Ficções de si

Virginia Oldoini, a condessa de Castiglione, foi uma entusiasta da fotografia. No século XIX, quando esta tecnologia ainda era uma novidade, Virginia se fez retratar, deixando quase quinhentas imagens. Frequentando semanalmente o estúdio do fotógrafo Pierre-Louis Pierson, a aristocrata explorou a própria fisionomia em disfarces, poses e atitudes que pareciam nunca esgotar a versatilidade de sua lendária aparência. Afinal, dizia-se que as pessoas “Contemplavam sua beleza como iam ver as aberrações”. Os encantos de Virginia teriam tido até mesmo influência política, conforme algumas versões de alcova sobre a unificação italiana.

Não espanta, portanto, que os registros dessa personagem tenham inspirado um livro da francesa Nathalie Léger, escritora e curadora de artes. A exposição (DBA, 2023, em tradução de Letícia Mei), surge como uma renovada tentativa de responder à célebre indagação freudiana: o que quer (e, no fundo, o que é), uma mulher? “No trajeto um pouco sinuoso da feminilidade, a pedra na qual tropeçamos é outra mulher”, diz a autora. O tropeço que a Castiglione proporciona faz com este livro explore uma série de associações – com outras obras artísticas e com a própria vida familiar de Léger, a autora. “O que eu procuro é a inconsequência de uma lembrança, seu traço um tanto titubeante por meio dos objetos, é um gesto, ou apenas uma intenção que persiste e se desfaz na matéria”, ela assinala à página 53.

Desde o início, a Castiglione me trouxe à mente a personagem retratada por Susan Sontag em O amante do vulcão, outra figura histórica e de beleza memorável: Emma Hamilton. Vivendo numa época pré-fotografia, Emma posou muitíssimo, mas para pintores; dentre eles, Elisabeth Vigée-Le Brun, que a retratou como uma Ariadne. Era comum que modelos transitassem entre papéis míticos, sacros e outras poses mais realistas, e Emma exercia seus talentos interpretativos também numa série de espetáculos conhecidos como “Atitudes”. Vale a pena reler a descrição de Sontag:

“Sobre a cabeça ela atirava um longo xale que chegava até o chão e a cobria por completo. Assim oculta, enrolava-se em outros xales e começava a fazer os ajustes internos e externos (drapeado, tônus muscular, sentimentos) que lhe permitiam emergir como outra pessoa, uma pessoa diferente). Para fazer isto – não era como colocar uma máscara – deve-se ter uma relação muito solta com o próprio corpo. Para fazer isto deve-se ter um dom para a euforia. Ela flutuava, ela pousava, ela se imobilizava – o coração martelando, enquanto enxugava a transpiração do rosto. Uma rápida sequência de expressões faciais, tendões tensos, mãos enrijecidas, a cabeça pendendo para trás ou para o lado, uma inspiração profunda –

E então de repente levantava-se o xale, seja atirando-o fora ou elevando-o um pouco, e fazendo-o parte da vestimenta da harmoniosa estátua viva em que se transformara.”

A mímica de Emma, minuciosamente premeditada, traz o mesmo tipo de cuidado que vemos nos disfarces escolhidos por Virginia, ao se fotografar. As duas estão motivadas pelo “momento de perfeito esquecimento de si”, pela invenção de uma outra mulher possibilitada pelos travestimentos do retrato. Escreve Léger:

“Ela pensou bastante no objeto da sessão, qual cena, qual figurino, qual personagem? e a luz, a direção do perfil, e a história, o relato de si mesma, a lenda a cada vez retomada, reinterpretada, com incisos incontáveis e variantes, a história interior, certos dias murmurada, em outros fiada, fluida, um canto. Montesquiou conta que ela volta para casa para se trocar, apanhar um acessório, vestir uma roupa. Podemos também imaginar que ela se despe numa das pequenas cabines contíguas ao estúdio, ela mandou levarem alguns figurinos para lá, será Judite ou Elvira ou a rainha da Etrúria, é uma normanda da região de Caux (sentada bem ereta numa pequena cadeira de palha, de vestido de lã vermelha, avental azul-escuro, penteado alto em fina guipure, ela tem nas mãos um tricô, uma meia grossa listrada que ela parece terminar, os cotovelos junto do busto, mas, sob as anáguas de tecido pesado, as coxas estão afastadas, pernas solidamente plantadas, pés presos em sapatinhos de verniz com tiras, o novelo rolou no chão, um estranho sorriso bobo paira em seu rosto), é uma marquesa do século XVIII, é uma carmelita severa, ela é a Beatriz de Legouvé, ela é Virginie, a casta afogada, é a devoradora de homens como Donna Elvira, ela se veste de chinesa, de finlandesa, é um funeral, um banquete, um baile.” (pp.27-8)

