Surtos de quarentena

      Alguém me disse que o artista cearense Paulo Montserrat infelizmente abandonou a releitura que preparava de “Haraquiri em um encontro de ventríloquos”, obra-prima de René Pollesch, e resolveu passar o confinamento numa floresta bávara, vivendo de coleta. Ele não é um caso único: várias pessoas têm apresentado um comportamento estranho, graças ao mix de 2020. Vírus, medo, desemprego, situação política em mistura com ódios, recalques e frustrações inconfessáveis compõem a fórmula cotidiana de muita gente.

     Assim, não é de espantar a notícia sobre um homem que, durante uma briga com o parceiro, pegou todas as máscaras faciais que ambos possuíam e atirou pela janela. Quero imaginar o arremesso daqueles estranhos pássaros de pano, caindo do vigésimo segundo andar – mas a cena não me agrada (como também não agradou ao síndico do prédio, que multou a dupla por jogar lixo semi-hospitalar no pátio).

     Há também o caso de uma amiga que – logo no início da quarentena – sentiu-se tão aprisionada, que começou a doar os móveis do apartamento. Sua família se desesperou, ao saber que a mesa da sala, com seis cadeiras, tinha ido embora, e ainda uma cristaleira e um guarda-roupa. Ao final, minha amiga se viu apenas com a cama, um armário e a mesinha do computador. “Parece que as paredes estavam se aproximando de mim”, ela disse, “então precisei tirar os móveis para criar distância”.

      A maioria das crises vem pelo desejo de liberdade, e as estratégias para obtê-la vão surgindo, de modo simbólico ou concreto – mesmo que, neste último caso, possam durar pouquíssimo. Certa senhora de um bairro acolá, para escapar do aperreio constante, deixa a filha de 5 anos invadir as casas vizinhas. A mulher se põe distraída, conversando na porta, enquanto a menina explora gavetas, pula no sofá alheio ou, frequentemente, abre a geladeira e agarra o primeiro frasco que encontra… Ao todo, já bebeu soro fisiológico, xarope de groselha, infusão contra reumatismo e vinagrete. É preciso que a própria dona da casa ou outro morador qualquer segure a pequena intrusa e a arraste de volta à mãe, pois esta aproveita cada minuto do descanso e jamais iria, por um gesto espontâneo, recuperar a criatura infatigável.

     Eu também – confesso – tenho exercitado pensamentos mirabolantes para escapar da rotina. Mas freio qualquer atitude prática, quando lembro o perigo de contaminação: a ameaça da pandemia persiste, por mais que alguns finjam o contrário. Portanto, a saída que encontro são as viagens – através de livros, fotos, ou por meios virtuais. Outro dia, fiz um trecho do caminho de Santiago de Compostela pelo google street view. Creio que amanhã visitarei Galápagos… ou, quem sabe, Cracóvia? Enquanto mantiver a curiosidade, vou escapando dos surtos, do precipício que espreita os que se sentem rodar, autômatos e fechados nessa gaiola urbana.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

Ecologia da presença

Tenho feito estudos sobre o teatro, refletindo sobre as mudanças que o isolamento social trouxe para este setor. Assim como outras artes do espetáculo, o teatro por princípio compartilha de um tempo-lugar com seu público – aspecto que se altera ferozmente através de exibições on line. Uma parte das investigações publiquei na coluna que mantenho no jornal curitibano Rascunho; é o meu texto para este espaço durante o mês de setembro: um(a) leitor(a) curioso(a) pode depois conferir no site. Agora, entretanto, gostaria de apenas roçar o tema, trazendo passagens do livro de Hans-Thiers Lehmann, “Teatro Pós-dramático” (Cosac Naify, 2007).

O primeiro trecho que ressalto surge quando o autor menciona um “nicho ecológico” instaurado pela via da percepção, “o campo de uma intersubjetividade que põe em jogo a interação entre os corpos, uma relação de encontro comum em uma situação social que constitui um outro ‘tempo’ entre sujeitos.” E logo adiante afirma: “tanto na atitude ética quanto no cerne da afetividade em geral, encontra-se a indisfarçável situação da ‘presença’ do outro”(p.366). Naturalmente, o(a) leitor(a) percebe que aqui se fala tanto de teatro quanto de vida.

