Apenas uma sanfona

Jamais desejei tanto que um São João acontecesse! Continuo sendo avessa a festas, sobretudo as de cunho folclórico, mas o meu desejo se atrelava à expectativa de um alívio. Desde o início de maio, certo vizinho passou a treinar a mesmíssima canção – ensaiando-a inúmeras vezes – num acordeom. Nos primeiros dias, admito, achei a iniciativa simpática. Junto com os galos e o triângulo do vendedor de chegadinha, os ruídos da rua se tornavam nostálgicos. O problema foi a insistência.

Talvez um advogado pudesse enquadrar a situação da minha vizinhança num caso de abuso acústico… Horas repetindo um maldito acorde de música junina: um ingrediente capaz de fermentar a raiva no espírito mais pacífico. Dei graças aos céus por não identificar o local exato de onde vinha a tortura (a sanfona parecia onipresente em todos os cômodos, vinha pelos lados, por cima e por baixo simultaneamente), pois este foi o único meio de impedir que eu sabotasse o instrumento. Ainda assim, divaguei com discretas invasões, chegando a sonhar que, de madrugada, conseguia me infiltrar na residência responsável, para rasgar o temível fole.

As artes têm uma maneira desigual de ser feitas. Escritores, fotógrafos, desenhistas e outros artistas silenciosos costumam achar injusto quando uma prática – como a musical – precisa ser tão intrusa. Afinal, posso revisar os meus textos ou refazê-los obsessivamente, e não incomodo ninguém com isso. Quando um acordeom, porém, prolonga-se nos exercícios, todo o perímetro (recheado de pessoas inocentes) participa sem querer.

Tentei um contra-ataque com óperas postas a tocar em forte volume. Também inventei sucos extravagantes apenas para usar o liquidificador várias vezes por dia. Mas as tentativas de adicionar barulhos tiveram, óbvio, o efeito de me estressar em dobro. O jeito foi me acostumar aos protetores auriculares, enfiando plugues de espuma no ouvido como condição prévia para trabalhar ou dormir. Se vivêssemos num mundo justo, eu teria permanecido com as orelhas livres, enquanto o meu vizinho treinava dentro de um bunker, uma cápsula submarina ou um silo qualquer.

Durante todo o aprendizado do sanfoneiro, eu me questionei se “Apenas um saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, foi um conto produzido por vingança. Instrumentos de sopro também podem ser medonhos – e afirmo isso com conhecimento de causa, pois fui uma flautista na infância.

Mas o vizinho teve enfim o seu êxito: durante a noite de São João – que vigiei do meu quarto, alerta como um severo regente na filarmônica –, a música saiu inteira, sem falhas. Agora espero que ele nunca mais encontre pretextos para ensaiar, que passe longe do seu pensamento a ideia de sinos para o Natal. Caso contrário, talvez de fato eu me torne uma autora nômade, escrevendo em hotéis pouco frequentados.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Barroquismos de Raduan

Para fechar este ciclo de textos sobre a obra de Raduan Nassar, abordamos agora com mais detalhes uma característica apontada por alguns críticos como marca estilística do autor: o barroquismo, ou tendência neobarroca. A manifestação deste aspecto se verifica tanto por uma carga temática oposicional, carregada por antíteses, quanto, principalmente, por uma linguagem hipertrofiada, que faz lembrar os paroxismos daquela tendência estética. Tais indícios, como veremos, muitas vezes funcionam como suporte dramático para os conflitos teatralizantes encontrados nessas histórias.

É ponto unânime entre os estudiosos que a estética barroca supõe, antes de tudo, um domínio de opostos. Gilles Deleuze (1991), estudando a obra de Leibniz, comenta que “no Barroco, o claro não pára de mergulhar no escuro”, dando uma noção da atmosfera dualista que se forma a partir destas oposições. Em outro momento, o mesmo autor nos diz: “No Barroco, a alma tem com o corpo uma relação complexa: sempre inseparável do corpo, ela encontra nele uma animalidade que a atordoa, que a trava nas redobras da matéria, mas nele encontra também uma humanidade orgânica ou cerebral”. Este conflito tradicional entre carne e espírito foi exemplarmente vivido por André e Ana, em Lavoura Arcaica.