N’A exposição, a condessa de Castiglione é comparada a uma Cindy Sherman dos primórdios fotográficos. Mas lembremos de preferência Telma Saraiva, artista brasileira que igualmente compôs autorretratos para desenvolver uma ficção de si, inspirada em atrizes e outras figuras célebres – com o mérito de ter tido essa iniciativa trinta anos antes de Sherman. Apesar de toda a dificuldade de importar tintas para colorir retratos, Telma Saraiva, sem sair do Crato, no sul do Ceará, compôs um rico acervo de autotransformação, precursor do trabalho de tantos artistas atuais. O simulacro que subjaz à persona representada em obras de Ana Mendieta, Helga Stein e Daniela Comani, dentre outros nomes, repousa nesse princípio de que o retrato posado não escapa à simulação.

Annateresa Fabris, em estudo sobre identidades virtuais, já assinalava que através da pose “o indivíduo deseja oferecer à objetiva a melhor imagem de si, isto é, uma imagem definida de antemão, a partir de um conjunto de normas, das quais faz parte a percepção do próprio eu social”. Não é garantido que esta “melhor imagem” seja algo estável, nem mesmo belo, conforme os conceitos tradicionais de beleza. A flutuação por várias possibilidades é o que faz interessante a iniciativa da Castiglione, tanto quanto a das outras artistas aqui mencionadas.

Nathalie Léger ao contar, nas brechas de suas reflexões sobre a protagonista, a própria narrativa familiar, também maneja disfarces, hipóteses que se insinuam nos fragmentos associativos. Ela produz assim retratos literários de sua mãe, de sua avó, de seu pai, como se dispusesse em cena mais personagens posados, arranjados com máscaras e acessórios excêntricos. Afinal, A exposição se volta para uma instância do invisível, a fantasmata que o movimento extravasa: “A fotografia permite captar, na dança incessante da mulher sob o olhar do outro, esse estado de pedra que revela a instantaneidade de um segredo. É isso que ela teria desejado expor.” (p.106)

E é isso o que este livro revela – para quem o lê como quem contempla.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de abril de 2024)

Evitar as molduras

            Um exercício de liberdade artística, por mais ousado que seja, costuma esbarrar no limite objetual: há espaços que definem a dimensão da obra, seu tamanho, área de atuação e existência. E, embora extravasamentos aconteçam no sentido receptivo (é imprevisível o quanto uma estética pode reverberar, em sua contemporaneidade ou além), um(a) artista lida sempre com recortes, mais ou menos desagradáveis, porque restritivos. Quanto mais clássica a obra, então, mais ela parece se conformar sem questionamentos à grade imposta para o seu funcionamento: fronteiras se estabelecem com pedestais, nichos, lombadas, palcos… No caso da imagem estática, a moldura surge como um item quase indispensável. Mas não é somente uma estrutura de apoio, um suporte, que ela representa: a moldura vira uma borda para o olhar, e, ao refreá-lo, incomoda.

            Talvez para evitar essa sensação, a maioria das pessoas se habitua a percorrer imagens velozmente. Victor Burgin, teórico e artista nascido nos EUA em 1941, comenta a respeito desse fenômeno, no artigo “Olhando fotografias”, publicado em Thinking Photography (Londres, 1982), livro que ele organiza:

“Olhar uma fotografia além de um certo período de tempo é procurar uma frustração: a imagem que à primeira vista dava prazer tornou-se pouco a pouco um véu por trás do qual agora desejamos ver. Não é um fato arbitrário que as fotografias sejam dispostas de modo que não olhemos para elas por muito tempo; nós as utilizamos de uma tal maneira que podemos jogar com o ir e vir do nosso comando da cena/(visão) [scene/(seen)]. Um guarda de um museu nacional de arte que seguia os visitantes com um cronômetro verificou que eles dedicavam uma média de dez segundos a cada pintura – mais ou menos a mesma média de duração de uma tomada no cinema clássico de Hollywood. Ficar muito tempo com uma única imagem é arriscar perder o comando imaginário do olhar, abandoná-lo a este outro ausente a quem pertence por direito – a câmera. A imagem então não mais recebe o nosso olhar, reafirmando a nossa centralidade fundadora; ela antes, por assim dizer, evita nossa contemplação, confirmando a sua obediência ao outro.” (p.398)

