O dia em que espanei um Cartier-Bresson

Recentemente, fiz um ótimo curso de fotoperformance com a querida Maíra Ortins. Como resultado, realizei uma ação – inspirada nas propostas da Sophie Calle, de simbiose com a experiência alheia – em que utilizava roupas e materiais do serviço de limpeza do Museu da Fotografia. Dentro desta função, pude interagir de um novo jeito com as obras expostas, refletindo sobre questões importantes a respeito da receptividade de uma peça artística. O que conta mais no processo de fruição, afinal: o convívio – que pode levar o estético ao prazer familiar – ou a contemplação respaldada por informações e critérios crítico-exegéticos? Obviamente não se trata de uma escolha, necessariamente, e o ideal seria poder acumular todas essas perspectivas.

A experiência também me levantou os velhos temas em torno de discrepâncias econômicas, invisibilidade social, embotamento cultural por força de tantos desgastes na rotina do indivíduo. Mas estes pensamentos ainda merecem seu tempo de fermentação, antes que eu me ponha a fazer um texto-testemunho. Por enquanto, apresento-lhes o registro das performances – com meu agradecimento especial à Aline Herculano (pelos clics), à Fernanda Oliveira (por disponibilizar todo o material necessário à ação no Museu da Fotografia) e ao Coletivo Colher (pelo tratamento de imagens).

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Elliott e Fulvio

Lá vou eu de novo pelo assunto da fotografia – minha segunda paixão… se é que existe hierarquia nos amores. Talvez tudo seja tentativa fútil de classificar racionalmente esse medo desejável diante da armadilha da beleza: o impacto criado pela arte. Mas não nos prolonguemos nesse debate – vamos à fotografia. E, dessa vez, conforme os caminhos de Elliott Erwitt (que eu já conhecia de tempos) e Fulvio Roiter (que descobri em recente viagem a Veneza).

Erwitt talvez seja lembrado por muitos como “o fotógrafo dos cachorros”. O seu livro pela coleção Photo Poche ressalta no prefácio este aspecto, pelo recorrente tema. Além disso, o humorístico no trato com muitas situações e fisionomias caninas vira uma marca registrada do autor, que considera fazer rir como um dos mais altos êxitos que se pode alcançar.

Mas uma carreira tão longa e diversificada apresenta múltiplas propostas. Lembro que em 2013, numa anterior viagem à Itália, eu o havia encontrado em cinco imagens no Il piccolo libro dei baci: ali havia um fotógrafo dedicado aos flagrantes amorosos, bem distante do riso irônico. E havia, nesta publicação, aquele que talvez seja seu registro mais famoso: os apaixonados vistos pelo espelho retrovisor de um carro – a foto da Califórnia em 1955, que só foi divulgada 25 anos depois do clic (e não era uma das preferidas do autor).  Reencontrei esta cena na exposição em Lecce, no Castello Carlo V – e a ampliação me levou a um mergulho, a experiências surpreendentes.

Já a obra de Fulvio Roiter me foi uma inteira descoberta. Vi sua retrospectiva na Casa dei Tre Oci, que inicialmente eu pensava fosse um espaço destinado especialmente às mostras fotográficas, por causa do nome, em dialeto veneziano: três olhos – ou seja, os dois do artista e o terceiro, da câmera (divagava eu). Mas depois, no próprio local, esclareci a história do prédio e soube que a origem do nome vem da arquitetura neogótica, com as três grandes janelas ovais na fachada.

De todo modo, ali, em plena Veneza, eu tinha o privilégio de conhecer um artista que esteve sempre associado à cidade. Morto em 2016, Fulvio renascia através não somente de suas imagens, mas de um documentário exibido numa das salas. No filme, o seu rosto me pareceu de uma simpatia extremamente familiar. Divertido e modesto, ele ressaltava o prazer da criação como algo fundamental. “Eu não quero saber de trabalho, quero me divertir”, afirmava em certo instante – e fazia ressoar as palavras de Elliott Erwitt quando dizia que, se suas fotos podiam ajudar as pessoas a ver o mundo de determinada maneira, talvez fosse a “ver as coisas sérias de maneira não séria”. A celebração do divertimento, a ironia dos flagrantes e a ideia de que “a vida é casualidade, é mistério”: tudo isso se percebe na obra de ambos.

Fulvio Roiter também teve ampla carreira. Publicou uma centena de livros, arremessado pelo grande sucesso da edição suíça Venise à fleur d’eau, de 1954. Cinco anos mais tarde, fez sua primeira viagem ao Brasil – aqui se demorando por vários meses, e retornou durante a década de 1960. No meio de tantas imagens desse viajante contumaz, entre cenários do Líbano, do México ou de Portugal, eu me vi emocionada ao descobrir uma jangada, num instantâneo que bem poderia ser do Chico Albuquerque. Então o Fulvio inclusive olhou para o Ceará e o amou – pensei.

Amou da mesma forma as nuvens. Certa vez escrevi sobre uma personagem que tinha obsessão por fotografá-las – e na exposição de Fulvio achei o seu livro de 1998, Il nuvolario. Tivemos, os dois, essa ânsia de fixar o máximo do efêmero? É de fato através dessas identificações que passamos a apreciar um artista, torná-lo favorito: ele ressoa nossos interesses, torna-se uma espécie de cúmplice, um parceiro na perspectiva de como se vê o mundo.

O aprofundamento numa vida mais simples está no livro Un uomo senza desideri (2005), que traz como objeto o “exemplo radical de isolamento na natureza ancestral” dado por Ernesto Girotto, que viveu por mais de 40 anos numa pequena localidade de San Cipriano, sem qualquer contato com a sociedade moderna e suas necessidades. Esse “homem sem desejos”, um mítico ser pleno, parece indicar uma antiga investigação do fotógrafo, que em L’albero (1987) já elegia as árvores como essas criaturas inteiras, tranquilas e sábias pela própria presença.

Mas persiste pelas brechas de toda arte – para além das insistências temáticas, das séries obsessivas e complementares – algo que falta. A missão de Erwitt e Fulvio, capturar o fantástico no real, sob uma implacável curiosidade (que afinal é o ponto de partida da criação), não esconde um limite. Fulvio Roiter assim admitiu: “Fotografar a Itália não é difícil. É impossível. Condensar-lhe a beleza, os mais significativos aspectos paisagísticos, históricos ou sociais – é um empreendimento louco”.

Estou certa de que cada artista pode dizer o mesmo em relação aos objetos que elegeu para seu compromisso.

Tércia Montenegro