De Ponty a Proust

Agorinha estava mergulhada na Fenomenologia da percepção, do Merleau-Ponty, e deparei com este trecho:

“O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando a nós novos instrumentos.” (p.199)

Ora, essa citação me levou – como uma verdadeira madeleine – a uma cena do segundo volume do Proust, À sombra das raparigas em flor. Acontece quando o jovem Marcel, melindroso do jeito que era, hospeda-se com sua avó no Grande Hotel em Balbec e começa a estranhar o quarto em que deveria dormir:

“É a nossa atenção que põe os objetos num quarto, e o hábito que os retira, abrindo espaço para nós. Espaço era o que não havia para mim no meu quarto de Balbec (meu de nome apenas), pois estava cheio de coisas que não me conheciam e me devolveram o olhar desconfiado que lhes lancei e, sem levar em conta a minha existência, participaram que eu lhes desarrumava a rotina da sua. (…) Sentia-me atormentado pela presença de pequenas estantes envidraçadas, ao longo das paredes, mas sobretudo por um grande espelho com pés, atravessado no meio do quarto e antes de cuja partida achava eu que para mim não haveria sossego possível. A todo instante erguia os olhos – a que os objetos do meu quarto em Paris não incomodavam mais que minhas próprias pupilas, pois não eram mais que anexos de meus órgãos, uma ampliação de mim mesmo – para o teto soerguido daquele belvedere situado no cimo do hotel e que minha avó escolhera para mim.” (pp.508-9)

Devo revelar que, quando li esta passagem de Proust, considerei tão magistral a sua percepção do espaço quanto a do tempo (tão badalada no seu processo de memória involuntária, com a citada madeleine etc). Agora Merleau-Ponty me lembra que estas duas instâncias físicas são habitadas pelo corpo simultaneamente, de maneira inextrincável. É realmente uma pena que o espaço proustiano não tenha alcançado tanta fama quanto o seu dispositivo memorialístico – e me pergunto se este não teve privilégio por aparecer nas primeiras páginas de uma obra volumosa. A maioria das pessoas, então, deixa de comentar este traço em Proust porque não chega a ler o volume 2, 3, etc, de Em busca do tempo perdido? É uma hipótese. Mas uma hipótese lamentável, porque os preguiçosos perdem ótimas reflexões – e, a propósito, já me cobro (após o hiato de tantos livros que se puseram no meio) o começo da leitura de O caminho de Guermantes. Certamente terei várias surpresas em breve.

Autobiografia da arte

Terminei de ler a Autobiografia de todo mundo – e, se Gertrude Stein não é das minhas autoras favoritas, pelo menos reconheço que sua personalidade foi admirável. Na Autobiografia de Alice Tocklas eu já morri de inveja do seu convívio com os grandes artistas, na Paris da década de 1930. Nesta obra subsequente, o tema às vezes derrapa em repetições (superficiais) sobre viagens e comida, mas ainda assim há ótimas ironias e passagens reflexivas que valem muito – como esta, que lhes transcrevo abaixo:

 “É extremamente difícil continuar a pintar. Sempre penso sobre isso. É extremamente difícil para alguém ficar fazendo uma coisa porque todo mundo é perturbado por tudo. Tendo feito alguma coisa você quer naturalmente fazer aquilo de novo e se você faz aquilo de novo você sabe que está fazendo aquilo de novo e não é mais interessante. Isto é o que preocupa todo mundo, alguém na medida em que faz alguma coisa naturalmente faz isso de novo, seja um crime seja uma obra de arte ou uma ocupação diária ou qualquer coisa como comer e dormir e dançar e lutar. Bem tendo você feito isso você faz de novo e saber que está fazendo aquilo de novo estraga a existência dessa coisa tanto quanto estraga o seu vir a existir. Um pintor tem mais problemas com isso do que qualquer outra pessoa. A maioria das pessoas pelo menos não vê o que acabou de fazer um escritor não vê o que acabou de escrever, um músico não ouve o que acabou de tocar, mas um pintor tem constantemente à sua frente o que acabou de pintar, suas paredes estão cobertas com suas obras, quando ele volta para continuar sua pintura lá bem sob seus olhos está o que ele acabou de fazer. Um ator um cozinheiro ninguém mais tem tão continuamente à sua frente o que acabou de fazer.”

