Paul

“Em dezembro de 1949, embarquei num cargueiro polonês em Antuérpia com destino a Colombo. Entramos no estreito de Gibraltrar à noite e ficamos no convés observando a luz do farol do cabo Spartel, na extremidade noroeste da África. Ao navegarmos para o leste, eu podia distinguir a luz de algumas casas na Velha Montanha. Então, quando chegamos mais perto de Tânger, uma fina névoa assentou sobre a água, e só se via o refulgir das luzes da cidade refletido no céu. Foi então que senti um desejo ilógico e poderoso de ir para Tânger. Até aquele momento, nunca me havia ocorrido escrever um livro sobre a cidade internacional.”

O trecho acima pertence à introdução do livro do Paul Bowles, Que venha a tempestade – minha leitura atual. Depois de voltar de viagem, fiquei com essa vontade de ler relatos de aventura – e ninguém melhor do que Bowles para envolver o leitor em ambientes exóticos e tramas bizarras. Antes disso, estava lendo um xará dele, Paul Theroux (cuja Suíte elefanta está entre meus livros preferidos). O seu romance A costa do Mosquito traz uma longa peregrinação pelas selvas de Honduras, e a gente fica com a real sensação de viscosidade, calor pegajoso e cansaço quase desumano, depois de lê-lo. O retrato odioso do protagonista é também uma lição de como se pode criar um vilão em narrativas. Se um grande autor pode ser medido pela capacidade que tem de manipular as emoções do leitor, então Theroux revela-se um mestre. A sua história instaura dor e repulsa – e é admirável a maneira como não escapamos de ser (assim como a maioria dos personagens) vítimas das circunstâncias, sofrendo com isso.

Bowles

Theroux

Jantar com Brecht

     Além das inúmeras atrações museológicas de Berlim e dos passeios por suas pontes com paisagem de outono, um ponto inesquecível da minha viagem foi a casa de Brecht. Fora do circuito turístico, a residência do dramaturgo alemão hoje se abre para visitação, e toda noite funciona ali, nos porões onde havia a cozinha de Helene, um restaurante peculiar.

    O cardápio lista os pratos que a esposa do poeta lhe preparava – e é algo quase místico pedir uma refeição naquele ambiente. Sentei-me a uma mesa de cinco pontas: uma daquelas de carteado, onde Brecht possivelmente jogava com os amigos. A mobília parece autêntica, assim como as luminárias, que são verdadeiros spots (retirados dos teatros onde Brecht estreou?), suspensos como lustres. Nas paredes, há retratos do artista e textos musicais em moldura. Pequenas caixinhas simulam palcos e composições cênicas: vemos um teatro em miniatura, à espera de personagens para habitá-lo. Ali estavam os acessórios d’A ópera dos três vinténs, e mais adiante se adivinhava a atmosfera de Santa Joana dos Matadouros por alguns elementos mínimos, como reproduções de brincadeira.

    Para comer, que tal um wiener schnitzel, ou um escalope à vienense? Quem sabe uma carne cozida com salsa de albaricoque e rábano picante? Ou então um gnocchi de Salzburgo – ou um crepe recheado com diversos tipos de quark (seja lá o que isso for)? O menu, mesmo traduzido para o inglês e o espanhol, lançava uma zona de mistério à escolha. Não foi algo preocupante, porém: logo constatei que a comida era excelente e, apesar de no primeiro momento assustar pela fartura de carnes gordurosas, parecia incrivelmente leve. Talvez fosse o clima frio a me exigir quantidades calóricas extras, ou talvez eu estivesse disposta a ousadias culinárias em nome da arte… não sei ao certo o motivo, mas o fato é que jantei com um apetite impressionante e no dia seguinte acordei me sentindo muito bem!