De fato, por mais que louvemos as vantagens tecnológicas que nos aproximam uns dos outros e expandem possibilidades comunicativas, há um lado pernicioso aí. Por que precisamos mesmo fazer aquele curso extra? Será por uma real necessidade ou prazer? Ou ativamos o hábito compulsivo de agir sempre mais e mais, porque o mercado exige, ou um modismo obriga, ou ainda porque essa é uma forma de fugir (dos pensamentos, do vazio rotineiro, das horas livres)? Ser workaholic muitas vezes significa deixar de existir e passar a funcionar, meramente.

A esse respeito, Lehmann é incisivo: “Se os gestos da interrupção reflexiva são considerados como algo antiquado e dispensável em relação ao registro sem demora das informações, a perspicácia versada tecnologicamente ameaça se converter em ideologia, na apoteose do funcionamento cego” (p.390).

Estão em jogo questões éticas, teóricas e sobretudo psíquicas, nesses ambientes computadorizados impostos na quarentena. O efeito zap – que nos leva a mudar o foco de atenção desvairadamente, considerando um fragmento qualquer como unidade informativa (e assim ninguém mais contempla uma foto, por exemplo, ou lê um texto inteiro na internet) – constrói a ilusão de que estamos “ganhando tempo”. Entretanto, adquirimos um vício ansioso, ignorando o que permanece inalcançável por baixo dessa mimese eletrônica.

Embora eu esteja vendo espetáculos on line, dando aulas remotas e fazendo tudo o que ficou obrigatório por força das circunstâncias, não esqueço que são paliativos. Bom mesmo é mergulhar numa experiência lenta de teatro ou outro tipo de convívio – uma troca física que lembre: eis a presença natural. Uma ecologia arcaica, irrepetível.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

Na paz e na guerra

A temporada de confinamento que enfrentamos, desde março deste ano, teve repercussões que ainda vão lançar raízes por longo tempo. Em minha escrita para o jornal curitibano Rascunho, inaugurei 2020 com uma série ensaística sobre Lygia Fagundes Telles, e esse projeto temático exigia persistência. Mas agora que o ciclo de textos se encerrou, eu me permito divagar por vários assuntos. E penso nas leituras que fiz durante a quarentena – sobretudo Guerra e Paz, obra que parecia esperar, paciente, a minha disponibilidade. Como diante de todo clássico, já suspeitava que as críticas não me tinham preparado o suficiente (tarefa impossível, aliás) para a aventura de mergulhar no texto. Porém, não imaginava que o livro de Tolstói fosse me cavar tantos abismos místicos, até anarquistas – que sei eu? –, no processo de leitura.

Sob o colossal trabalho do autor russo, fica clara não somente a extensa pesquisa histórica feita, mas também a necessidade de pôr questões filosóficas em pauta – e orquestrar tudo, saber em que hora, e com que personagem, certa deriva podia se desenvolver. A escrita em si, se para ele foi uma parte fácil, nem por isso se tornou veloz: fluir não significa correr. Em nenhum momento a narrativa perde compasso, e é magistral o tema implícito que, adotando esse ritmo, o autor injeta: o de que todas as histórias, todas as ações, são igualmente importantes… ou igualmente inúteis, conforme se enxergue.

A alternância que o enredo propõe, dedicando-se primeiro à vida frívola dos salões aristocráticos, e depois aos episódios das batalhas, poderia criar no(a) leitor(a) a expectativa de que estes últimos, sim, são o miolo do livro, a sua razão de ser (e inclusive o enaltecimento tradicional das guerras parece relegar a “paz” ou a vida cotidiana a um lugar mesquinho). Com a leitura, percebemos o equívoco: tudo é o miolo, tudo está no centro.

Não existe senão a vida cotidiana, e em cada batalha os personagens circulam, atordoados, do mesmo modo inconsciente como nos salões obedecem a rituais de polidez. Ninguém tem uma visão grandiosa de nada, porque a escala do indivíduo é sempre ínfima – e a tal glória de haver lutado numa guerra, no fundo, resume-se à pura sorte de ter escapado vivo (não por mérito, porque, na dança de um tiroteio, é apenas pela coreografia divina que um determinado soldado escapa de cair alvejado onde, um segundo antes, marcava o passo).