 

Para não virar vodu

Dentre as experiências que a vida me interditou (além do ciclismo e da prática de esgrima, por exemplo) tenho de incluir também a acupuntura. Na semana passada eu fui, cheia de inocência, a uma sessão agendada três meses antes, com um médico disputadíssimo. Várias pessoas me haviam feito ótimas recomendações: acupuntura é relaxante, milagrosa etc. O pior relato que escutei esteve marcado por um simples desânimo – aquelas agulhinhas não faziam a mínima diferença. Portanto, eu realmente não esperava que a situação comigo ficasse à beira do trágico, com um mal estar generalizado, febre, dores e cicatrizes que até agora não fecharam. E tudo poderia ter sido ainda mais intenso, se eu não estivesse apressada na ocasião. O médico anunciou que faria um procedimento simples e rápido; de outra vez, faria a sessão completa, com meia hora de duração. Ele passou um analgésico, para que eu não adivinhasse a calibragem das agulhas e o bordado em ponto-de-cruz que fez nas minhas costas. Fui perceber isso horas depois, quando toquei os calombos ainda sangrando e inflamados.

Hoje retornei ao consultório somente para dizer que não faria mais nada. O médico nem se interessou por examinar minha pele; comentou que eu devia ter tido uma reação alérgica ao metal e que “era assim mesmo”. Pois adeus, eu disse, e enquanto esperava o elevador encontrei uma mulher quase tão fanática com a acupuntura quanto aquele profissional. Depois de ouvi-la suspirar de êxtase após uma sessão, eu falei: “A senhora é uma sortuda; comigo as agulhas fizeram isso” – e mostrei minhas costas lesionadas. Ela sorriu e disse: “Ah, mas eu também fico assim! O pior é quando o doutor inventa uma raspagem com chifre e umas ventosas. Passa uma semana roxo e doendo – mas fazer o quê, se eu relaxo?” O elevador chegou, e eu desci pensando que algumas pessoas deveriam contratar torturadores privados – ou então, psiquiatras severos, que lhes ensinem que o prazer não precisa ser atingido em antítese à dor!

Artista ou professor

     Grandes autores, além de atiçarem novas ideias, levantam a poeira de antigos temas, posicionando-se de modo infalível. Assim é Julio Cortázar, que em muitos textos assumiu uma postura de ardor revolucionário, mas jamais deixou que a política interferisse na literatura. Cortázar manteve-se mágico, sabendo que arte é fantasia e iluminação, e qualquer ficcionista que mergulhe demais na realidade pode emergir como um planfletário rançoso – o que equivale a uma destruição estética; destrói-se o olhar inventivo, e o criador não existe mais.

      Se o contexto hoje é diferente (será?), nem por isso se perde a força dos argumentos enfáticos de Papéis inesperados – essa publicação póstuma que é uma miscelânea de gaveta, com o sabor secreto da escrita de Cortázar em diversas circunstâncias. Aqui temos o ocaso (mas nunca o caos) a reunir contos, poemas, entrevistas ou palestras. E, numa das páginas, a reflexão que (suspeito) ninguém soube tão bem formular: O artista não é um professor. Diz o argentino: “O criador é aquele que se adianta. Como poderia enriquecer o mundo se sua obra fosse condicionada pela necessidade de ser imediatamente entendida, assimilada, aproveitada?”

     Contra ideias utilitárias ou docentes, afirma-se Cortázar. Contra o sectarismo que se insinua a cada vez que um repórter pergunta a um artista (seja de que área for) o que ele quis dizer, ou qual o tipo de mensagem da sua obra. Na maioria das vezes, o artista é a última pessoa capaz de responder – porque, embora possa (e deva) lidar com técnica e intenções, não está em seus propósitos capturar todas as instâncias do processo criador – e, principalmente, os resultados, reverberações ou consequências que escapam de seu domínio para os setores mais comerciais, de mídia, divulgação etc. É deste outro lado da obra que o artista não está; ele a vê de um ângulo diverso, e é absurdo forçá-lo à postura assumida pelo crítico, pelo resenhista ou pelo leitor. As outras pessoas sempre terão visões próprias, incontroláveis, e não cabe ao artista guiá-las ou instruí-las com dicas ou muletas explicativas. Quando elas aparecem, aliás, têm o efeito de empobrecimento – aquela já não é a obra autêntica, com o mesmo impacto. E os leitores, avisados previamente, apenas seguem o mapa do que esperam encontrar, sem o prazer de se perder pelos caminhos.