Em Um Copo de Cólera, como pudemos observar, também abundam referências à ambiguidade. O divino e o profano igualmente estão presentes. Assim como ocorre com o André de Lavoura Arcaica, o discurso da personagem masculina de Um Copo de Cólera é herético em alguns momentos, fundindo o lado espiritual com o carnal: “(…) mal escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus às minhas obscenidades” (CC, p. 16), atingindo a junção entre “sacro e obsceno” (CC, p. 74).

A tensão dramática que explode em Um Copo de Cólera por meio do discurso representa fielmente o desequilíbrio barroco, o angustiante jogo de opostos que faz o texto oscilar entre o claro e o escuro. Não será por acaso que a personagem deste livro se descontrola ao perceber a brecha feita pelas formigas, na cerca-viva da fazenda. As formigas simbolizam o poder de organização, o comedimento e o equilíbrio que o fazendeiro não tem, pois é constantemente consumido por explosões emocionais: “porque só eu sei o que sinto, puto com essas formigas tão ordeiras, puto com sua exemplar eficiência, puto com essa organização de merda” (CC, p. 32).

A mulher, por extensão, é representada como formiga: “era um inseto, era uma formiga” (CC, p. 78) __ e, como tal, torna-se objeto de ódio do companheiro: “é ali que eu haveria de exasperar sua arrogante racionalidade” (CC, p. 43). Todo o conflito desta obra nasce de oposições: contraste entre masculino e feminino, emoção e razão, corpo e espírito…

Se em Lavoura Arcaica o dualismo vinha basicamente pela diferença entre gerações, em Um Copo de Cólera a lição de Raduan Nassar sobre a dificuldade dos relacionamentos humanos parece se completar. Aqui, os traços neobarrocos são fundamentais para o conflito teatralizante. O homem é capaz de misturar “coisas monásticas e mundanas” (CC, p. 85), comentando que “a prosternação piedosa correspondia à ereção do santo” (CC, p. 76), assim unindo os pólos libidinoso e religioso numa fusão de opostos.

Além disso, não à toa o narrador fala do seu “discurso hemorrágico”, estilizando-se em plasticidade. Vários são os momentos em que comprovamos esta forma exasperada: quando a personagem diz que estava “esticando prazenteirissimamente a goma das palavras, mascando esta ou aquela como se fosse um elástico” (CC, p. 56), ou quando comenta que verteu “bílis no sangue das palavras” (CC, p. 66). A cada trecho percebemos que as palavras assumem uma função crucial no conflito entre os personagens: se não serve para comunicar a verdade (pois que na realidade as palavras surgem como um disfarce para os artifícios do jogo), a linguagem leva-nos, com maior proximidade ainda, ao caráter teatral desta narrativa.

A própria estrutura circular do relato nos leva à elipse, que, como ressalta Affonso Romano de Sant’Anna (2000), é o traço definidor do barroco. Até mesmo o erotismo é cheio de curvas, neste livro: ora a mulher se enrosca no homem feito trepadeira (CC, p. 18), ora a união dos corpos se dá em “movimento dúbio e sinuoso” (CC, p. 22).

Em Lavoura Arcaica, por sua vez, o discurso anti-linear da memória também nos leva ao rebuscamento elíptico do tempo, e os indícios neobarrocos são frequentes. Logo no início do livro, quando Pedro chega à pensão onde André se refugia, as janelas do quarto estão fechadas. Quando André abre as janelas, a entrada de luz simbolicamente antecede as palavras religiosas do irmão mais velho, que tinha os “olhos plenos de luz” (LA, p. 17). Firma-se, assim, já uma oposição de claro-escuro, antítese barroca também expressa no dualismo angústia X serenidade, representado por André e Pedro, respectivamente.

Em muitos outros momentos, André revela um comportamento barroco __ ele está “cheio de sentimentos dúbios” (LA, p. 119): ora se sente possuído de raiva, quando diz, por exemplo, que “uma sanha de tinhoso me tomou de assalto quando dei pela falta dela” (LA, p. 116), ora se volta para a religiosidade, mesmo que diluída no pecado (LA, p. 120). Em determinado instante da sua conversa com Ana, vemos uma referência explícita ao citado estilo: “(…) dispensemos nós também o assentimento dos que não alcançam a geometria barroca do destino” (LA, p. 135).

