única possibilidade de integração entre as personagens, em Um Copo de Cólera: o diálogo corporal estabelece a comunhão que, através de palavras, torna-se improvável. O poderio masculino se evidencia em várias passagens ligadas ao sexo: o macho é visto como o todo-poderoso da relação __ embora (como veremos mais adiante) seja exatamente neste ponto que a mulher vá insultá-lo, no momento do clímax dramático. Entretanto, durante a comunhão dos corpos, o poder é do homem, como quando ele comenta que levava a companheira “invariavelmente a dizer em franca perdição ‘magnífico, magnífico, você é especial’” (CC, p. 16).

A disputa começa pelo terreno das palavras. Se os amantes se afinam no sexo, quando se trata das ideias, tudo muda. A explosão inicial, a deixa para que a disputa comece, é criada a partir da reação do homem diante do estrago que as formigas fizeram na cerca-viva do terreno. Em sua raiva desmedida, no susto e no ódio que exprime contra os insetos, vai todo um desejo de preservar os limites da casa, e, por extensão, os limites do eu __ desejo que constrói também uma barreira contra o outro, para conservar a ideologia da personagem a salvo de qualquer invasão.

Diante da reação intempestiva do companheiro, a mulher assume a posição contrária, de calma e crítica. O ódio do protagonista se intensifica, quando a mulher o atinge com ironia, advertindo-o para que use a razão. Seu desejo é o de explodir, “esbofeteá-la na cara” (CC, p. 33), mas consegue controlar-se, questionando seus impulsos de reagir à provocação: “(…) não que eu cultivasse um gosto raivoso pelo verbo carrancudo, puxando aí pro trágico, não era isso e nem o seu contrário, mas a ela, que via naquela prática um alto exercício da inteligência, viria bem a calhar”. (CC, p. 34)

A situação vai se tornando tensa, preparando gradualmente o conflito. O aspecto teatral invade o texto de forma decisiva, como quando o narrador diz que “já puxava ali pro palco” quem estivesse a seu alcance, pois “haveria de dar um espetáculo sem plateia”, forjando dessa vez, na voz, a mesma aspereza que marcava sua “máscara” (CC, p. 36). Prepara-se o disparo inicial, faltando apenas o mote, a gota d’água para o estouro: “eu cavalo só precisava naquele instante dum tiro de partida, era uma resposta, era só de uma resposta que eu precisava”. (CC, p. 36)

Presenciando o discurso agressivo do companheiro, a mulher prepara-se para o confronto. Os indícios teatrais apontam para a força dramática que o texto assumirá: “deglutindo o grão perfeito” do seu chamariz e representando o “seu papel”, ela “entrou de novo espontaneamente em cena” (CC, p. 38). A expressividade também se valoriza: ao descrever o rosto da mulher, o narrador diz que ela desenhava “enfim na mímica o que a coisa tinha de repulsivo” (CC, p. 38).

O homem atua em ânsia de domínio e poder viril, comentando que não iria confundir “um arame de alfinete co’a iminente contundência” do seu “porrete”, tentando não se impressionar com a mulher, com as “unhas que ela punha nas palavras” (CC, p. 41). O artifício do homem é o desprezo; chega a considerar a mulher apenas como alguém com quem se pode contracenar, pois ele precisava “mais do que nunca __ para atuar __ dos gritos secundários duma atriz”, querendo apenas ouvir o seu próprio “berro tresmalhado” (CC, p. 43).

O temperamento explosivo deste homem dará ensejo a comparações com o André, de Lavoura Arcaica. Não só os dois vivem em ambientes rurais (assim como também o próprio Raduan Nassar), mas em várias passagens de Um Copo de Cólera podem-se observar referências ao aspecto marginal ou diabólico que a personagem masculina assume __ da mesma forma que André se declarava maldito, ovelha negra da família. Ora é a mulher quem chama o companheiro de “demoníaco” (CC, p. 48), num tom de sarcasmo, ora é o próprio homem quem afirma: “(…) te digo somente que ninguém dirige aquele que Deus extravia!” (CC, p. 62) Ficar à margem das regras é uma posição assumida pelos dois protagonistas.

Também o próprio Raduan Nassar poderia dizer o mesmo: a margem agora é a minha graça.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, no jornal Rascunho de abril de 2022)

Cena do filme Um copo de cólera (1999)

Dançar no baile verde

Apenas uma coisa poderia me consolar da morte da Lygia Fagundes Telles: a notícia de que na verdade ela estava a ponto de completar 104 anos, cinco a mais do que se pensava. A certeza de uma vida realmente longeva, além de plena e criativa, foi a melhor parte da descoberta feita pelo genealogista Daniel Taddone. Pesquisando em cartórios de São Paulo logo após o falecimento da escritora, Taddone achou a certidão de nascimento, que trazia a data: 19 de abril de 1918, e não 1923 – um lustro, como dizem, mais jovem.

O genealogista não trouxe somente um conforto aos fãs da autora: ele descortinou um gesto de ficção. Lygia forjou a si própria, construiu-se literariamente, para além de suas obras. Penso em como ela enganou a imprensa durante tantas décadas, levando sua idade extra como um bônus secreto, uma conquista silenciada porque a ninguém, além dela própria, isso dizia respeito.