      O artista não deve ser caridoso. Ao contrário, às vezes sua única forma de se expressar é através da impiedade com palavras, ritmos, cores ou gestos incomuns, que talvez pareçam estranhos, incompreensíveis para o leigo. E justamente ao evitar a complacência de uma obra “facilitada”, o artista força a sociedade a se mexer, sair da anestesia geral. Por um gesto pretensamente egoísta, pode-se atingir um proveito coletivo – diz Cortázar – mas isso é conseguido sem militância. O compromisso de um artista é entregar-se à sua obra, e para além desta não há nada melhor que ele possa fazer.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

Woodman

Francesca Woodman é uma das fotógrafas que mais admiro: genial e precoce, deixou imagens estranhas, que a gente não esquece com facilidade. Hoje compartilho com vocês uma reflexão sobre três de suas obras.

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Nesta fotografia, por exemplo, constatamos a marca inconfundível do estilo dessa artista americana, morta em 1981. O corpo feminino misterioso (sem rosto, sem identidade) confunde-se com o papel de parede, numa camuflagem ao mesmo tempo poética e degradante, pelo aspecto arruinado do lugar.
Conforme a regra dos terços, constata-se que o terço inferior da imagem corresponde à linha do rodapé da parede, isolando a imagem dos pés da figura humana – justamente a seção que sobressai e garante que o resto do corpo não é uma pintura sobre o muro, mas um corpo real de fato. O segundo terço traça uma linha imaginária que coincide justamente com a região do ventre da mulher – e, como a sua posição não está exatamente centralizada entre as duas janelas que a margeiam, podemos considerar este deslocamento para a direita como um reforço do peso visual, conferindo dinamicidade à fotografia. O terço superior da foto envolve a parte de cima do corpo, que está inteiramente coberta pelo tecido. Sendo este um pouco mais escuro que a parede, percebemos o jogo de contrastes que se instaura. Apesar da camuflagem que pode confundir um espectador desatento na primeira mirada, o segundo olhar sobre a imagem revela intenções poderosas, a começar por esse contraste tonal do mais escuro com o mais claro (e é de ressaltar que a claridade está acentuada nos extremos, nas janelas, ou seja: a luz está associada ao ambiente externo. A situação interna que a foto capta e, principalmente, o indivíduo, tem o envolvimento com a escuridão. Esta é provavelmente uma mensagem metafórica, se consideramos que Woodman costumava tratar de temas dolorosos em torno da figura feminina.). O jogo de disparidades também é perceptível pela diferença entre texturas (do tecido, da parede lisa, das tábuas do chão, do corpo), pelo jogo entre linhas (do chão, do rodapé, das janelas) e curvas (do corpo e dos limites assimétricos do tecido que está sobre ele). Por todas estas observações, constatamos a tensão dinâmica que esta fotografia trabalha.

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Esta imagem mostra a própria artista, num hábito que perdurou durante todo o seu trabalho, de ser modelo de suas fotos. Aqui, entretanto, graças à presença do espelho, temos um retrato dentro de um autorretrato, por assim dizer. A montagem da cena revela uma surpresa: no reflexo do espelho, há um elemento que não existe fora dele: um búzio sobre a nuca de Francesca, posicionado de tal forma que ela parece caminhar “carregando o peso em suas costas”. Muito mais do que uma fotomontagem, o que temos aqui é um caso de cálculo de imagens em profundidade. Provavelmente o búzio, de tamanho bem maior do que aquele que aparenta ter, encontra-se no chão do aposento, e afastado a uma certa distância, de modo que a câmera só consegue capturá-lo pela imagem do espelho. Com este elemento novo, que rompe com o paralelismo entre imagem e reflexo, a fotografia faz sobressair sua mensagem, de um peso secreto que a personagem pode carregar – e, sob tal perspectiva, a figura que avança, nua, saindo de trás da parede, parece ter uma inclinação de cabeça que revela sua curiosidade pelo elemento estranho no espelho.
Em matéria de composição, nota-se que a foto privilegia o terço médio, com o espelho (e a figura dentro dele) posicionado de maneira a reforçar a linha de fuga do olhar, direcionado para baixo e para a direita. A posição do  braço esquerdo da personagem e do seu reflexo sugere o desenho de uma ampulheta, o que instala uma curiosa reflexão sobre o tempo (que a própria presença do espelho, aliás, já provocava). As linhas retas da parede, da posição angulosa dos braços e das bordas do espelho contrastam com as curvas do corpo, com o semicírculo de tranças (curvas reforçadas!) do cabelo e com a parte inferior do corte do espelho, criando novamente uma foto em tensão dinâmica. O equilíbrio é assimétrico, e o peso visual claramente pende para a esquerda/centro, com as extremidades (da esquerda no alto e da direita embaixo) escurecidas. A presença de diferentes texturas (da parede, do corpo, do cabelo, da lâmina do espelho, do búzio, do anel no indicador direito de Francesca) reforça essa distribuição.