Assim como é o descontrole do pai que ocasiona o final trágico da narrativa, as extravagâncias de André e Ana também acarretam os conflitos e a tensão que marcam toda a história deste livro. Da mesma forma que em Um Copo de Cólera, observamos o dualismo e a angústia __ traços essenciais no barroco __ contribuindo para gerar o foco dramático em Lavoura Arcaica.

A disposição ambígua do enredo destes livros, que oscilam entre o épico e o dramático, confirma a nossa hipótese do estilo neobarroco como condição intrínseca para o discurso teatralizante de Raduan Nassar. De fato, esta parece ser a preferência do escritor: uma obra enriquecida pelos extremos. Mesmo em sua opção de vida, pode-se perceber o comportamento neobarroco, como ressalta José Castello (1999):

Resta-nos pensar, como leitores estupefatos, que Raduan quer mas não quer __ e isso perturba. Há quem chegue a pensar que sua atitude não passa de um jogo, aliás bastante banal, para chamar a atenção; outros preferem achar que Raduan está só fazendo uma ironia, e que seu jogo de esconde-esconde nada mais é que uma figura de linguagem __ talvez um zeugma, forma em que o enunciado, uma vez excluído, na verdade permanece em cena, agora subentendido, e cada vazio (ou aparente negação) apenas o repete.

Affonso Romano de Sant’Anna (2000) também confirma o caráter ambíguo da figura conhecida como zeugma, uma das formas da elipse: “Na retórica, a elipse é falta, carência e ocultamento. Elipse: dupla inscrição: excesso e falta. Repetição e diferença. Antíteses”. Raduan Nassar, ao se ocultar para o mundo literário, ao mesmo tempo continua a ser expor, através da riqueza de sua obra.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de junho de 2022)

Amor em excesso

Quando a gente pensa que já não acontecem casos incríveis, a realidade nos desmente. Parece inventada, a história que vou contar, a respeito de uma paixão lendária em nossa cidade: um casal tornou-se tão embevecido de amor, que os dois literalmente capturam os bons sentimentos ao redor.

Durante muito tempo eles passaram incólumes, sugando a energia emotiva dos bairros por onde andavam. As pessoas continuaram se relacionando sem perceber a frieza instalada, a falta de vibração, arrepios, saudade – era como se nada disso existisse. Somente aquele casal vivia as ansiedades do amor, e de tal maneira eles se entusiasmavam com beijos, abraços e outras tentativas de fusão física, que consumiam toda a carga afetiva antes espalhada entre vários indivíduos.

Hoje, por ocasião do dia dos namorados, tenho medo de que sejam descobertos. Enquanto diversos pares festejam em pretensos jantares românticos ou comparecem às reservas feitas nos motéis, um homem e uma mulher são os únicos a realmente se amar. Não podem esconder isso: testemunhas verão seus olhos faiscando de desejo, e das mãos unidas vai transbordar um facho vibrante, agarrando aquele sentimento mútuo, porém terrivelmente egoísta. Eles são os únicos a conhecer o luxo abundante de um amor glorioso, bem-humorado e criativo.

Imagino providências a serem tomadas contra o casal que sugou a paixão, retirou o equilíbrio afetivo do mundo, para concentrá-lo numa densidade impossível.

Autoridades religiosas e políticas podem condená-los ao exílio, postos à deriva num barco, em pleno oceano Atlântico – opção extrema, quando todas as tentativas de extravio para outra cidade ou país fracassarem. Em qualquer lugar os dois absorveriam todo o amor disponível; portanto, sua rejeição será internacional.

Em alto-mar, entretanto, continuarão produzindo efeitos. A presença deles fará com que peixes e aves, num raio de dez quilômetros, parem de se reproduzir: os bichos caem numa esterilidade contemplativa, ofuscados por aquele ardor extremo. A crise alimentícia a partir daí se agravará – e é claro que muita gente, nesse ponto, perseguirá o casal, para exterminá-lo. Um amor em excesso se transforma em perigo, inspira inveja, ódios, cautelas.