    A Brecht Haus, além de seu restaurante-adega, ainda funciona como espaço cultural, promovendo palestras, lançamentos de livros e outros eventos interessantes. A agenda é bem diversificada, aberta a nomes consagrados ou iniciantes. Aliás, o bom de conhecer um lugar desses é justamente a sensação de se misturar com os ídolos, ter a chance de vê-los como pessoas, com uma vida íntima e trivial inclusive, parecida com a de qualquer um de nós. Pela falta de costume, ainda me assusto com esse impacto: quase desmaiei quando soube que na Literaturhaus Villa Augustin, em Dresden, onde eu fizera uma leitura, também Herta Müller (a maravilhosa autora d’O compromisso, Nobel de 2009) havia estado, concedendo uma entrevista.

    Mas às vezes os lugares e as épocas não parecem tão inatingíveis. Entramos numa igreja medieval, jantamos na casa de um artista morto há quase sessenta anos, ou subimos ao domo de uma catedral que, em sua cripta, guarda caixões de príncipes do século XVI… Este é um real acesso à história, uma forma de entender as experiências alheias e entrar no mundo.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

Gemäldegalerie

O que me faz feliz: saber que estou numa cidade em que existem obras de Vermeer. Em Berlim, tive esta sensação de plenitude com a Gemäldegalerie (que também recebia, na ocasião, pinturas do Picasso). Mas os holandeses não são incomparáveis? A foto dentro do museu foi feita sem flash, claro – mas mesmo assim a permissão foi um luxo que não se encontra em muitos lugares.

GemäldegalerieVermeer

A lição de Frankfurt

       Estive na Alemanha para fazer um ciclo de leituras, como parte da programação da Feira de Frankfurt. A editora Lettrétage, que estava lançando o livro Wir sind bereit. Junge Prosa aus Brasilien, sob a organização de Marlen Eckl, conduziu a minha agenda e a de outros autores brasileiros que integravam esta antologia de contos. Assim, começamos por nos apresentar em Dresden, na Literaturhaus Villa Augustin. Em seguida, viajamos a Berlim, para um evento na sede da própria editora. Apenas em 10 de outubro, chegamos a Frankfurt, e então eu pude conhecer as outras belas antologias de que estava participando – a Wenn der Hahn kräht – Zwölf hellwache Geschichten aus Brasilien, da edition fünf, com organização de Wanda Jakob e Luísa Costa, e a Der schwarze Sonh Gottes – 16 Fußballgeschichten aus Brasilien, da Assoziation A, sob organização de Luiz Ruffato.

      Na noite anterior, Ruffato fez o discurso de abertura da Feira – e eu, que ainda não estava lá, li suas palavras em vez de ouvi-las: um texto emocionante e justíssimo. No entanto, em conversas ou debates no frenesi dos pavilhões, depois ouvi algumas pessoas se posicionando contra aquela postura de “expor os problemas para o estrangeiro”; elas pareciam envergonhadas, de certo modo, e foi com espanto que eu constatei como a dignidade pode ser confundida com sentimentos passivos. Ao contrário, se não admitirmos os problemas – antigos e atuais – daquilo que nos constitui como país, como iremos mudá-los? E por que não aproveitar uma ocasião como a Feira de Frankfurt, quando o Brasil estava posto na vitrine? Dignidade me parece justamente esse ato de levantar a cabeça e não aceitar as podridões ou fingir que elas não existem.

          Não se trata de literatura ideológica, planfetária: quem fizer essa acusação jamais leu um parágrafo dos romances de Ruffato. Em sua obra, ele transborda estética, invenção linguística, poesia – e, lógico, aborda todo tipo de tema, inclusive os sociais, que fazem parte da humanidade. Na Feira, embora seja óbvio constatar, eu ressalto que ele não estava produzindo literatura. Estava cumprindo a programação do evento, com inúmeros compromissos em palestras, além da abertura do dia 9. Agia profissionalmente, embora fora do pleno exercício de seu ofício, que só se realiza de fato com a criação escrita. Dentro dessas circunstâncias de sua condição, portanto, ele aproveitou a visibilidade para dar um sentido político ao momento.

