O autêntico pecado

Vimos como a obra de Raduan Nassar prova que os artifícios da fama nada mais são que isto: artifícios. Um escritor cumpre sua missão artística, e tudo deve estar dito a partir daquele momento. Entrevistas ou autógrafos, marketing cultural e propagandas sobre um novo gênio podem fazer sentido para o público, e estes talvez sejam os mecanismos mais fáceis para conhecer __ e idolatrar __ um artista. Mas para o escritor, não há mais nada a ser feito, depois que a obra foi realizada: não há como salvá-la, se ela não se salva por si mesma. É dar a incumbência como finda, e partir para outro projeto de escrita… ou de vida.

Assim, embora o papel do escritor Raduan Nassar em seu voluntário exílio da fama possa constituir um paradoxo com o caráter teatralizante de sua obra, tema de nosso estudo, veremos que esta contradição somente contribui para uma de suas características essenciais: certo barroquismo, não apenas na linguagem, como também nas posturas contraditórias que suas personagens assumem. O dualismo será assim uma marca típica, presente em Lavoura Arcaica e Um copo de cólera.  Tal jogo de opostos é o fundamento para o conflito que faz da obra do autor paulista um exemplo ambíguo, que circula entre dois gêneros literários: o épico e o dramático.

Em Lavoura Arcaica, a oposição pai-filho torna-se evidente sobretudo nos discursos que cada personagem assume. Se o pai (assim como Pedro, sua continuação) é dono das regras e da autoridade, fazendo-se doutrinador à semelhança dos profetas bíblicos, André é a insurreição adolescente, a energia oposta que questiona as leis e reinventa o tempo das repetições arcaicas.

Embora, como já comentamos antes, o livro deixe clara uma situação de incomunicabilidade permanente entre os familiares, André elabora seu discurso em forma de monólogo. É através das palavras, fluindo solitárias, sem ouvintes, que André vai clareando o processo de conflito e drama, para nós, leitores. As palavras são a representação que nos chega do confronto interior sofrido pela personagem. E o discurso de André será, claramente, o antidiscurso do pai, o oposto das qualidades apregoadas pelo seu antagonista.

Enquanto o pai elabora, em seus sermões, regras sobre o equilíbrio e a paciência, usando uma linguagem monocórdica, em tom propositadamente pausado e monótono, André exaspera-se numa hipertrofia vocabular, atingindo um barroquismo[1] na linguagem que bem mostra a dimensão de seus sentimentos:

“(…) eu, o epiléptico, o possuído, o tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala convulsa a alma de uma chama, um pano de verônica e o espirro de tanta lama, misturando no caldo deste fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de Ana, retirando da fímbria das palavras ternas o sumo do meu punhal, me exaltando de carne estremecida na volúpia urgente de uma confissão (que tremores, quantos sóis, que estertores!) até que meu corpo lasso num momento tombasse docemente de exaustão.” (LA, p. 112)

A epilepsia contribui para a postura que André assumirá: durante muito tempo, essa doença foi vista como sendo uma possessão demoníaca. Assim, caracterizado como epiléptico, o rapaz tipifica-se mais uma vez como maldito, maligno __ o oposto da figura santa do pai. No trecho citado acima, é interessante observar as imagens que assumem um caráter herético (“um pano de verônica”, a “volúpia urgente de uma confissão”), favorecendo a construção do perfil amaldiçoado de André.

Confrontando-se com a imagem paterna, André assumirá, em sua linguagem, uma espécie de discurso antibíblico. O confronto começa quando a parábola do faminto é reinterpretada. Para André, o verdadeiro final não seria a resignação do faminto (filho) a todas as crueldades do rei (pai). Ele, o filho, seria o faminto, o necessitado, o dependente dos benefícios paternos. Porém o pai, assim como o soberano, infligia suas torturas, na tentativa de testar a paciência da família e adaptá-la às regras. Como quem alimenta um pobre com iguarias imaginárias, assim o pai alimentava os filhos com palavras, tentando iludir a sua fome do corpo, os desejos carnais. Mas André, semelhante ao faminto que finge embriaguez com um vinho ilusório para agredir o ancião, teria aceitado a cercadura em que a família se isolava, desde que tivesse o amor proibido da irmã.

