Gombrich

Sobre a necessidade do mistério e o desprezo por uma arte óbvia: “Un signe d’indulgence devant lequel certains seront émus jusqu’aux larmes provoquera chez d’autres un sentiment de dégoût; non pas du fait qu’ils n’auraient pas saisi le sens du message, mais parce qu’ils l’auraient trop bien compris.” (Gombrich, 2003, p.62)

Sophie e as muitas formas de narrar

Descobri Sophie Calle mais ou menos na época em que começava a conhecer a obra de Marina Abramović – e houve inclusive um momento em que confundi as duas: Marina perdendo o seu grande amor, Ulay, na Muralha da China; Sophie soltando no mundo artístico o fim de um relacionamento infame, com “Take care of you”… As produções de ambas se encontravam, pelo veio íntimo – embora Marina me parecesse mais consistente, com um projeto prévio. Sophie deixava as coisas muito ao acaso, e isso, embora não me desagradasse de todo, plantava a dúvida: até que ponto essa arte era válida, estética – as velhíssimas questões.

Aproveitei minha estada na Bélgica para investigar as bibliotecas, que têm vários livros de Calle – num cadastro oscilando entre a seção de fotografia e a de biografias. O resultado dessa pesquisa foi bem nítido: agora para mim, Sophie é uma escritora. Pouco importa o instrumento que ela escolhe para narrar; a grande marca condutora de suas ideias é sempre um fluxo de ação, com personagens, com histórias. Ela pode “disfarçar” seus projetos na forma de um diário de viagem que se mistura com entrevistas sobre a dor (em Douleur exquise – um dos mais belos livros sobre a condição humana que já vi), pode elaborar minicontos autobiográficos (em Des histoires vraies), pode desmascarar a percepção equívoca das pessoas, para contar a história de monumentos e pinturas desaparecidos (em Souvenirs de Berlin-Est, Disparitions e Fantômes).

Em todas essas edições, fica evidente um plano (se não no início – pois a ideia pode nascer de puro improviso – ao menos depois, na elaboração de um livro que é sempre um objeto artístico). Aqui, a editora Actes Sud, responsável pelos títulos que citei antes, e a Éditions Xavier Barral, que realizou Elle s’est appelée successivement Rachel, Monique… tiveram um impacto decisivo na criação da obra. O cuidado com a qualidade do papel, a textura das impressões fotográficas, a escolha das fontes… cada detalhe mostra muitas outras pessoas, preparadores, capistas, todo um ateliê gráfico envolvido de maneira indispensável.

Um livro como este último, por exemplo, poderia resvalar pelo sentimentalismo com facilidade; afinal, foi concebido a partir de diários e fotografias da mãe de Sophie Calle, além dos registros de instalações e performances feitas após a morte dela. Mas o volume em si é um primor, com o título em letras bordadas, as fotos simulando a pátina do tempo. E, óbvio, Sophie sabe construir a narração: vai espargindo a existência de sua mãe em idas e vindas que têm datas ou temas como pretextos. Um simples carimbo, “Ce livre a été volé à Monique Sindler”, que aparece a determinada altura como um acessório, uma marca irônica que se costuma fixar nos pertences para preservá-los, retorna à última página do livro, a do colofão – um local aonde muitos leitores não chegam. Mas quem ali estiver, no fim do trajeto entende a mensagem: este livro foi “roubado” de Monique Sindler, foi o que a mãe de Sophie nunca escreveu.

Da mesma forma, a palavra salva um outro projeto, que sempre me pareceu lindo na ideia, mas nem tanto na execução. Voir la mer surge como uma sequência de vídeos em que Sophie filma pessoas que, em Istambul, nunca viram o mar. Quando encontrei esta obra como parte de uma exposição no Bozar, em Bruxelas, vacilei com o terror do pieguismo. As pessoas olhavam o mar, filmadas de costas para a câmera, e depois eram instruídas a se virar, para que Sophie pudesse fazer um registro dos “olhos que tinham acabado de ver o mar pela primeira vez”. A câmera dissecava o olhar das pessoas, que iam ficando mais constrangidas que emocionadas com o momento. Pois o livro, realizado após os vídeos, não me prometia grande novidade – além da beleza plástica, com a ótima qualidade das imagens e o papel-manteiga azul alternando com as páginas em que havia fotos. Mas então, no final do volume, veio o texto redentor – disfarçado dentro uma lista tão entediante quanto os vídeos. Sophie anota:

“A mulher com o bebê olhou o mar por 3 minutos e 26 segundos.

O homem profundo olhou o mar por 2 minutos e 13 segundos.

A mulher 738 olhou o mar por 1 minuto e 49 segundos.”

E vai assim por mais 8 linhas, durante as quais a gente se pergunta que raio de estilo antropológico é esse, e por que seria interessante um cronômetro a medir a contemplação dessa gente. Mas aí se chega à frase final, a maior de todas, onde Sophie prova que conhece tudo o que uma escritora deve saber:

“As crianças olharam o mar por mais ou menos 1 minuto e 30 segundos e depois correram na direção dele.”

