Presente

Presente do prof. B., quando soube da minha partida para o pós-doutorado na Bélgica: palavras de Saramago.

“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: ‘Não há mais o que ver’, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”

 

Arte atrai arte

Um dos processos que mais me dá prazer é esse da “arte que puxa arte” – quando, através de uma obra, sou levada a outra, de um autor diferente, e daí a outra, outra… como se um fio invisível me impulsionasse à aventura criativa, que se irmana entre vários pontos, ao longo do tempo e das culturas. Não se sabe aonde o caminho levará; só se sabe que será interessante, divertido e belo (aquela experiência viciante – e irrepetível – de ler um grande autor pela primeira vez: sempre estou buscando a velha sensação, embora a releitura tenha também o seu lado sublime).

Tudo isso para dizer que recentemente “ganhei o dia” por uma circunstância fortuita (será?). A querida amiga Mirella me havia emprestado o filme Elena, da diretora Petra Costa: poético, sensível e simbólico, sim – mas junto com o filme recebi também um livro de ensaios a respeito. Este foi o grande achado. Num dos textos, Joca Reiners Terron me fisgou pela passagem:

“Poucos meses antes de morrer (…) o grande escritor uruguaio Mario Levrero (1940-2004) enviou estranho e-mail ao filho Juan Ignacio, recomendando-lhe a leitura de um artigo acerca da criação de lagartos em determinadas condições de temperatura, além de outro sobre a conformação de quasares ao redor de certo planeta. A sugestão era precisa e indicava as páginas das revistas científicas que se encontravam em sua coleção particular.

Questionado pelo filho por conta dessas indicações aparentemente desvairadas que fugiam de seu campo de interesse, Levrero desconversou, apenas dizendo que guardasse a informação pois seria útil em seu devido momento. Após sua morte, em meio às dores do luto e à procura de rememorá-lo, Juan Ignacio se lembrou da indicação paterna. Ao folhear as revistas, encontrou dois mil dólares, que serviram para pagar o funeral, além de recuperar a existência de Mario Levrero por meio de traços essenciais de seu caráter, como a graça e o humor negro.” (pp.90-1)

Um “googling” imediato me trouxe outras informações sobre esse autor – que até então eu desconhecia. E soube que Mario Levrero é da “família” dos levemente surrealistas, como Felisberto Hernández. Não precisava de outra recomendação: já estou com o seu Paris: é a primeira etapa nesta travessia junto a um autor que, assim como Horacio Quiroga, tem tudo para me fazer mais próxima de um Uruguai literário.

Ao bebê Joaquim, futuro leitor

Este fato aconteceu em abril. Meu romance Turismo para cegos ganhava um pré-lançamento no festival da Mantiqueira, aonde eu comparecia pela primeira vez. Depois do debate na tenda dos escritores, sentei para alguns autógrafos – e foi quando percebi o casal se aproximar. Pareciam dois universitários, com a leveza serena que certos jovens têm. A moça empurrava o carrinho com o bebê, que aos poucos meses já começava a frequentar espaços artísticos. Fiz um comentário simpático a respeito, enquanto ela me estendia um exemplar para que eu assinasse. “No nome de quem?, perguntei. “Joaquim”, ela disse, com um gesto de cabeça apontando a criança. O rapaz – ou talvez tenha sido a própria moça (aqui a lembrança hesita) – completou que desde cedo queriam formar uma biblioteca para o filho: “E com edições autografadas, que mais tarde ele vai gostar de ler”.

Fiquei absolutamente encantada.

Até hoje penso nesse menino crescendo numa casa com estantes que vão ganhar sempre novos livros – porque também eu passei a vida entre bibliotecas e, embora a maioria dos títulos pertencesse aos meus pais, eles ficavam todos ali, acessíveis como na clandestina felicidade de Clarice. Eu sabia que cada um deles poderia ser meu, que um dia seria possível chegar aos volumes das prateleiras mais altas, como se a escalada etária se medisse assim: adulto era o ser que tinha acesso às obras complexas, que raspavam no teto da sala, dos quartos…