            Talvez os artistas ainda sejam vistos dentro de uma postura romântica, confundidos com lunáticos, boêmios ou insanos que se recusam a olhar o que é real demais. Pior: talvez alguns acreditem que deva ser assim, que o artista precisa ter essa aura e viver como alguém sem senso prático, que se contenta com festejos ou confetes, enquanto um fosso sério se abre em tantos lugares… É perigosa essa ideia, porque, se notarmos bem, nada do que Ruffato falou em seu discurso é novidade ou ficção, e no fundo todos conhecemos o lado negativo do perfil brasileiro. Por que a sua exposição causaria escândalo? A quem a verdade ofende, e por quê? Esse é o grande ponto que fica ressoando após a Feira.

            Não por acaso, a maioria dos alemães aplaudiu a coragem reflexiva de Ruffato, aceitou o seu discurso. Eles sabem que um país cresce na medida em que encara – e supera – os seus erros históricos, as suas tragédias.

 

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no jornal O Povo)

As ilhas

         Caro leitor: esta é mais uma de minhas crônicas de viagem – mas, ao mesmo tempo, é diferente de todas as outras por ser a primeira que escrevo viajando. Desta vez não houve tempo para decantar as impressões ou selecionar episódios com um fio temático específico, costurando figuras e paisagens pelo artifício da memória. Estou na Alemanha, numa fria madrugada de domingo, pensando no fiel leitor e tentando ser uma fidelíssima autora, que honra seus prazos literários. Que outro motivo me faria abdicar do sono para escrever dentro de um hotel com vista para a Alexanderplatz?

            Revejo algumas situações engraçadas… e em viagens sempre há cenas bizarras. Para falar a verdade, a coisa já começou no avião, com uma aeromoça de expressão robótica que não parava de circular com um bule, oferecendo em inglês – e com uma entonação apressada de quem alimenta galinhas – “Tea? Tea? Tea?” Depois, na minha chegada em Frankfurt, descobri, na Goethe Haus, um elemento de fetiche no teatrinho de fantoches que o autor alemão ganhara na infância. Ele continuou a usar o brinquedo pela vida adulta, nos momentos de ócio, quando não estava levando seus personagens para o suicídio ou o pacto satânico. E, por falar em obscuridades, a questão linguística está sendo uma diversão por aqui: com um trôpego inglês e a ajuda da mímica universal, eu até me comunico com os alemães – mas, mesmo assim, há estranhezas.  Ontem alguém pronunciou South America, e tive a impressão de que dizia Satan American – o que foi bastante assustador.

            Confusões à parte, o tema desta crônica merecia ser outro, bem mais sublime – se eu estivesse com tempo para desenvolvê-lo dignamente. Falaria sobre a Ilha dos Museus, a Museumsinsel, em Berlim. Teceria detalhes sobre as horas que passei conhecendo pintores alemães como Max Liebermann, Gustav Spangenberg, Fritz Von Uhde e Carl Spitzewg. Descreveria a sensação trêmula que se tem diante de uma tela de Caspar David Friedrich, ou a doce melancolia das catedrais góticas pintadas por Karl Friedrich Schinkel.

            Talvez eu dedicasse um parágrafo – o último – ao Neues Museum. A sua coleção egípcia é riquíssima, com sarcófagos antropomórficos, estelas e relevos funerários, e muitas, muitas estátuas. Quer conhecer a Esfinge de Schepenupet II, esposa do deus Amon, representado pela figura de um carneiro? Está lá. Tem curiosidade por ver a cabeça de Nefertiti e constatar que um de seus olhos não faz falta? Pois essa é a chance. Além disso, no acervo há inúmeras representações de Bastet, e agora eu percebo por que adoro os egípcios: eles já sabiam que os gatos são deuses. A saudade de casa começa pelos felinos, e daí eu me fragmento ainda mais, penso em outras ilhas, fora da arte e da geografia… São três da manhã; sorte que esta crônica termina aqui.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)