De forma equivalente, na sociedade, o jogo de interesses favorece uns, desmascara outros. Tudo é pequeno, mesquinho e passageiro; os soldados morrem inutilmente, para que depois os imperadores façam acordos – e em que a vida de Napoleão ou a do czar Alexandre pode ser mais valiosa do que a de outra pessoa qualquer? A única razão para essa hierarquia foi o juízo coletivo que a legitimou, santificou, exaltou uns pouquíssimos em detrimento de todos os demais.

Anotei no meu diário, em 20 de abril: fiquei profundamente impressionada com a cena em que o personagem Pierre encontra um idoso na estação de trem, ao fugir da esposa, sentindo-se indiferente ao próprio destino – se continuaria igual, ou se morreria ali sem um lamento. Ora, Tolstói escreveu Guerra e Paz aos 35 anos; com mais de 80, depois de seguir convicções que o levaram a doar grande parte de suas terras aos camponeses, perseguido judicialmente pela esposa (que tentava impedi-lo de doar o resto), ele foge do inferno familiar, tomando um trem – e morrendo numa das estações, em Astápovo.

É inevitável pensar que nessa cena do livro o personagem encontra o próprio autor, transfigurado no velho que ele seria 50 anos mais tarde – e os dois conversam. O personagem se sente irresistivelmente atraído pelo ancião, que sabe quem é Pierre, conhece a sua história e o aconselha. O movimento simula um encontro com o divino; se consideramos que há também uma Grande Narrativa por trás de nossas vidas, a possibilidade de um dia conversar com Deus é equivalente a essa, de um personagem encontrar-se com seu autor, numa espécie de mise en abîme diegética que nem Pirandello ousaria. Notemos: em Guerra e Paz o procedimento foi involuntário da parte de Tolstói, e em Seis personagens à procura do autor a metaestratégia ocorreu de modo bastante consciente…

Em outro capítulo, a cena de um debate entre Andrei Bolskónski e Pierre Bezukhov traz novas considerações à baila. Após sua conversão à maçonaria, este último sente-se santificado por ter ordenado, em suas terras, o fim do trabalho infantil, a construção de igrejas, hospitais, escolas e uma série de benefícios ao “próximo” – sem saber que sua sensação é ilusória, pois a corrupção administrativa de suas propriedades apenas finge desenvolver as melhorias, mas na verdade os camponeses seguirão explorados de qualquer maneira, talvez até mais que antes.

Andrei, por outro lado, não acredita que se possa “fazer o bem”, porque a própria interpretação do que é bom pode ser mera arrogância de quem acha que, devido a estudos que fez, por exemplo, conhece a Verdade. Como alguém presumiria o que é bom para uma pessoa, se não sabe sua realidade ou não ouve as demandas diretamente dela? Essa foi a perniciosa ideologia por trás de discursos colonialistas, populistas, salvacionistas ao longo dos séculos – e ainda hoje isso carrega polêmicas antropológicas ou culturais, dentre tantas. No fundo, ninguém faz nada senão por si mesmo – e um ato de caridade pretende muito mais aplacar a consciência do doador, ou construir dele certa imagem (pública, inclusive) de benéfico. A paz também se compra, assim como a opinião alheia.

Mas a postura de Andrei – que esteve a ponto de morrer numa batalha, e que antes disso desejava a “glória”, ou seja, vivia em função dos outros, para os outros – é de um radical egoísmo sábio. Ele decidiu viver só para si e, quando se dedica à família, sabe que continua no perímetro do seu eu, das coisas ou pessoas que lhe são caras e até, por assim dizer, ajudam a construir sua identidade. Os outros de fato, os desconhecidos, os anônimos, os figurantes que podem cruzar seu caminho, as pessoas por trás das estatísticas, de todo tipo de construção ou serviço, a humanidade em geral, essa massa distribuída ao longo dos séculos e países… isso não lhe interessa. Ou lhe interessa tanto quanto um cenário ao fundo de um espetáculo: é algo que existe ali, mas nunca em evidência.