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A terceira fotografia também mostra Francesca e explicita, pelos seus elementos, a ligação que esta artista possuía com o surrealismo, sobretudo pela presença de superfícies transparentes (como também a de espelhos, na imagem anterior) e talheres – que parecem sobressair, com seu brilho metálico e a curiosa impressão de “sombras” que três garfos teriam deixado na folha atrás da qual surgem, do escuro inferior, o rosto e a mão de Francesca (replicando outro garfo que ela segura: afinal, os dedos repetem as linhas longas deste instrumento). Impossível não lembrar, por exemplo, um quadro como “Canibalismo de outono”, de Dalí, que também lida com talheres de um modo inesperado. Francesca Woodman, se não deforma com tanta violência sua imagem, também se aproxima da mutilação aqui, pelas partes do corpo “soltas” que apresenta, e pela própria presença de garfos (seis, se contamos também com os reflexos) e suas implicações simbólicas. Uma única colher neste arranjo reprisa, no alto da bancada onde se encontra, a estrutura do olho e da pálpebra da personagem – também uma única, já que o outro lado do rosto não se encontra visível. Uma linha – explicitada pela borda da folha que oculta a face – liga estas duas referências, olho e colher. Novamente lembramos outro surrealista, Buñuel, com a famosa e impactante cena do seu filme Um cão andaluz – embora o talher usado na película tenha sido uma faca, nesta fotografia as referências a alimentação, extração e mutilação têm a mesma força.
O jogo de linhas e diagonais garante à imagem uma composição dinâmica e, apesar de à primeira visada podermos considerar a cena confusa, logo vemos que nada ali é caótico: tudo parece ter sido arranjado deliberadamente, para construir uma mensagem de teor sinistro. Apesar das áreas claras superiores (e da área mais alta que se abre, por uma janela, para um exterior bem iluminado), mais da metade da foto – e a parte crucial, que contém o rosto – está na sombra, e no plano inferior. A folha de cartolina que se derrama sobre a personagem também é  escura, apesar das áreas traçadas a giz, replicando, de maneira amolecida (mais uma referência a Dalí) os dois garfos no alto e a extremidade de um deles, à altura da têmpora da personagem. Este último é diferente por ter apenas três dentes, e bastante espaçados, semelhando uma garra de pássaro. A parte inferior da cartolina recebeu uma camada de giz ou pó que lhe criou uma sugestão nublada, mais iluminada, portanto. A ideia de um desfoque se confirma no próprio rosto e na mão, cujos traços não surgem nítidos. Isso confere à foto certa leveza, apesar do tema pesado e do sombrio das cores mais escuras.

Eclipses

Não é todo dia que temos em Fortaleza um eclipse solar – assim, eu fiz o sacrifício de acordar cedo no último domingo e me juntei aos vizinhos que tinham madrugado perto da caixa d’água do prédio. Por volta de sete da manhã, éramos umas trinta pessoas circulando por entre antenas de televisão e internet, e cada um de nós levava uma radiografia através da qual poderia enxergar o fenômeno celeste. Ora, foi justamente esse fator que ocasionou constrangimento. Tudo começou quando um médico arrancou das mãos de uma senhora o raio-X que ela vinha segurando em direção às nuvens. “Essa pessoa ainda vive?”, perguntou ele, ríspido. Recebendo uma perplexidade muda em resposta, o médico completou: “Seria impossível, com essa tuberculose avançada!” – e devolveu a imagem dos pulmões à velhinha carcomida.