Como os limites – as margens, os extremos – são ditados pelo(a) autor(a) da obra, inconscientemente buscamos escapar de sua armadilha. Olhar em demasia para uma imagem é se tornar enquadrado por ela, engolido por seu mundo, como certa personagem de Lygia Fagundes Telles, capturada numa tapeçaria… Victor Burgin continua:

            “O constrangimento que acompanha a contemplação excessivamente demorada de uma fotografia surge de uma consciência do sistema de representação de perspectiva monocular como uma sistemática ilusão. A lente organiza toda informação de acordo com as leis de projeção que localizam o sujeito como ponto geométrico de origem da cena em uma relação imaginária com o espaço real, mas os fatos intrometem-se para desconstrução a reação inicial: o olho/eu [eye/I] não pode se mover dentro do espaço retratado (que se oferece precisamente para tal movimento), ele só pode mover-se de um lado a outro, até os pontos onde ele encontra a moldura. O inevitável reconhecimento pelo sujeito das regras da moldura pode, todavia, ser adiado por meio de várias estratégias, que incluem dispositivos ‘de composição’ para desviar o olho da margem de enquadramento. A ‘boa composição’ pode, portanto, ser nada mais nada menos que um conjunto de dispositivos para prolongar nosso comando imaginário do ponto de vista, nossa auto-afirmação; um dispositivo para retardar o reconhecimento da autonomia da moldura, e a autoridade do outro que ela significa. A ‘composição’ (e de fato o interminável discurso sobre a composição – criticismo formalista) é, portanto, um meio de prolongar a força imaginária da fotografia, o seu poder real de agradar, e pode ser nisso que ela sobrevive há tanto tempo, dentro de uma variedade de racionalizações, como um critério de valor na arte visual de modo geral.” (pp.398-9)

            Eis aqui uma reflexão importante: algumas técnicas de composição “prendem” mais a atenção justamente porque disfarçam as fronteiras do enquadramento, ou da moldura. Em vez de apontar para as divisas da imagem, os lugares onde ela termina, determinadas estratégias simulam a sua infinitude, numa espécie de ramificação para dentro da cena, do texto visual. Desfoques, escurecimento das bordas, trabalho intenso com contrastes ou profundidades são modos de fazer o olho “trabalhar” no interno da imagem, tentando resolver dúvidas, comparar as áreas visuais – esquecendo, assim, os limites instaurados. A operação é semelhante à do final aberto na literatura: o leitor se encarrega de completar algo e, com isso, sente que o texto continua se processando. O texto resolvido por inteiro esgota a própria mensagem e, com isso, torna-se irrelevante. Tal princípio serve para qualquer linguagem.

Há um valioso livro de Victor Stoichita, L’instauration du tableau (1999), que desenvolve um debate sobre enquadramentos, principalmente na pintura, para quem se interessa pelo assunto. Por enquanto, deixamos somente mais um trampolim reflexivo, a respeito de como, afinal, toda iniciativa de classificar, de fechar as definições dentro de uma categoria (de gênero, estética, materialidade) traz aborrecimentos. Limites são coisas antipáticas não apenas para um criador, que se vê constrangido a operar dentro de protótipos favorecidos pelo mercado ou pela tradição, mas igualmente para o receptor da obra, que recebe “mais do mesmo”. Em última instância, mecanismos rígidos de definição, onde quer que surjam, podem ter valor didático ou institucional – mas são um verdadeiro anticlímax no processo artístico.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho de março de 2023)

Luz da vida

Se todo retrato é um retorno do morto (conforme dizia Roland Barthes em A câmara clara), por outro lado também é uma forma de refletir sobre a vida e suas circunstâncias. O volume Photo Icons, publicado pela Taschen sob organização de Hans-Michael Koetzle, trouxe uma boa oportunidade para isso, ao cobrir uma história da fotografia de 1827 a 1991. Não se dedica aos tempos mais recentes, da chamada pós-fotografia – mas para tanto podemos consultar os livros de Joan Fontcuberta, que já citei nesta coluna, algum tempo atrás.