 Com esses meninos apressados e desobedientes, correndo para o mar que conheciam há apenas um minuto e meio, retomamos o prazer de se lançar no que é imenso. E de todas as formas de narrar, a espontaneidade de correr riscos – como tão bem faz Sophie – talvez seja a mais intensa.

 

Tércia Montenegro (crônica publicada também hoje no blog da Companhia das Letras)

Piadas ou anéis

Meu erro de francês: entrando numa loja de bijuterias aqui em Liège, em vez de pedir para ver as bagues (anéis), falei que estava interessada nas blagues (piadas). A vendedora me olhou como se eu fosse louca – mas depois eu pensei: não foi erro, não; sempre preferi as piadas aos anéis…

O mundo segundo Dario Fo

Extratos do livro Le monde selon Fo – conversations avec Giuseppina Manin: porque é indispensável refletir sobre estas duas coisas:

  • o magistério como construção, jamais como imposição
  • a necessidade de uma arte múltipla

“Le bon comédien et le bon enseignant ont beaucoup en commun. Ni l’un ni l’autre ne doivent rester en chaire, prétendre qu’ils ont raison. Pontifier, c’est bon pour les papes. Il est au contraire beaucoup plus amusant et efficace de remettre en question ses propres thèses. Si un enseignant ou un comédien donnent la sensation d’asséner des vérités absolues, déjà formatées, en face on va bâiller. Pour que les thèses soient assimilées, il faut les vérifier ensemble, quitte à les modifier… Et là, le jeu prend tout son intérêt.” (p.39)

“Si la graine de la folie créatrice prend racine quelque part, je ne crois pas qu’on puisse en limiter la croissance. Comment peut-on être créatif en peinture et pas en littérature, en poésie mais pas en dessin… Les grands maîtres du passé nous apprennent que le talent, quand on en a, ne connaît pas de limites. (…) Aujourd’hui, cette polyvalence a presque disparu, chacun étant de plus en plus spécialisé dans des secteurs de plus en plus étroits. Mais ainsi, on perd de vu l’ensemble, on n’établit plus de rapports, on s’appauvrit.” (pp.169-170)

Fo

Desenho de Dario Fo, que, muito mais do que um prêmio Nobel de literatura, é, para seus familiares e amigos, um artista visual.

Mons, Verlaine e os mitos

Aproveitando um final de semana que tinha tudo para ser monótono, peguei o trem em direção a Mons. Meu grande objetivo era o BAM, museu de belas artes, com a sua exposição sobre Verlaine – afinal, o poeta ficou preso na cidade de 1873 a 1875, após ter atirado em Rimbaud. Consta que a Bélgica sempre foi para ele um refúgio, e na prisão ele encontrou uma paz propícia à escrita e também certo consolo espiritual – mas não por muito tempo, se lembramos que em 1885 Verlaine foi novamente metido em cárcere, dessa vez em Vouziers, por ter tentado estrangular a própria mãe !

Esses dados biográficos – admito – ofuscaram a minha admiração pela figura, e por mais que eu tenha gostado de ver fotos e correspondências antigas, achei um pouco exagerada a vitrine em que puseram, reinando, o revólver com que Rimbaud foi alvejado.

Não há nada que justifique a violência, e todo esse discurso de celebração do « amor insano » ou da « loucura criativa », associando artistas a uma vida desregrada, sempre esteve longe de me convencer. O caso mais célebre é o de van Gogh em delírio nos campos de girassóis : a propaganda de muitas iniciativas culturais é de uma enorme irresponsabilidade, ao vender a imagem do gênio louco. Porque a mensagem parece ser a de uma relação causa-consequência, servindo de estímulo ou justificativa para pessoas que hoje, por causa desses modelos, chegam ao ponto de se orgulhar de uma vida à beira do crime e da doença !

Claro que, para quem quer se dedicar ao lado torto da existência, as motivações existem sempre. Um bloco de pedra pode cair sobre esse assunto, que afinal pouco me interessa. Mas eu me irrito com deformação tendenciosa da imagem dos artistas e o teor de « fofoca » com que ela é vendida para o público em geral. Distanciados da « gente comum », os gênios loucos permanecem em território inatingível, praticamente endeusados na sua atmosfera de singularidade. Por que Verlaine deveria ser um mito, afinal ? E por que Rimbaud ? Foram grandes escritores, talentosos, inteligentes – apesar de (e não devido a) terem sido pessoas pouco recomendáveis. E por que então aquele revólver deveria fazer parte da exposição ? Achei bem triste essa escolha do BAM…

A visita a Mons, entretanto, mostrou que a cidade soube incorporar de um modo bem mais produtivo a presença de Verlaine em seu passado. Em muitos muros e calçadas, os versos do poeta se difundiam, dando um novo ritmo aos passeios.

Muro

 

Foi seguindo um poema que eu cheguei, por exemplo, À Collégiale Sainte Waudru e, depois, ao Beffroi barroco, lindíssimo e imponente !