Eu me afastei da dupla, mas então fui alcançada por um senhor, residente de um dos mais altos andares. Ele me mostrou sua radiografia dentária, perguntando se eu achava que o tamanho dela era suficiente para servir de proteção aos olhos. Reparei no retângulo com a silhueta mandibular e disse que sim, estava ótimo – mas na verdade fiquei chocada em descobrir que todos os molares do homem eram sustentados por pinos. Esse é o tipo de coisa que você não quer lembrar, quando recebe um sorriso de cumprimento no elevador.

Mas afinal eu continuava à espera do eclipse. Talvez quisesse reviver a sensação da infância, quando o cometa Halley me trouxe o primeiro impacto astronômico. Agora, porém, o clima não era nada intimista; qualquer tom misterioso ou tendência para a ficção científica desapareceria sob os gritos dos meninos correndo pelo terraço com caleidoscópios e óculos 3-D – além, é claro, das folhas de radiografia, que eles agitavam para criar som de tempestade. Suas mães se inclinavam em cadeiras desdobráveis, como se estivessem na praia: é provável que não quisessem abandonar o hábito dos domingos. Calculei que alguém certamente preparava caipirinhas na casa de máquinas, longe da ventania (dentro de poucos minutos, o sol seria mordido pela lua, e os drinques começariam a ser servidos). Mas, por falar em vento, de repente uma rajada arrebatou os exames radiológicos, que se confundiram numa pilha frouxa, junto de uma parabólica. As pessoas começaram a correr para recuperar as chapas, mas o médico conteve todas com um grito. Cabia a ele, como profissional da área, coletar e distribuir aqueles produtos.

Entrei na fila que se formou, atenta aos chamados. “Quem quebrou a tíbia?”, perguntava o médico, e um adolescente magro se adiantou. “E luxação de quadril, quem teve?” Um dos garotos barulhentos disse “Eu!” com visível orgulho.  Fiquei aborrecida com aqueles segredos ósseos escancarados – e, quando o médico engasgou, eu já sabia com qual radiografia ele estava. “Quem… quem tem… um rabo?” “O meu gato”, respondi, e peguei o raio-X de três anos atrás, quando o veterinário suspeitou de uma neurite, graças a Deus não confirmada. Com a lâmina em frente ao rosto, eu finalmente contemplei the dark side of the Sun, conforme o comentário de um rapaz que me fitou com jeito sinistro.

 

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

 

 

 

Fotos gloriosas

O meu hábito de tirar livros por impulso, em bibliotecas, continua a trazer bons resultados. Dessa vez, conheci a arte de Arthur Omar, pelo título O zen e a arte gloriosa da fotografia. A obra se concentra numa exposição específica, de retratos (ou de “paisagens de rostos”, como o autor prefere): “Antropologia da face gloriosa”. As fotos são impactantes, e é interessantíssimo ler a respeito de seu processo de revelação etc. Mas o melhor do livro são as reflexões sobre arte. Pinço alguns momentos aqui:

“Há uma atitude física do fotógrafo, uma maneira corporal de estar presente numa situação como fotógrafo. (…) A câmera fotográfica talvez seja como uma máscara negra. Vai colada ao rosto. É um dos poucos instrumentos artísticos que toca o rosto, ou que, digamos, sensibiliza o rosto, assim como o pincel sensibilizaria a mão, e a bola sensibilizaria os pés.”

“A arte é um jogo complexo de Acaso e Ordem, não necessariamente nesta ordem. É preciso descobrir a hora certa da Ordem. Mas não há uma ordem que nos diga qual é o momento de recorrer ao Acaso. A Ordem é rápida, expedita, mas temos que ser lentos diante dela. O Acaso é lento, exasperante, mas temos que ser rápidos diante dele. Em arte, temos que ser sempre dois ao mesmo tempo.”

“Muitas vezes, a fotografia é isso, um abismo iluminado. Em fotografia, o que mais me atrai, em geral, são imagens de personagens de olhos fechados, ou olhos tão baixos que não conseguimos ver sua expressão. O abismo se torna algo indicado, interior, e todos os elementos convergem por sucção, ou por implosão delicada, para o que estaria sendo velado na massa cinzenta daquele ser.”