A publicação de Koetzle a cada capítulo parte de uma foto icônica, por assim dizer, e faz sua análise incorporando curiosidades, dados técnicos e informações sobre o autor. Com esse método aparentemente simples, segue numa progressão cronológica que, ao final, constrói um panorama da própria história humana nesse período (claro, sob uma perspectiva ainda eurocêntrica, podemos criticar).

Recordamos situações extremas que talvez hoje tenham sido pacificadas na memória, e no entanto foram grandes tragédias. O fotógrafo Richard Peter pai, que registrou a destruição de Dresden pelos nazistas, perdeu nos bombardeios seus arquivos, milhares de placas, negativos e provas que representavam trinta anos de trabalho. Ao seu redor, centenas de vítimas mortas ou queimadas – e a maioria não pôde ser retirada dos escombros, porque a devastação da cidade se estendia por quinze quilômetros. A impossibilidade de enterros apropriados favorecia o risco de epidemia, e assim foi preciso calcinar as ruínas com lança-chamas, além de murar abrigos provisórios.

O que Richard Peter pai viu e viveu (vamos tomá-lo como símbolo de tantos) é inclassificável. Saber que tantas pessoas estavam ali, sob os escombros, algumas vivas mas sem chance de resgate e, portanto, condenadas a perecer no fogo antes que seu corpo espalhasse doenças… apenas essa escala de horror deve ter preservado a mente do absoluto desespero. Porque os que perderam tudo mas estavam vivos ainda eram sortudos. E então, o que poderiam fazer? Reconstruir a cidade, refazer a própria identidade. Uma fotografia, junto com o seu contexto, traz uma preciosa lição acerca de recuperar os eixos. É preciso tomar qualquer atitude prática em prol das melhorias, nem que seja um gesto mínimo por dia, e é preciso não desistir da beleza, não deixar que o ódio a substitua.

Através da análise de variantes de fotos – como, por exemplo, na obra de Man Ray –, acompanhamos o processo pelo qual um artista chega à perfeição. Quem vê somente “Noire et blanche” aprecia o equilíbrio dos rostos (o de Kiki de Montparnassse e o de uma máscara africana), em posições, tons e formatos tão complementares, que pode ser levado a pensar que foi fácil compor a cena. Mas o que parece hoje evidente surgiu após um longo processo de testes, uma busca confusa em que o autor sabia, sim, desde o princípio que os dois rostos juntos seriam capazes de gerar uma boa foto – mas não alcançou de imediato a melhor maneira de criar a imagem.

Aliás, a falsa ideia de que a fotografia depende de um espontaneísmo pode ser dissipada com a leitura desse livro. Diversos exemplos de retoques, encenações ou montagens são revelados, em obras bastante conhecidas. Embora seja cabível discutir os limites éticos de tais procedimentos no caso de fotos documentais, em nenhuma outra ocasião as edições de imagens devem ser julgadas negativamente. Criticar um fotógrafo por aperfeiçoar sua obra é tão absurdo quanto censurar um escritor por reescrever um original: o trabalho de revisão integra qualquer arte e, quando o autor sabe o que está fazendo, o resultado tem maior qualidade que a versão “bruta”, inicial.

Descobrimos ainda como uma belíssima fotografia de moda, “Corset Mainbocher”, de Horst P. Horst, pode ensejar uma discussão política, na medida em que a peça de roupa exibida na imagem, em 1939, já era considerada um “vestígio da época feudal” e um acessório agressivo à saúde das mulheres. Entretanto, um espartilho fotografado à beira da Segunda Guerra sem dúvida pode representar algo mais que a repressão em torno de um único corpo…

Com Sandy Skoglund, temos um exemplo da tendência de, a partir dos anos 1980, a fotografia se tornar cada vez mais performativa. Os autores, em vez de encontrar seus temas na realidade, capturando-os sem intervenção ou manipulação, começam a praticar “staged photography”, ou seja, “fotografia posta em cena”. Skoglund constrói esculturas de papel machê, gesso ou poliéster, para ambientar suas instalações fotográficas.

