Uma questão de ética

A leitura (ainda no prelo) de A ética no jornalismo brasileiro, livro organizado por Guilherme Carvalho, trouxe-me reflexões bem produtivas, especialmente porque na mesma época tive também sobre a cabeceira A transfiguração do lugar-comum, do filósofo Arthur C. Danto. As duas obras convergiram numa questão que pude desenvolver em palestra com estudantes do grupo Novos Talentos, do jornal O Povo.

Em artigo no primeiro livro mencionado, Plínio Bortolotti comenta:

“O único imperativo categórico da profissão seria dizer e divulgar a verdade em qualquer circunstância, mas mesmo isso pode ser posto em xeque em algumas ocasiões. Não é incomum, por exemplo, o profissional omitir a sua condição de jornalista para obter alguma informação – e também, em algumas ocasiões, deixar de publicar alguma informação para evitar o mal maior. Se o jornalista sabe, por exemplo, de uma operação policial para prender uma quadrilha de assassinos da pior espécie, deve divulgar o fato, mesmo sob o risco de fuga dos criminosos?

“No entanto, quando se utiliza o método utilitarista, quem autoriza o jornalista a definir qual seria o ‘mal menor’ ao tomar uma decisão com base nesse raciocínio? Como medir se o maior número de pessoas beneficiadas não provocou mal irreparável na minoria? Como ter certeza de que o ato vai provocar os efeitos previstos?”

O efeito do texto jornalístico – com suas consequências diretas sobre a realidade – traz implicações desconhecidas pela arte. O grau de compromisso do artista para com o seu público é de outra ordem, é outro o seu pacto, outra a natureza do real que aparece em suas obras. A própria noção de representação artística, no seu duplo sentido (re-apresentação e substituição de um elemento por outro) demonstra um deslocamento que o jornalismo não admite. O compromisso do jornalista é com o fato; o do artista, com a fábula.

Lógico que a imprensa não está isenta de circunstâncias (políticas e econômicas) que podem levar um profissional a deformar o seu relato. Diz Mauri König, no livro citado:

“Não escapa a um espectador mais atento que no processo de produção de notícias há esforços explícitos de manipulação, que algumas vezes os jornalistas reconhecem e denunciam, mas nem sempre são capazes de escapar do ardil. Há uma manipulação ativa, tendo a notícia como espetáculo, a fabricação de matérias, reportagens exageradas ou sensacionalistas.”

Alterações textuais feitas para adensar o interesse sobre um tema – assim como estratégias de “disfarce” de que um jornalista pode se valer para obter uma informação ou se infiltrar num determinado espaço… tudo isso não cria qualquer conflito para o ficcionista, por exemplo. Ao contrário, ele está autorizado a mudar nomes, cenas, situações – e, caso necessite de uma observação real para embasar seu texto, não precisa se apresentar como escritor; não há qualquer princípio a obedecer, nesse sentido. O único aspecto essencial a respeitar, óbvio, é o da primazia da vida. Assim, presenciar algo terrível sem interferir de alguma maneira (sob o pretexto de mais tarde fazer uma publicação sobre aquilo), mergulha num crime ético qualquer pessoa. Como ressalta Arthur Danto:

“Tom Stoppard disse certa vez que se você vê uma injustiça acontecendo do lado de fora de sua janela, a coisa mais inútil que poderia fazer seria escrever uma peça de teatro a respeito.”

Há, portanto, um limite ético – o do respeito à existência – insuperável em qualquer caso. Esse ponto torna revoltantes as obras artísticas que ferem o indivíduo de alguma forma. Propostas que envolvem a presença de animais e plantas em museus, em situação de risco ou desconforto, geram protestos justos – sobretudo porque a distância psicológica instaurada pelo espaço de exibição é incorreta do ponto de vista moral, assinala Danto. E o filósofo continua:

“Isso significa admitir que há algo na noção de distanciamento psicológico que, mesmo não podendo nos ajudar a delinear a distinção que buscamos [entre arte e coisas do mundo], nos sugere que uma obra de arte é um objeto diante do qual só uma atitude estética é apropriada, nunca uma atitude prática.”

A ideia dessa recusa – de uma reação prática viabilizada pela arte – obviamente não exclui a sua possível função didática, educativa, expiatória etc. O que Danto assinala é que a atitude de contemplação exigida pela obra afasta o tipo de engajamento que sentimos diante das coisas no mundo real. Exemplificando:

“O perímetro convencional do teatro desempenha uma função análoga à das aspas, que servem para isolar o que estiver entre elas do discurso coloquial normal, neutralizando seu conteúdo em relação às atitudes que seriam apropriadas à mesma frase se ele fosse afirmado em vez de meramente citado”. Nesse sentido, os personagens são citações de pessoas, representações delas, não pessoas reais. O mesmo distanciamento contemplativo acontece em outras linguagens: “(…) as molduras dos quadros ou as vitrines de uma exposição são suficientes, como os palcos, para informar às pessoas familiarizadas com as convenções implicadas que elas não devem reagir ao que está delimitado como se fosse a realidade.”

Dessa maneira, o jornalismo, por seu próprio lugar instaurado em meio às estratégias do texto escrito, cria um rol de expectativas que endossam o seu princípio ético – e elas não são as mesmas que poderíamos aplicar à literatura ou qualquer outra arte.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é narrativa, do jornal Rascunho)