Mente úmida

Luminol (Editora Incompleta, 2022), de Carla Piazzi, é um exemplo de romance-fluxo, um “alargamento” por histórias que se cruzam através de três narradoras, misturando gêneros, temas e assombros. Todo o livro parece assentar na ideia explicitada à página 28: “Quando a gente sabe o que as palavras carregam, elas não nos deixam mais em paz”.

A fertilidade normalmente é encharcada. Pensei nesse princípio biológico diante da vastidão de Luminol, e recordei certo artigo* de Robert Smithson – um dos principais nomes da Land Art – sobre os “projetos de terra” que podem ser aplicáveis a várias matérias artísticas, inclusive a literária. Diz Smithson:

“Palavras e rochas contêm uma linguagem que segue a sintaxe de fendas e rupturas. Olhe para qualquer palavra por bastante tempo e você vai vê-la se abrir em uma série de falhas, em um terreno de partículas, cada uma contendo seu próprio vazio. Essa linguagem desconfortável da fragmentação não oferece nenhuma solução gestalt fácil.” (p.191)

Assim é a experiência de Carla Piazzi: um romance desdobrável em diversas instâncias. À maneira da Land Art, cava-se também, e revolve-se a terra, buscando por suas muitas camadas. Um trecho que bem representa isso é o da página 35, quando a protagonista Maya explica:

“Foi a primeira vez que pensei nas minhas avós como filhas, e então percebi que havia uma cova entre a gente, eu era filha sem mãe. Elas eram filhas de filhas, que eram filhas de filhas… Fui aumentando, aumentando o mundo, até que algo mudou. E tudo passou a ser invadido pelo tempo, um tempo escorregadio, cujo avanço se dissolvia em giros e recuos. Até a materialidade das coisas era e não era a mesma. Elas estavam ali, mas foram perdendo consistência até se aproximarem cada vez mais do pó; primeiro o da madeira, depois o do café, da farinha, do talco, do arroz, até chegar na poeira. E a poeira ganhava água, virava barro, que ganhava ar e endurecia, ganhava sangue e virava gente, que ganhava alma e se mexia. Comecei a matar e a ver nascer as coisas do mundo, as que se mexiam e as que nunca mudavam, e essa vertigem passou a dar o tom da minha infância.”

A mise en abîme dessa busca por uma reconstituição ancestral, perseguindo a sequência das materialidades que ligam os indivíduos, é a chave para compreender a proposta estrutural do livro. Por muito que ele se dobre em outras direções, como um origami de vozes em tempos variados, há um retorno à compulsão escavadora. Quase ao final, já na perspectiva da personagem Quindim, lemos a seguinte passagem:

“De repente, percebo que Maya está colocando o lampião ali dentro, no centro daquela cova. E retoma o tom de leitura, como se no fundo daquele buraco tivesse um livro: ‘Não é um túmulo, necessariamente, apesar de eu acreditar que haveria um baita ganho no brilho e no sentido da vida se fôssemos acostumados a cavar, ou pelo menos iniciar, cada um o seu próprio túmulo. (…) Por enquanto, é um desejo intenso de avivar a terra: tira daqui, põe ali. Uma tá presa, e a outra, solta, como minha mãe e eu. Também pode ser mais um jeito de contar o tempo. Ou um buraco que, em vez de dar a ideia de vazio, de falta, de defeito, pode ter um sentido positivo: uma ode ao lapso, ou ao esquecimento. Pode ser tanta coisa… Pode dar num poço, numa toca, na cova pra uma árvore, num túnel.’” (pp.504-5)

Cavar as profundidades de si é o segredo para encontrar um manancial, um terreno fértil. Nesse percurso subterrâneo, o que se descobre instaura uma específica forma de olhar – como propõe Smithson, em outra parte do artigo que citamos:

            “O clima da visão muda de úmido a seco e de seco a úmido de acordo com as condições climáticas da mente de cada um. As condições que prevalecem na psique de uma pessoa afetam a sua maneira de observar a arte. Já ouvimos falar muito a respeito da arte cool ou hot, mas não muito a respeito da arte ‘úmida’ e ‘seca’. O observador, seja ele um artista ou um crítico,  está sujeito à climatologia de seu cérebro e de seu olho. A mente úmida aprecia ‘piscinas e poços’ de tinta. A própria ‘pintura’ parece ser um tipo de liquefação. Tais olhos úmidos adoram olhar superfícies que fundem, se dissolvem, se encharcam, que às vezes dão a ilusão de tender na direção de algo gasoso ou nebuloso, de uma atomização.” (p.192)

“O artista ou crítico com um cérebro molhado está fadado a acabar apreciando qualquer coisa que indique saturação, um tipo de efeito aquoso, uma infiltração generalizada, descargas que submergem percepções em um lance de observação gotejante. São gratos a uma arte que evoca estados líquidos generalizados, e desdenham da dessecação da fluidez. Valorizam qualquer coisa que tenha um aspecto empapado, seja tela ou aço.” (p.193)

Agora lembro as charnecas de Florbela Espanca, os versos marítimos de Cecília Meireles. O turbilhão dos labirintos de Borges e mais o emplastro generoso das pinturas de van Gogh, o efeito cintilante das telas impressionistas, as ninfeias eternas de Monet. O brilho no bronze da escultura de Boccioni, Brígida Baltar coletando neblina e a lâmina quase líquida no efeito dos bichos da Lygia Clark, além de tantas outras referências, inclusive musicais, que me vêm na forma de fluxo recordativo. Heráclito diria que o rio está também dentro de nós, caudaloso – e talvez a melhor forma de medir o tempo fosse com a chuva pingando das árvores, não com a areia descendo (mas se diz escorrendo: então tudo bem) da ampulheta.

 Carla Piazzi fala que seu romance nasceu do “isolamento das madrugadas”.  Talvez, como sua personagem Maya, ela pudesse declarar igualmente: “O tédio e a clausura me convenceram de que livro era brinquedo sim” (p.25). Mas que brinquedo tão complexo e sofisticado se elaborou com Luminol: cheio de escavações úmidas, brilhantes.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa de maio de 2023, no jornal Rascunho)

* “Uma sedimentação da mente: projetos de terra”, publicado no livro Escritos de artistas – anos 60/70 (org. de Glória Ferreira e Cecília Cotrim. Zahar, 2009)