Em “Antes do baile verde”, o primeiro conto de Lygia que li, quando eu tinha 12 anos (ou poderia ter 7…), a personagem Tatisa prepara a sua fantasia para brincar o carnaval há tanto desejado – mas sofre pelo parente moribundo que precisa deixar em casa, atormenta-se pela ideia de culpa, tenta se convencer de que nada vai acontecer enquanto estiver fora; merece um pouco de diversão, afinal. Sempre me pareceu que essa história trata de um dilema inevitável: a todo instante existe um moribundo (em sentido metafórico ou não) que precisamos abandonar, para viver nossa própria vida.

O baile verde prenuncia o trágico (porque o verde é uma cor que sinaliza suspense ou sobrenatural, em Lygia), porém não deixa de ser um baile. A única forma de dançar é na borda desse abismo. Dançar, mesmo com pavor das fatalidades: mesmo com culpa e desespero, aproveitar o carnaval. O moribundo que se precisa largar pode ser o próprio receio, a convenção vigente – ou a idade.

Ao reduzir cinco anos de sua biografia oficial, Lygia Fagundes Telles agiu como uma cronoanarquista. Não se submeteu ao tempo. Não aceitou que a sociedade a pressionasse em matéria de comportamentos que uma mulher em determinada fase da existência “deveria” adotar. Ela driblou críticas, inventando o seu ritmo pessoal – e, sobretudo, protegeu-se do espanto que o mundo adota frente aos centenários. Quando completou 100, pensava-se que eram 95: ninguém se horrorizou tanto assim. E Lygia foi poupada do peso que essa vibração coletiva teria sobre ela, tanta gente que no íntimo poderia achar um século exagero… e na contabilidade alheia a energia ruim talvez já lhe atraísse um desfecho.

Lygia – elegante, sábia, divertida como foi – decidiu não render sua existência aos números. Escolheu se libertar, e creio que aproveitou ao máximo o baile.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Gira, Yoyô

O bode mais famoso do mundo está passando pelos equipamentos culturais da cidade. Isso mesmo: enquanto o Museu do Ceará vive um restauro, a sua vedete – Yoyô – visita espaços de Fortaleza, despertando ações interessantíssimas. A partir da próxima terça, dia 5, o bode será visto na BECE: quem se achava rato de biblioteca pode então repensar seus conceitos…

Yoyô faz despertar antigos relatos, a maioria mencionando o seu temperamento dócil, praticamente um cão fiel, em forma de caprino. Outros compêndios, supersticiosos, especulam que o animal seria a encarnação de um poeta morto muito jovem. O sinal de sua identidade secreta era uma crise convulsa, que acometia o bode sempre que alguém recitava versos do infeliz: mais ou menos como se o animal então dissesse, com as sacudidelas do corpo: “Estou aqui! Sou eu!”

Obviamente, a revelação – por mais sincera e verídica – pouco adiantava, para mudar as circunstâncias do bode (ou do poeta). O certo é que ele aqui chegou, tangido pela seca de 1915. Dizem que o retirante que o trouxe conseguiu vendê-lo à firma Rossbach Brazil Company – e o bicho ficou vivendo nos armazéns, nas imediações da alfândega, passando a ser conhecido nos bares por onde transitava. Os poetas e intelectuais logo o incorporaram às rodas boêmias do centro. Chamaram-no Yoyô – na grafia da época – pelo itinerário que o bode adotava, entre a Praça do Ferreira e a Praia de Iracema, indo e voltando incansavelmente. Hoje há poetas (humanos) que ainda vivem neste percurso, embora ninguém diga que um deles encarna o bode; até agora nenhum se pôs a balir ou saltitar nos cascos.

Quando Yoyô morreu, em 1931, saiu seu necrológio nos jornais. De lá para cá, embalsamado, o mascote virou alvo de historiadores e cordelistas. Foi personagem da peça teatral Nossa Cidade, em 2012, e ilustrou um ponto alto de mito e sátira nesta visita ao passado de Fortaleza. Agora, dez anos mais tarde, comemoramos o centenário da eleição de Yoyô. Logicamente, ele não pôde assumir o mandato de vereador, mas lá estava o seu nome, com esmagadora vitória, nas urnas de 1922. Por trás da malandragem que o elegeu, havia uma confissão de representatividade: o bode era símbolo do povo, da praça (como Castro Alves diria, se fosse cearense). Ele comandou passeatas, chifrou gente merecedora, bebeu cachaça, refrescou-se na brisa do mar… O que mais faltaria para transformá-lo em cidadão fortalezense?

Para homenagear Yoyô, eu queria uma performance pleonástica. Como seria bonito se a gente girasse ioiôs, fazendo um cortejo de entrada para o ilustre visitante, em cada espaço onde ele fosse recebido! O fato de o bode circular novamente a cidade é uma lição sobre o eterno retorno. E na verdade, ao brincar com esse disco preso por um dedo, também aprendemos várias coisas. A ondulação do pulso ou o ritmo vira a menor das conquistas. Com um ioiô, temos a marionete de um planeta que rola por um barbante, dentro do infinito – uma bela metáfora da Terra.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)