Andrei – por sua experiência de quase-morte – entendeu como é responsável unicamente por si; ninguém lhe restituiria a vida ou a viveria em seu lugar. Portanto, cuidar dele mesmo é a sua missão grandiosa, o seu heroísmo. O que a sociedade elege para a fama, o sucesso em algum domínio (por exemplo, Napoleão), a Andrei se revelou como uma sombra que atrapalhava sua visão do céu, no momento da agonia, ferido na guerra. De que lhe importava se aquele homem a seu lado era um imperador, um tirano ou um sujeito vulgar? Andrei só se preocupava consigo, não fazia o mínimo esforço para reconhecer a personalidade tão aclamada que, ali, era apenas um incômodo.

Ao sobreviver, Andrei se transformou. Deixou de ter “uma vida a serviço de” e passou a ter “uma vida” – ponto. Sem se preocupar em justificar sua serventia, os atos que fizesse em prol da humanidade, os benefícios, a honra, a justiça. Todos esses valores se esvaziaram, saíram da casca das palavras e perderam o sentido. Assim como a vida alheia também perdeu o sentido, virou esse cenário distante que Andrei não se esforça mais por discernir ou compreender – sabe que isso agora não lhe diz respeito. Aliás, nada jamais diz respeito a uma pessoa a não ser ela própria: Andrei admite tal princípio com naturalidade e modéstia. Ele não é um monstro interessado em prejudicar os demais (como às vezes o egoísmo parece sugerir, embora o conceito de centrar-se no eu nada tenha, necessariamente, de inveja ou maldade). O seu lema poderia ser: viva e deixe viver. E deixar viver não é ajudar a viver; é largar o outro com a própria vida, fazê-lo responsabilizar-se por ela, porque essa é a situação inexorável de cada um no planeta.

O desenvolvimento posterior deste personagem, entretanto, mostra como uma condição filosófica é frágil, pode desmoronar facilmente. Depois de um tempo dedicado a si, voltado para a sua paz egoísta, Andrei se desestabiliza sob a influência de Pierre (que, no fundo, é um pobre imbecil manipulado, mas desconhece a própria realidade). Volta a participar de círculos sociais e políticos, ocupa sua vida com ações que não compreende nem questiona, simplesmente as repete porque é o que todo mundo faz, é o que esperam dele, o que de fato exigem. Sim, embora tudo pareça sutil e camuflado, é posto como obrigatório – se ele se recusa a caber no papel destinado, deve explicar-se, convencer, o que parece mais cansativo que a obediência. Caso se recuse sem dar explicações, será visto como um louco, um ser hostil ou no mínimo excêntrico, e vão isolá-lo, abandoná-lo… odiá-lo (por ter a coragem de fazer o que, inconscientemente, a maioria deseja mas não arrisca, e por destruir, ou arranhar ao menos, o escudo corporativo que sustenta a sociedade e inventa um sentido para a existência dos indivíduos, ao enfiá-los em papéis específicos).

É preciso uma disciplina imensa, para ser um dissidente. Mas não falo de quem abandona as regras de um grupo para seguir as de outro; alguém que se converte, por exemplo, a uma religião ou ideologia, não faz nada original. O dissidente é aquele que recusa (“I prefer not to”, como dizia o Bartebly de Melville), e para tal não precisa fazer anúncios, chamar a atenção para o espetáculo de sua negativa, como também não precisa arranjar adeptos, outras pessoas que o apoiem (isso já seria formar um grupo, cair em regras).

A recusa pode ser silenciosa, íntima. As atitudes de um dissidente podem soar distraídas, banais até, insignificantes: é quando alcançou o seu propósito. Porque, se a opinião social considera o opositor uma ameaça, não cessará de combatê-lo; porém, se vê em seus atos algo inofensivo, então vai deixá-lo em paz, com aquele tipo de gesto frustrado que os adultos adotam com crianças que não lhe parecem birrentas, mas ainda assim são teimosas. “Pois faça o que quiser!”, dizem, e não deixam de espiar ocasionalmente a criança, mas a vigilância relaxa.

Isso já representa a liberdade.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de agosto, com leves adaptações. Pode ser lido aqui)