Beffroi

Estrofes além, eu me deixava seguir pelas ruas de Mons. Entrei na igreja de Sainte Élisabeth, onde um organista subitamente começou a tocar, embora eu fosse o único público ali (e claro que não pude – nem quis – sair enquanto a música acontecia). Apenas a exaustão me levou a pegar o trem das quatro horas, mas antes os muros de Mons me reservavam uma outra mensagem. Não era Verlaine, mas a frase foi valiosa para me fazer pensar em todos esses estratagemas de personalidades e mitos…

Grafite

Liège au Moyen Âge

Eu, que sempre me interessei muitíssimo pela Idade Média, neste mês de dezembro tive a ótima oportunidade de mergulhar outra vez no tema, através de um ciclo de “animações medievais” promovido em Liège. Com a estrutura fornecida por uma empresa especializada em “reviver” os tempos do Moyen Âge, o Museu Grand Curtius abriu exposições gratuitas, assessoradas por guias a se apresentar em trajes típicos, dando explicações detalhadas dos objetos.

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Gravação de uma “cena medieval”, no Grand Curtius

Na primeira tarde do evento, o tema mais interessante foi sobre “a cosmética na era medieval”, e com isso aprendi que, se fosse uma mulher do século XIII, certamente teria morrido envenenada por mercúrio (pois era a forma mais comum de conseguir vermelhidão para os lábios) ou chumbo (do qual derivava um tipo de pó famoso por manter os rostos pálidos, antes que alguém tivesse a boa ideia de substituir a substância por algo mais inocente como… farinha!). A vida não era fácil, mas a ideia de que os medievos eram avessos à higiene mostrou-se equivocada; a sujeira começou a imperar na Europa a partir da Renascença, graças às práticas médicas de então. Na época medieval, portanto, todo mundo era limpinho – o que significava: banho uma vez por semana (um padrão que alguns europeus parecem ainda hoje conservar)!

A higiene e a educação também imperavam à mesa, via de regra. Cada pessoa levava o próprio talher para a refeição e, como ainda não existia louça à farta, em vez de prato usava-se um pão duro, onde os alimentos iam sendo colocados. Num banquete formal, era costume que os convidados se sentassem segundo uma hierarquia de importância, e a quantidade de alimento se fazia proporcional a tal regra. Quase não se bebia água (por causa da poluição dos rios e fontes), e, já que não havia uma técnica desenvolvida para preservar o vinho, a preferência era pelo hidromel e pela cerveja.

Nesta segunda tarde, dedicada à culinária, o aroma dos temperos me fez pensar no quanto o preparo da comida, o convívio com os próprios ingredientes mesmo, foi se modificando ao longo do tempo. E no entanto, ainda é tão simples fazer um retorno a esse passado, em termos gustativos: cravo, gengibre, hortelã, canela, noz moscada… Talvez por isso alguns desses aromas pareçam enfeitiçados – por causa de sua história medieval…

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A terceira tarde foi a mais animada – o trio dos Menestréis de Mandini animou a plateia com músicas e danças. Mas, para além dos festejos e cirandas, fiquei encantadíssima com a possibilidade de ouvir canções de trovadores e goliardos, ao som de uma vieille à rue e de uma cítara. A música medieval tem um apelo irresistivelmente místico, e os versos, em langue d’oc, um sabor que me transporta de imediato aos livros, a velhos poemas, livros de horas, tapeçarias.

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Para fechar a experiência, intercalei todas essas jornadas com a leitura dos Contes du Moyen-Âge, de Michel Zink, com as ótimas ilustrações de Pierre-Olivier Leclercq. Foi uma boa viagem no tempo!

Charleroi: tudo é fotografia

Para finalizar 2015, que viu o seu segundo semestre tão dedicado à fotografia (objeto de minha pesquisa de pós-doc), visitei o Musée da Photographie, em Charleroi. Além dos meus autores idolatrados, encontrei no acervo permanente vários nomes que não conhecia, e extremamente interessantes. Destaco, por exemplo, a obra da finlandesa Susanna Majuri, do tcheco Pavel Banka, da mexicana Erika Harrsch…

Susanna Majuri (Mykines – 2007)

Pavel Banka (da série Infinity)

 

Erika Harrsch

O espaço do museu é um prazer à parte, com seu maravilhoso jardim, sua biblioteca aconchegante e a arquitetura, que conserva a atmosfera da época em que o local foi um convento:

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Os autores nacionais também preenchem uma boa lista: Yvan Weber, Aurélie Fayt, Michel Papeliers, Colin Delfosse, Bruno Arnold & Yves Vranken, Victor Guidalevitch são belgas que me farão sair à procura de mais. E agora há pouco, neste primeiro de janeiro, outra artista se acrescentou: Brigitte Grignet, cuja exposição está na galeria Satellite, do cinema Churchill (onde vi Béliers – um filme islandês lindo!). Dela é a imagem abaixo, que subitamente me levou à Beira-Mar de Fortaleza:

Brigitte Grignet