“Revenge of the Goldfish” e “Radioactive Cats” são duas de suas famosas obras com essa proposta. O aspecto manual de uma construção prévia de artefatos para serem fotografados lembra Vik Muniz, na medida em que este artista brasileiro (não citado no livro trabalhado aqui) adota, para compor suas figuras, matérias as mais diversas, como comida, lixo ou diamantes. O lado trabalhoso e demorado do processo artístico – que tão bem se percebe num vídeo sobre o processo criador de Teun Hocks, por exemplo – talvez esteja em decadência, nos artistas da geração Y ou Z. Com a facilidade dos programas de edição que produzem imagens já absolutamente desprendidas do real, através de montagens quase automáticas, vindas de um acervo do próprio software, o passo seguinte é a desmaterialização da própria obra. Isso se realiza em negociações de produtos não-fungíveis, os tais NFTs, feitos para consumo digital, sem dimensão empírica, por assim dizer. A luz se torna, em tais imagens, o único elemento sensitivo pelo qual podemos desfrutá-las.

A fotografia se afasta cada vez mais do mundo e dos aprisionamentos referenciais, para se tornar um recurso de inventividade. Na impossibilidade de citações exaustivas, trazemos somente mais um autor – Joel-Peter Witkin –, que inclusive dialoga com vários outros. Koetzle comenta que “é principalmente como uma revolta contra a tradição da iconoclastia judia e contra o tabu que representam o corpo e o erotismo na religião cristã que se deve ler sua obra”.

Conhecido como o Bosch da fotografia, Witkin coloca em cena personagens desviantes: anões, gigantes, siameses, transexuais antes da cirurgia, além de “todos aqueles que nasceram sem braços, sem pernas, olhos, seios, órgãos genitais, orelhas, nariz, lábios”. O interesse por corpos excepcionais lembra a estética de Diane Arbus, embora o estilo de retrato seja bem diferente (Arbus preferia as poses frontais, com poucos ornamentos, ao passo que Witkin monta cenários elaborados, com releituras do repertório iconográfico). A proximidade com outro fotógrafo do grotesco, Jan Saudek, é notável – mas, para além destes nomes mais modernos, o seu trabalho referencia clássicos como Giotto, Vélasquez, Goya, Rembrandt, Archimbold e Delacroix.

Ao tematizar corpos alternativos, Witkin, por um lado, é acusado de oportunismo escandaloso – mas, por outro, é defendido por seus próprios modelos, que afirmam ter posado para ele numa atmosfera de respeito e dignidade. Para estas pessoas, habitualmente postas num lugar à margem, invisível do comum social, serem fotografadas em sua identidade “ganha uma força metafísica”. Como o próprio autor ressalta, episódios de sua infância fizeram com que ele se interessasse pela gente excluída, e isso, de acordo com Hal Fisher, estimulou em sua obra algumas ideias filosóficas extremamente complexas, “uma miscelânea de pensamentos oriundos da cabala judaica, da fé católica, da filosofia oriental e da cultura underground moderna”. Esse amálgama o inspirou a buscar a “expressão divina” em retratos, à primeira vista, repulsivos. E quem dirá que aí não se revela uma verdadeira luz da vida?

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, no jornal Rascunho, em janeiro de 2023)

Toda pessoa é um lugar

A ideia não é nova, mas rende uma boa reflexão. Entretanto, em vez da costumeira máxima que se repete (“Cada qual é um universo”), prefiro começar por algo menos abstrato ou grandioso. A noção de espaço definido me interessa – até porque vejo tanta gente solitária, que de fato o planeta me parece composto por milhões de ilhas pessoais boiando a esmo na rotina. Poucas se tocam, interpenetram, expandem ou contraem seus limites na relação com as outras; a maioria navega em desatino, penínsulas extraviadas como a jangada de José Saramago.

Mas a perspectiva de lugar – ela, também, uma âncora – tem dois lados: físico e espiritual. No primeiro, da geografia íntima ou exposta, pode-se dizer que as ilhas se visitam, excursionam, prazerosas (ou nem tanto), em busca das profundas origens do mundo ou dos picos altos, volumosos. Amantes se tornam exploradores atléticos, liliputianos na pesquisa pelas minúcias, pelas singularidades corporais. Lembro a perfeita situação, presente no filme La Délicatesse, quando o personagem de François Damiens a certa altura declara seu amor a Audrey Tautou, dizendo que queria passar férias no cabelo dela…

Em contrapartida, as tais pessoas tóxicas – conforme um termo bem difundido – existem. Elas são fronteiras espinhosas, representam campos minados, poluídos, zonas de guerra. Uma conversa com elas pode equivaler a tomar banho com substâncias ácidas: sua má vibração corrói, contamina de um jeito (quase) irreversível. Evidente, aquele espaço tão negativo para alguns pode soar neutro para outros, seja porque não se enxergam os miasmas, ou porque eles já vão se integrando ao mesmo tipo de energia maligna ou, ainda, porque certos indivíduos conseguem se proteger com escudos psíquicos misteriosos.