Pois não é o limitado espaço de convivência social em que André se encontra, o auxiliar decisivo para que ele pense no incesto? Desejar Ana é também uma espécie de ironia, é o feitiço que se volta contra o feiticeiro, pois o pai, nos sermões sobre a necessária união da família, não contava com aquela atitude às avessas do esperado.

O desejo incestuoso, além disso, é a motivação essencial para que André saia do “sono”, da conformidade em que esteve adormecido durante toda a infância e parte da adolescência __ é o trampolim para as reações enérgicas do protagonista, que levarão ao conflito dramático. A paixão por Ana se intensifica no episódio passado na casa velha da fazenda, quando André nos fala de sua insônia: é, de fato, um despertar que ele sofre, um renascer, como ele diz: “(…) descansando em palha o meu feto renascido” (LA, p. 94). O período anterior, de inércia e conformismo, assemelhava-se a um sono.

Bem ali, na casa antiga, com fama de mal-assombrada, os irmãos consumarão seu amor. Vale a pena lembrar que o tema do incesto tem sido bem explorado na literatura: são exemplos clássicos a tragédia grega Édipo Rei (séc. III a.C), de Sófocles, a relação incestuosa que aparece em Os Maias (1888), de Eça de Queirós, ou o desejo platônico entre os irmãos Candance e Quentin, em O som e a fúria (1927), de Faulkner; etc. Dentre as obras literárias brasileiras, poderíamos lembrar Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, que concentra boa parte da história nas relações proibidas entre Nina e seu provável filho, também chamado André. É deste último livro que extraímos uma citação extremamente válida para Lavoura Arcaica:

“André, não renegue, assuma o seu pecado, envolva-se nele. Não deixe que os outros o transformem num tormento, não deixe que o destruam pela suposição de que é um pusilânime, um homem que não sabe viver por si próprio. Nada existe de mais autêntico na sua pessoa do que o pecado __ sem ele, você seria um morto. Jura, André, jura como assumirá inteiramente a responsabilidade do mal que está praticando.” (CARDOSO, 1997: 322)

No próximo mês, continuaremos com nossas reflexões. Até lá!

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho em março de 2022)


[1] Para Helmut Hatzfeld  (1988), o conceito de Barroquismo refere-se a um período de decadência do Barroco, uma espécie de Maneirismo resgatado: “Se tivéssemos que assinalar as características do Barroquismo, diríamos que são: um traço de sutileza rebuscada, proliferação exagerada de agudezas e adornos, sem nenhuma função estrutural; abuso das descrições pelo prazer de fazê-las; a combinação absurda dos mínimos detalhes com a mais inflada magnificência.” (p.42) Em nosso estudo não tomamos tal conceito em sua carga pejorativa, mas o utilizamos dentro da linha do Barroco enquanto estilo que valoriza “a tensão dramática interna, a crise, a inquietude, o desvelo cerebral diante da trágica batalha da razão com as paixões”. (p.34)

Os agelastos

No livro A cortina, de Milan Kundera, encontrei uma passagem que me fisgou, numa imediata e total concordância. Diz o autor tcheco: “Existem pessoas cuja inteligência admiro, cuja honestidade estimo, mas com as quais me sinto pouco à vontade; censuro minhas opiniões para não ser mal compreendido, para não parecer cínico, para não magoá-las com palavras levianas. Elas não vivem em paz com o cômico.” Tais indivíduos são chamados de agelastos, conforme o neologismo criado por Rabelais, para designar “aqueles que não sabem rir”. Ora, Kundera, nesta curta reflexão, tocou num ponto que me parece fundamental na existência: a necessidade do humor – e o consequente incômodo diante dos que não sabem praticá-lo.

Claro que o riso requer ocasião propícia, e o tema que diverte uma pessoa pode soar desprezível para outra. Mas, longe de especificidades, os agelastos são o tempo todo austeros, compenetrados e sensatos. Na companhia deles, qualquer um se sente bobo ao arriscar uma anedota. Em vez da cumplicidade, tem-se como resposta um olhar de censura, acompanhado de um suspiro. Os agelastos pensam que os bem-humorados são imaturos e perdem tempo com amenidades.

Ao contrário, muita gente exercita a inteligência através do humor, estabelecendo determinadas ligações entre assuntos, percebendo sutilezas invisíveis para os outros… Óbvio, entretanto, que o território do humor não escapa de estranhezas, e nem todo mundo que ri é necessariamente simpático ou extrovertido. Às vezes uma gargalhada pode dar medo: pensem, por exemplo, no Coringa. Mas nem precisamos apelar para a ficção; na vida corriqueira, quem nunca conheceu alguém com um riso sinistro ou talvez diabólico?

