Birgit Jürgenssen

Na postagem anterior, citei rapidamente esta artista, com um comentário que era mais um lembrete a mim mesma: “a autoderrisão é uma forma de estratégia autobiográfica”. Isso diz muito da obra de Birgit, que circula por diversos materiais com destreza. Seja no desenho, na fotografia, na escultura ou na performance, seu trabalho sempre questiona o corpo, o feminino, os papeis sociais – e Birgit cria com base na paródia, na própria experiência, na vida íntima que, desse modo, universaliza-se.

Há vários outros nomes que vêm associando, ao longo do tempo, a arte com a existência, tentando fazer com que cada gesto cotidiano alcance o patamar estético ou criativo – mas Birgit é um caso à parte, segundo me parece. Ela se traveste, põe máscaras, assume inúmeras posições narrativas, e assim temos uma autobiografia deformada (embora todas o sejam: mas este tipo de obra assume a postura explicitamente). Impossível resumir todos os caminhos que se abrem, dentro desse impulso de esconder e expor em simultâneo. Sugiro ao leitor que visite o site oficial clicando aqui. Por enquanto, fiquem com um aperitivo da produção desta vienense falecida em 2003. A imagem abaixo, inclusive, influenciou profundamente Francesca Woodman na criação da fotografia intitulada “horizontale”.

A foto da foto de Francesca

O Palais Bozart, em Bruxelas, acabou me encantando muito mais do que o Museu de Belas Artes – e isso por causa da exposição “WOMAN – The feminist Avant-Garde from the 1970s”. Ora, quem me conhece sabe que eu costumo rejeitar esse tipo de evento construído em torno de uma noção de feminino, como se mulheres artistas, apenas pelo fato de serem mulheres, construíssem uma arte diferente ou específica. Uma seleção orientada por tal critério sempre me parece, à primeira vista, preconceituosa ou redutora, mais preocupada com a ideologia do que com a qualidade artística (um modo de reduzir a obra a uma etiqueta, afinal). Mas é claro que também não quero rotular as coisas sem antes conhecê-las – e, nesse processo, já fui alegremente surpreendida por mostras ou antologias que ultrapassaram minhas expectativas. WOMAN foi um destes casos, completamente inesquecível! Anotei alguns nomes que merecerão outras postagens e mergulhos (o internauta pode se adiantar): Hannah Wilke, Eleanor Antin (com a sua ideia de que “la vie humaine est comme une vie littéraire”), Lili Dujourie, Ketty la Rocca, Helena Almeida, Birgit Jürgenssen (“a autoderrisão é uma forma de estratégia autobiográfica”), Ana Mendieta, Gina Pane (“Le blanc n’existe pas”), Ewa Partum (“O ato de pensar é um ato artístico”), Renate Bertlmann e Ana Casa Broda (fotografia como biografia). Mas o destaque supremo vai para Francesca Woodman, que eu já admirava muitíssimo e nunca tivera diante de mim. Ver suas fotos é uma experiência de impossível descrição. Assim – mesmo sabendo que eu compraria o catálogo com todas as imagens disponíveis para serem folheadas por horas futuras – tive que fotografar algumas daquelas fotos. Porque a única forma de compreender Francesca, de dialogar com ela, era reprisando o seu gesto criador, repetindo a sua linguagem como quem caminha sobre uma pegada úmida, ajusta o próprio pé à marca que o outro deixou. Abaixo, seguem duas destas imagens – indistinguíveis, na mirada, de qualquer reprodução que se possa encontrar na internet, com a obra de Francesca. Mas eu sei que elas são especiais, porque são fotos das fotos, feitas em 29 de junho deste ano, quando Woodman deixou de ser modelo de si própria e posou para mim, dentro de um museu belga.

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Cartier em casa

Agora que eu tenho esse magnífico catálogo do Cartier-Bresson comigo, em casa, não lamento de nenhum modo ter renunciado a sua exposição de fotos no Pompidou, em março passado: eram 45 minutos de espera na fila, muito tempo para uma turista que, de resto, tinha todo o acervo permanente do museu ali, livre e acessível  de imediato. Na ocasião, refleti sobre o fato de que a fotografia não é uma arte com tanta densidade plástica quanto as pinturas, portanto vê-las ao vivo ou numa boa reprodução não faria grande diferença. Claro que, meses mais tarde, eu mudaria de ideia ao ter diante dos olhos as imagens da fotógrafa Francesca Woodman pela primeira vez – evidente que adquirir o catálogo de sua exposição no Bozar, em Bruxelas, foi importantíssimo: mas nada como ver aquelas revelações, em tamanho tão pequeno, comovente. Quanto ao Cartier, agora não posso comparar experiências sensitivas, mas isso não estraga nem um milésimo do prazer de penetrar no catálogo – que traz, além das imagens, estudos e reflexões.