De qualquer forma, todo local – por mais repousante, estável e sadio – terá seu beco proibido. Covas sinistras, porões, túneis subterrâneos que levamos trancados por dentro até que alguém ou um fato específico quebre o cadeado, abra a porta rangente – e aí o pesadelo escapa. Os inesperados monstros do inconsciente transformam a região num pântano, zumbilândia particular que, lógico, tem imenso grau de toxidez. Salvemo-nos à primeira ameaça!

Finalmente, devemos notar que o próprio conceito de “pessoa”, segundo o animismo, também se estende a bichos, árvores, pedras, lagos, montanhas etc. Se todas as entidades têm uma alma, têm igualmente um corpo, em sua manifestação terrena – portanto, a conclusão é óbvia: cada corpo é um lugar. Resta saber agora, eis o ponto, como um território merece ser tratado.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Tércia Montenegro em foto do Coletivo Colher

Desaprender

Em 2019, quando ainda era possível viajar sem máscaras nem medos, eu estive no Uruguai, interessada especialmente em conhecer o Centro de Fotografía de Montevideo. Visitei duas ótimas exposições no local e aproveitei também para adquirir alguns livrinhos na loja especializada. Pois agora chegou o momento de me dedicar a estes exemplares: cada volume da coleção de fotografia contemporânea uruguaia é dedicado a um(a) artista, trazendo um portfólio de sua obra e também uma entrevista. Detenho-me no livro sobre Magela Ferrero, essa autora cujas imagens me deram sensação equivalente à que tenho com as literaturas de Miranda July e Natércia Pontes.

Estamos num universo de pequenas estranhezas. Objetos cotidianos levemente deformados, perturbações mínimas que poderiam passar despercebidas, se o olhar não se detivesse ali. E é bem esse olhar que instaura o fenômeno: a arte (onde muitos poderiam achar que não há tema “suficiente” ou “digno”). O sutil se revela um terreno aberto sobre um precipício; tudo parece frágil, prestes a desabar.

Na entrevista, as palavras de Magela Ferrero confirmam o efeito que sua obra produz. Comenta que o fundamental, para ela, sempre foi uma questão de sentir: “Assim comecei a fazer as coisas, antes de ter outro motivo para fazê-las além do desejo de fazê-las”. Esse impulso de agir em busca de um prazer autêntico (“Eu disse a mim mesma: Vou fazer isso sempre, e sempre serei feliz”) continuou sendo o seu elemento mais importante. Ainda que o amadurecimento técnico tenha lhe aberto alguns caminhos, Ferrero considera como ele pode ser opressivo: “(…) é preciso ter cuidado com a formação, porque te ajuda em algumas coisas, mas te inibe em outras. E te inibe de tal maneira que depois não podes recuperar”.

Um ser criativo é, por excelência, alguém cheio de potencialidades, livre das amarras de modelos, modismos, tendências de mercado… Nesse sentido, Ferrero confessa: “Sabes que há dias em que gostaria de não saber nada outra vez e aprender tudo de volta? Gostaria de trabalhar em desaprender, porque penso que esse momento de adquirir o conhecimento, o estado de deslumbramento, a humildade associada a descobrir algo que não sabíamos, são transcendências que temos que tentar manter vivas.”

Desaprender significa abandonar as certezas, dicas e fórmulas de sucesso que andam aos montes por aí. “Às vezes a preguiça me ameaça, e a ilusão de saber de tudo ameaça o encanto. É preciso cuidar do encanto, recuperar essa fé no que não se sabe”, diz a fotógrafa. Eu concordo, e repito: buscar o prazer, fazer arte, experimentar o desconhecido – eis uma maneira de se renovar, de ser feliz mesmo sob as adversidades.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Fotografia de Magela Ferrero