Lembro que certo dia eu conversava com um professor de mecatrônica. Ele me falava algo sobre sistemas robóticos, em profunda seriedade. De repente, uma criancinha que passava ao nosso lado caiu do skate e esborrachou-se no chão. O professor explodiu numa risada hedionda, olhando para o menino – que, lógico, saiu chorando. Poucos segundos depois, eu também dava o fora, para não participar daquele senso de humor bizarro.

O riso (com seus motivos) sempre carrega marcas pessoais. Mas os agelastos nunca se expandem em qualquer forma de alegria, e são esses os indivíduos de fato tristes – embora eles prefiram o termo “sérios” ou “circunspectos” para definir-se.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo; integrante também do meu livro de crônicas Os Espantos, que pode ser encontrado aqui: encurtador.com.br/ejnq4 )

Milan Kundera

Micos de pandemia

Agora que especialistas acenam com a possibilidade de que o maldito vírus passe a circular numa escala menor, endêmica, recordo o estranhamento dos primeiros meses de 2020, com tantas adaptações e incertezas. No começo da pandemia, muitos de nós pagamos “micos”, pelo exagero apocalíptico no vestuário ou na forma de higienizar objetos (quem aí também destruiu a conta de luz, transformando as informações num borrão, depois de passar a ferro o boleto?).

Mas o pior problema, creio, foi o uso de máscaras – acessório inédito e especialmente invasivo, que vinha para cobrir metade da nossa fisionomia. Lembro como eu ainda não sabia projetar a voz dentro da barreira do tecido e tentava perguntar sobre um produto ao funcionário do supermercado. “Fósforo!”, eu repetia, ciente de que nem eu mesma conseguia ouvir a sucessão de fonemas abafados. Então tive a ideia de me comunicar com gestos; risquei um palito imaginário no ar, soltei a chama do chão e fiz labaredas subirem com os dedos vibrando, enquanto arregalava os olhos, para enfatizar a mensagem. O rapaz imediatamente entendeu, sorriu e me guiou – mantendo o distanciamento de dois metros – à seção correta. Depois disso experimentei, em casa, mímicas para outros temas – mas todas me pareceram misteriosas ou levemente obscenas, de forma que preferi treinar a projeção vocal.

Hoje posso me considerar uma espécie de sommelière de máscaras: continuo experimentando modelos, avaliando sua eficácia e conforto – além da indispensável característica de possibilitar que se gargalhe dentro. Até me conformei à lenta deformidade que nariz e orelhas sofrem, mas nunca admiti máscaras que comprimem os lábios, impedindo a extensão do riso ou o uso de batom vermelho (mesmo que ninguém veja, eu o mantenho por questão de princípio).

As máscaras, aliás, passaram a funcionar como sinalizador de caráter. Os egoístas a usavam debaixo do queixo ou na testa, instalando o horror nos espaços fechados. Soube de gente que desenvolveu um TOC de ajustar máscaras nos rostos alheios, cobrindo o nariz de desconhecidos em filas de banco ou dentro de ônibus, com tanta rapidez quanto o gesto de um batedor de carteiras.

A preservação da vida nos leva a fazer coisas insólitas, realmente. No auge do lockdown uma amiga saiu às escondidas, com o objetivo de salvar suas únicas companheiras – as plantas – de um fim anunciado. Na Praça das Flores, sem descer do carro e com a face coberta por grossos panos, no melhor estilo gângster ela gritou a senha: “Adubo!” – e em cinco minutos conseguiu a mercadoria, que a situação fez parecer bem criminosa. 

Na mesma época, eu quis investir em pequenas melhorias no meu cárcere e fui a uma loja de ferragens. Já não saía de casa há semanas e mantive-me restrita ao pretexto do passeio, mas ainda assim a felicidade foi tão grande, que suspirei de alegria (e embacei os óculos) dentro da loja. “Eu gosto tanto de parafuso”, pensei. De todas as frases de Clarice Lispector, nunca imaginei um dia usar essa… De qualquer maneira, a literatura sempre retorna, não é?

Tércia Montenegro

Cena do filme “A hora da estrela”