Por isso eu realmente espero que, neste dia de comemoração dos apaixonados, os dois – os autênticos, verdadeiros – não saiam em público. Enclausurem-se, para não despertar suspeitas. Em qualquer outra data, as pessoas continuarão desatentas: engolidas pela própria rotina, costumam esquecer como ficaram vazias – insensíveis diante de quem se relacionam. Mas hoje, por causa das flores, dos coraçõezinhos decorativos, e ao som de melodias confessionais, o contraste vai ser intolerável. Ninguém suportará este casal.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Lavrar a cólera

Vimos no texto anterior desta série como o fato de o protagonista, na história de Um Copo de Cólera, não aparecer designado por um nome próprio contribui para a identificação que poderíamos fazer com o escritor que se oculta na obra. Entretanto, a ausência do nome também pode ser vista como um desejo de universalismo, simplesmente. O livro trata dos conflitos e disputas vivenciados por um casal, e o homem __ ou a mulher __ em questão poderia, simbolicamente, ser qualquer um de nós.

 Voltemos, porém, ao parentesco entre a personagem masculina colérica e o adolescente André. Não são o mesmo indivíduo: sabemos, em determinada altura (p. 53) de Um Copo de Cólera, que o homem ficou órfão de pai aos treze anos, enquanto que André, aos dezessete, enfrenta os conselhos e a fúria do patriarca de sua família. Embora sejam então personagens diferentes, e não uma única personagem em duas etapas de vida, existem os laços literários a uni-los. Produtos de um mesmo autor, só podem assemelhar-se, como irmãos de arte. Assim é que, em determinado instante, o discurso do homem parece retirado de Lavoura Arcaica:

(…) “sim, eu, o extraviado, sim, eu, o individualista exacerbado, eu, o inimigo do povo, eu, o irracionalista, eu, o devasso, eu, a epilepsia, o delírio e o desatino, eu, o apaixonado (…) eu, o pavio convulso, eu, a centelha da desordem, eu, a matéria inflamada, eu, o calor perpétuo, a chama que solapa (…) eu, o manipulador provecto do tridente, eu, que cozinho uma enorme caldeira de enxofre (…) eu, o quisto, a chaga, o cancro, a úlcera, o tumor, a ferida, o câncer do corpo. (CC, pp. 65-6)

O desejo de declarar-se maldito colabora para a intensidade dramática e para o conflito que o homem estabelece com a parceira. Esta, aliás, também é vista de maneira ambígua, assim como Ana, de Lavoura Arcaica. Mistura de santa e pecadora, a irmã de André contracenava secundariamente no livro, surgindo como a razão do conflito, concentrado no amor incestuoso.

Entretanto, a mulher de Um Copo de Cólera é bem mais ativa e participante da história, ainda que durante a maior parte do livro o narrador seja o homem. A ambiguidade desta nova personagem feminina está não apenas do seu perfil de fragilidade e força. Ela é, por um lado, a figura materna, que vê o homem como um menino e sabe receber “aquele enorme feto” (CC, p.85), mas, ao mesmo tempo, sabe fazer-se ameaçadora: “era um inseto, era uma formiga” (CC, p. 78). Quando o narrador identifica a mulher com a formiga, é como se reconhecesse no sexo feminino a intrínseca capacidade de ataque, o poder de abrir brechas na cercadura do homem.

Entretanto, esta mulher-inseto, em outras vezes, é vista com a singeleza de uma ave, lembrando a cena de Lavoura Arcaica, quando André via a irmã caminhar por uma armadilha de sedução, feito uma pomba a ser aprisionada: “(…) os peitos empinados subindo e descendo, as penas todas do corpo mobilizadas, tanto faria dizer no caso que a ave já tinha o voo pronto, ou que a ave tinha antes as asas arriadas.” (CC, p. 72)

Mas a mulher de Um Copo de Cólera, longe de ser a camponesa incorporada por Ana, faz parte de um universo bem diferente do rural. Jornalista, feminista, democrata, seu discurso se faz ouvir como uma fala autônoma, que constrói o seu perfil de personagem. Porém, em determinados momentos, as ideias que ela defende, as regras que estabelece, soam como uma nova lavoura arcaica, semelhante à que pregava o pai de André:

(…) pensei também na página mais intensa do seu livro de sabedoria (ao lado da pregação contra o egoísmo), ela que ainda era, com a dispersão da prole, a depositária espiritual de um patrimônio escasso, a lição que ela repetia sempre nas raras vezes que me via, um filho só abandona a casa quando toma mulher por esposa e levanta outra casa para nela procriarem, e seus filhos, outros filhos, era esse o movimento espontâneo da natureza, procriar e com trabalho prover o sustento da família. (CC, pp. 79-80)