Quando falei sobre essas impressões a um amigo mal-humorado, ele respondeu que eu era uma romântica, que mais valia tratar de alimento e saúde para as crianças, higiene, segurança, todas essas coisas fundamentais. “Biblioteca é um luxo” – acrescentou, esbaforido, e não discuti, porque detesto argumentações infindáveis. Mas poderia dizer que a vida também é um luxo. E a alegria. E a imaginação, inclusive. Eu agora imagino um futuro distante, digamos em 2095, quando nenhum de nós estiver por aqui – imagino Joaquim, um vetusto senhor a pegar em seus livros antigos, edições fora de mercado. Em determinado instante, ele vê o exemplar azul, com bolinhas de silicone na capa que revisita um quadro de Matisse. Folheia o livro lentamente e encontra a dedicatória que lhe fiz, no começo do século. Dedicatória ao leitor enquanto bebê: ele não se lembra da ocasião, mas adivinha que cruzamos olhares sorridentes. Isso de algum modo persiste.

Tércia Montenegro (crônica publicada ontem no blog da Companhia das Letras – clique aqui)

 

Para amar Ponty

Se a significação só é possível a partir da percepção, a filosofia de Merleau-Ponty também só existe a partir de sua postura sensível e artística. Como não se apaixonar por um pensador que diz coisas assim?

“Já que a percepção mesma jamais é acabada, já que ela só nos dá um mundo a exprimir e a pensar através das perspectivas parciais que ele ultrapassa por todos os lados, já que sua inenarrável evidência não é das que possuímos e, enfim, já que o próprio mundo só se anuncia por sinais fulminantes como pode ser uma fala, a permissão de não ‘acabar’ não é necessariamente preferência dada ao indivíduo sobre o mundo, ao não significante sobre o significante, ela pode ser também o reconhecimento de uma maneira de comunicar que não passa pela evidência objetiva, de uma significação que não visa um objeto já dado, mas o constitui e o inaugura, e que não é prosaica porque desperta e reconvoca por inteiro nosso poder de exprimir e nosso poder de compreender.”

“O pintor é tão incapaz de ver seus quadros quanto o escritor de se ler. Essa telas pintadas, esses livros, têm com o horizonte e o fundo da própria vida deles uma semelhança demasiado imediata para que um e outro possam experimentar em todo o seu relevo o fenômeno da expressão. É preciso outros fluxos interiores para que a virtude das obras se manifeste suscitando nelas significações de que não eram capazes. Inclusive, é somente nelas que as significações são significações: para o escritor ou para o pintor, há apenas alusão de si a si, familiaridade com o ronronar pessoal.” (grifo meu)

“Na medida em que o pintor já pintou, e em que é de certa maneira mestre de si mesmo, o que lhe é dado com seu estilo não é um certo número de ideias ou tiques dos quais pode fazer o inventário, é um modo de formulação tão reconhecível para os outros e tão pouco visível para ele quanto sua silhueta ou seus gestos cotidianos.”

“(…) a percepção já estiliza.”

“Há significação quando submetemos os dados do mundo a uma ‘deformação coerente’. (…) O mundo percebido, e talvez mesmo o do pensamento, é feito de tal modo que nele não se pode colocar nada que logo não adquira sentido nos termos de uma linguagem da qual nos tornamos depositários, mas que é tanto tarefa quanto herança.”

“(…) cada fragmento do mundo (…) mostra um certo modo que ele tem de responder e de vibrar sob o ataque do olhar (…) e finalmente ensina, além dele mesmo, uma maneira geral de falar.”

“De que maneira o pintor ou o poeta seriam outra coisa senão seu encontro com o mundo? De que falariam? De que falaria inclusive a arte abstrata, senão de uma certa maneira de negar ou de recusar o mundo? A austeridade, a obsessão das superfícies ou das formas geométricas têm ainda um cheiro de vida, mesmo que seja uma vida envergonhada ou despreparada. A pintura reordena o mundo prosaico e produz, se quiserem, um holocausto de objetos, assim como a poesia faz arder a linguagem ordinária.”(grifo meu)

MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. Trechos entre as págs. 106 e 118)

Mestre Nato no MABE

Minha recente visita ao MABE não trouxe grandes encantamentos pelo local em si (o Palácio é bonito e suntuoso, as peças de mobília e os quadros são interessantes – mas não me arrebatei. A coluna em art-nouveau no Mercado das Carnes teve, ao contrário, um efeito hipnótico sobre mim… mas isso é assunto para outra postagem). O ponto alto do museu esteve na primeira sala, antes da imponente escadaria. Ali havia a mostra de peças do Mestre Nato, artista paraense falecido no ano passado. Suas obras, que fazem experiências com figurinos e esculturas, transitam entre erotismo e religiosidade, revelando, sem dúvida, um estilo bastante autoral – resultado de todo um caminho biográfico e estético. Os detalhes da vida e da produção de Mestre Nato podem ser visitados no Memorial que está sendo organizado em seu antigo ateliê, sob os cuidados de seu sobrinho, Alexandre. Tive o privilégio de também conhecer o local e algumas peças inéditas – mas as fotografias abaixo são apenas de três obras que estavam no MABE:

DSC_0089DSC_0092O casamento entre texto e bordado, que se vê em alguns estandartes de Mestre Nato, faz a gente pensar nas obras do Leonilson (muito mais talvez do que no Bispo do Rosário)… Fiquei com uma vontade imensa de ler um ensaio que aproximasse esses artistas! Alguém se habilita? O tema está disponível!

Brueghel conforme Baudelaire

É sempre arrebatador encontrar escritores falando de artistas plásticos. Vejam mais uma do Baudelaire ensaísta – e para mim, este texto serve também de preparação para a temporada belga, que se aproxima:

“Os flamengos e os holandeses fizeram, desde o início, coisas belíssimas, de um caráter verdadeiramente especial e autóctone. Todo mundo conhece as antigas e singulares produções de Brueghel, o Engraçado, que não deve ser conhecido, assim como o fizeram vários escritores, com Brueghel de Inferno. Que haja nisso uma certa sistematização, um parti pris de excentricidade, um método no bizarro, não é de duvidar. Todavia, também é bem certo que esse estranho talento tem uma origem mais elevada do que uma espécie de aposta artística. Nos quadros fantásticos de Brueghel, o Engraçado, mostra-se toda a força da alucinação. Que artista poderia compor obras tao monstruosamente paradoxais, se não fosse arrebatado desde o princípio por alguma força desconhecida. (…) Há no ideal barroco que Brueghel parece ter perseguido muitas relações com o de Grandville, principalmente se quisermos examinar bem as tendências que o artista francês manifestou nos últimos dias de sua vida: visões de um cérebro doente, alucinações da febre, mudanças repentinas e totais do sonho, associações bizarras de ideias, combinações de formas fortuitas e heteróclitas.

As obras de Brueghel, o Engraçado, podem se dividir em duas classes: uma contém alegorias políticas quase indecifráveis hoje; é nessa série que encontramos casas cujas janelas são olhos, moinhos cujas asas são braços, e mil composições assustadoras onde a natureza é incessantemente transformada em logogrifo. Além de tudo, bem amiúde, é impossível distinguir se esse gênero de composição pertence à classe dos desenhos políticos e alegóricos, ou à segunda classe, que é evidentemente a mais curiosa. Esta, que nosso século, para o qual nada é difícil de explicar, graças a seu duplo caráter de incredulidade e ignorância, qualificaria simplesmente de fantasias e caprichos, contém, segundo me parece, uma espécie de mistério. (…) Como uma inteligência humana pôde conter tantas diabruras e maravilhas, engendrar e descrever tantos absurdos assustadores? (Baudelaire. “Alguns caricaturistas estrangeiros”)

Rir com Baudelaire

Baudelaire, bom de ler, já diziam os antigos – e descubro o ensaísta, quase tão encantador quanto o poeta. Em estudo sobre o riso, Baudelaire pode não convencer tanto quanto Bergson, mas tem passagens engraçadíssimas, como esta:

“A concordância unânime dos fisiologistas do riso sobre a principal razão desse monstruoso fenômeno bastaria para demonstrar que o cômico é um dos mais claros signos satânicos do homem e uma das inúmeras complicações contidas na maçã simbólica. Por sinal, sua descoberta não é muito profunda e não vai longe. O riso, dizem, vem da superioridade. Eu não ficaria surpreso se diante dessa descoberta o fisiologista se pusesse a rir pensando em sua própria superioridade.” (“Da essência do riso e, de um modo geral, do cômico nas artes plásticas”)

Turismo na FLIP

Amigos, escrevo-lhes de Belém, onde participo do congresso internacional de literatura comparada (Abralic). Não estou na Flip, portanto – mas o Turismo foi para lá. E um pouco dele (e da história de sua criação) pode ser visto neste vídeo, preparado pela Petrobras, patrocinadora do projeto. Façam uma boa viagem!