Eu escolhi intencionalmente o dia de hoje para falar sobre isso, pois foi num dia 22 de agosto que esse artista nasceu (e a exposição do Pompidou marcava os dez anos de seu falecimento). Portanto, ainda na linha dos festejos em torno da fotografia, lembremos Cartier-Bresson – e aprendamos, com as informações deste catálogo organizado por Clément Chéroux, que Henri, assim como muitos outros artistas, não cabia em classificações redutoras. A tal teoria do “instante decisivo”, epifania de muita gente, é um detalhe diante do que se pode encontrar na trajetória desse autor que começou surrealista, levado à fotografia pelo “misticismo solar” de um amigo obcecado a tal ponto pelo astro-rei que a “escrita com a luz” não poderia escapar de seu raio. Depois da influência avassaladora de Eugène Atget, Cartier-Bresson, no melhor estilo voyageur farceur, despontou junto com seu próprio nome: envolveu-se com fotografia política, criou a agência Magnum, mais tarde abandonou a reportagem… reinventou-se sempre, sem se aprisionar num estilo único. E não é isso que os grandes fazem? Eles nos lembram que a coerência é coisa muito diferente da monotonia.

Martine Franck, Paris, 1967

Hoje é dia de Camus

“Mas do amor só conheço a mistura de desejo, ternura e entendimento que me liga a determinado ser.”

“Estou falando daquilo que todos nós, artistas, incertos de sê-lo, mas seguros de não ser outra coisa, esperamos, dia após dia, para, finalmente, consentir em viver.” (O avesso e o direito)

 

Para fazer a festa

“Nós compreendemos há muito tempo que não era mais possível mudar este mundo, nem remodelá-lo, nem impedir sua infeliz trajetória para a frente. Havia uma única resistência possível: não levá-lo a sério. Mas constato que nossas gozações perderam seu poder.” – Este é um trecho do recente A festa da insignificância, do Milan Kundera, e imagino que apenas esta convicção de impotência relativize o tremendo equívoco que se tem visto, em termos de resenhas e críticas, acerca deste livro. Afinal, dá para contar em poucos dedos aqueles que notaram, nessa festa do Kundera, o que ela se propõe a ser: justamente isso: alegria e irreverência, sem que isso contradiga a profunda reflexão, a filosofia subjacente (e mesmo explícita, com referências a Kant e Schopenhauer). Os que não aceitam, ou não enxergam, essa gozação de resistência insistem em rotular o autor como um denunciante da insignificância da sociedade atual – o que ele acaba por ser também, sim, mas nunca, jamais em primeiro plano, como o amargo esbravejador que esses resenhadores desejam pintar. Kundera é outra coisa, essencialmente – e basta lê-lo para saber. Não me esforço por classificações, porque elas são inevitavelmente pobres; apenas lembrem que esse grande celebrante do riso e da descontração como estratégia de vida, e não como alienação, tem a coragem de, no mesmo livro, colocar uma passagem como essa:

“Ela [Eva] não nasceu de um ventre, mas de um capricho, um capricho do Criador. Foi de sua vulva, a vulva de uma mulher sem umbigo, que saiu o primeiro cordão umbilical. Se eu for acreditar na Bíblia, saíram dela ainda outros cordões, um pequeno homem ou uma pequena mulher ligados um ao outro. Os corpos dos homens ficavam sem continuação, completamente inúteis, enquanto do sexo de cada mulher saía outro cordão, tendo na ponta outra mulher ou outro homem, e tudo isso, repetido milhões e milhões de vezes, se transformou numa imensa árvore, uma árvore formada por uma infinidade de corpos, uma árvore cuja ramagem toca o céu. E imagine você que essa árvore gigantesca fica enraizada na vulva de uma única pequena mulher, da primeira mulher, da pobre Eva sem umbigo.

“Eu, quando fiquei grávida, me via como uma parte dessa árvore, suspensa num de seus cordões, e você, ainda não nascido, eu te imaginava pairando no vazio, preso ao cordão saído do meu corpo, e desde esse momento eu sonhei com o assassino que, lá embaixo, degola a mulher sem umbigo, imaginei seu corpo que agoniza, morre, se decompõe, de tal modo que toda essa imensa árvore que brotou dela, ficando de repente sem raízes, sem base, começa a cair, eu vi a infinidade de seus ramos cair como uma chuva gigante e, me entenda bem, não foi com o fim da história humana que eu sonhei, com a abolição do futuro, não, não, o que eu desejei foi o total desaparecimento dos homens com seu futuro e seu passado, com seu começo e seu fim, com toda a duração de sua existência, com toda a sua memória, com Nero e Napoleão, com Buda e Jesus, desejei o aniquilamento total da árvore enraizada no pequeno ventre sem umbigo de uma primeira mulher tola que não sabia o que fazia nem os horrores que iria nos custar o seu miserável coito, que certamente não lhe dera o menor prazer…” (pp.94-95)

 É essa coragem artística que me faz lembrar, pelo tema e pelo gesto crispado (embora com outra conotação de dor), um quadro da Kahlo – é essa coragem que Kundera levanta, igualmente através do riso. Porque apenas com isso se pode ter “a ilusão da individualidade” enquanto as horríveis repetições nos cercam.

 

Um livro de um autor desta estirpe deveria ser anunciado, em jornais, apenas assim: “É um novo Kundera. Leia. Porque é um Kundera.”