Não admira que a disputa entre homem e mulher se faça tão intensa e teatral quanto o conflito entre pai e filho: a oposição entre os sexos pode ser muito parecida com a distância que permeia duas gerações. O fazendeiro de Um Copo de Cólera, aliás, não parece ter tido uma infância muito diferente daquela em que o menino André estivera adormecido:

(…) tínhamos então as pernas curtas, mas debaixo desse teto cada passo nosso era seguro, nos parecendo sempre lúcida a mão maciça que nos conduzia, era sem dúvida gratificante a solidez dessa corrente, as mãos dadas, a mesa austera, a roupa asseada, a palavra medida, as unhas aparadas, tudo tão delimitado, tudo acontecendo num círculo de luz, contraposto com rigor __ sem áreas de penumbra __ à zona escura dos pecados, sim-sim, não-não, vindo da parte do demônio toda mancha de imprecisão. (CC, p. 80)

Se a infância parece ser o momento da segurança e do aconchego familiar, se o homem recorda o menino como um ser tranquilo em seus limites de criança, depois da perda da inocência tudo se transtorna. É assim que o narrador constata que a maturidade traz incertezas (da mesma forma que a adolescência de André lhe trouxe contradições): “(…) era pois na infância (na minha), eu não tinha dúvida, que se localizava o mundo das ideias, acabadas, perfeitas, incontestáveis, e que eu agora __ na minha confusão __ mal vislumbrava através da lembrança.” (CC, pp. 80-1)

Um Copo de Cólera, no entanto, tem as suas peculiaridades __ e a questão do jogo é uma delas. O jogo cênico, o jogo verbal, o jogo sexual: tudo se relaciona numa rede de aparências e esconderijos, onde mais vale dar a entender do que se confessar. Dessa maneira, na briga entre os amantes, o narrador deixa claras suas estratégias de fingimento, como quando diz: “(…) fiz aliás que partia pro bate-boca, fiz que ia na dela (…), mas fui montado nos meus cálculos” (CC, p. 50).

O disfarce que cada um assume, as artimanhas de ataque e defesa, entram no livro como uma verdadeira estratégia cênica. Podemos lembrar as palavras de Mikhail Bakhtin (1999: 265), ao dizer, a respeito do discurso de Rabelais, que “o exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso são, segundo opinião geral, os sinais característicos mais marcantes do estilo grotesco”. Vejamos se tal estilo também não pode ser apropriado à descrição seguinte:

(…) você me faz pensar no homem que se veste de mulher no carnaval: o sujeito usa enormes conchas de borracha à guisa de seios, desenha duas rodelas de carmim nas faces, riscos pesados de carvão no lugar das pestanas, avoluma ainda com almofadas as bochechas das nádegas, e sai depois por aí com requebros de cadeira (…); com traços tão fortes, o cara consegue ser __ embora se traia nos pêlos das pernas e nos pêlos do peito __ mais mulher que mulher de verdade. (CC, p. 50)

A sátira com que o narrador se refere à companheira é uma caricatura que nos leva novamente ao neobarroco, se atentarmos para a explicação bakhtiniana: existe uma “ambivalência profunda e essencial do grotesco”. Onde normalmente se percebe apenas uma exageração realizada com finalidades estritamente satíricas, há espaço para o humor, o riso e a festa. A ambiguidade satírica da carnavalização é, portanto, um sinal da dubiedade barroca. O termo grotesco, aliás, é usado no teatro como referência ao drama romântico, que com frequência transitava da tragédia para a comédia, completando assim um circuito de opostos que outra vez nos leva aos extremos barrocos.

Travestir-se de palavras, criar seu próprio carnaval, faz parte das ardilezas do combate narrativo. A linguagem tem importância decisiva na encenação da cólera, na obra de Raduan Nassar. O próprio texto acentua esta característica: “(…) eu disse trocando de repente de retórica (…), argamassando o discurso com outra liga, me reservando uma hóstia casta e um soberbo cálice de vinho enquanto entrava firme e coeso (além de magistral, como ator) na liturgia duma missa negra.” (CC, p. 52-3)

Tércia Montenegro (texto para a coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de maio de 2022)