World Press Photo 13

Dentre tantas imagens agressivas pela denúncia explícita nesta exposição (que segue na Caixa Cultural), a fotografia da artista polonesa Anna Bedynska encanta pela delicadeza – que, se não afasta o trágico, ao menos consegue incorporá-lo à existência, sem a sensação esmagadora e sufocante que se tem com outras obras vistas. O retrato “Zusia”, feito em estúdio, com trabalho de luz específico para criar uma imagem high light, é perfeito como solução estética: mimetiza a brancura dolorosa da garota albina, que então aparece mergulhada em tons de branco – na pele, na roupa, no cabelo e no fundo inteiramente homogêneo. A dinâmica da cena surge pela mecha de cabelo que esvoaça sobre o rosto da garota, tapando-lhe os olhos deficientes. Sabe-se que o albinismo frequentemente traz problemas de visão para seus portadores, devido à deficiência de melanina. Este é o caso da modelo Zusia – mas, em vez de expor sua doença, a fotógrafa escolhe sufocá-la na clareza de uma imagem que resplandece.

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Viajantes farsantes

        Adoro conversar com amigos que, tal como eu, percebem que a vida é uma farsa. No duplo sentido do termo, por ilusão e brincadeira, ao estilo das farsas teatrais ou dos enganos rotineiros, a existência nos prepara surpresas ou deslizes – não mais do que às outras pessoas, talvez, mas o fato de atentarmos para esse enredo mirabolante intensifica o nosso envolvimento e o proveito que daí tiramos.

      Temos observado que as viagens são ocasiões extremas, quando narrativas aventureiras ou excêntricas se desenrolam, a nos transformar em personagens de episódios insólitos. Por uma mistura de caos, conspiração astral ou física quântica, o simples fato de sair da cidade durante uma semana nos transforma irremediavelmente. A sensação de ser conduzido para novos ambientes, com pessoas desconhecidas, outros costumes e paisagens, potencializa as reflexões sobre a vida: afinal, por que não nasci naquela cidade ou país? E como teria sido, se eu pertencesse a uma família amish? E se eu decidisse abandonar as artes para me dedicar à preservação dos répteis da Nova Zelândia? Tudo é relativo; visto sob outra ótica, a regra espanta ou diverte: é uma convenção – ou uma farsa, conforme preferimos.

        A própria vida costuma ser pensada como trajetória, percurso ou viagem – e há estudos interessantíssimos sobre a simbologia que orienta o entendimento humano e as formas linguageiras que daí surgem (vejam, por exemplo, a teoria da metáfora conceptual, com Lakoff e Johnson). Por tudo isso, eu e meus amigos passamos a nos denominar viajantes farsantes: melhor dizendo, voyageurs farseurs, em francês. A preferência por este idioma é descarada, visto que somos profundamente influenciados não somente pelos existencialistas (e pelo conceito de absurdité de modo específico), mas também pelo Collège de Pataphysique, a partir de sua primeira proposição: o verdadeiro patafísico não leva nada a sério, salvo a Patafísica… que consiste em não levar nada a sério. O tom farsante e burlesco aqui não poderia ser mais promissor.

         Embora nosso grupo não precise ser presencialmente constituído – já que dispensamos local de reunião e qualquer ritual que roube a leveza – , identificamos novos membros sempre que alguém manifesta determinado humor. Então, alegremente ouvimos os relatos desse colega, trocamos ideias engraçadas e reconhecemo-nos amigos, embora às vezes o destino faça com que nunca mais a gente se encontre. Foi assim que, num recente passeio à Chapada Diamantina, conhecemos um espeleologista croata, um guia especialista em abelhas africanizadas e vários membros da Liga Canina de Esportes Náuticos. Todos, pessoas ou bichos, tinham o verdadeiro espírito farsante, disposto a celebrar os acasos. Algumas dessas aventuras eu conto na próxima quinzena, para quem quiser esperar.

 Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

 

 

 

 

Sob a sombra

      Estive lá para ver os rastros – o crime contra a natureza, que nada justifica. A terra ficou rasgada, fiapos de raízes como vísceras. O que antes era vida virou lixo. Era manhã de sábado, e no parque do Cocó as trilhas se habitavam por ciclistas, botânicos e maratonistas. Casais apaixonados olhavam as garças (bichos que parecem nascidos de perfil e sustentados por palitos), e algum poeta contemplava saguis, com um binóculo. Ouvi de passagem a história da Cinderela, que um pai contou à filha de três anos – ambos sentados diante do rio, tão pacíficos quanto Monet no seu jardim de Giverny.

     Encontrei libélulas, peixes e gatos; palmilhei um chão poroso onde nascem samambaias. Uma abelha me seduziu com seu voo suspenso, hipnótico – e tudo isso aconteceu antes que eu chegasse perto da avenida. Ali se armava o acampamento, a resistência diante da ganância, o humano contra o maquinário. No instante em que me aproximei, alguém baixou o vidro do carro para gritar “Vão trabalhar, seus vagabundos!” – mas logo subiu o fumê de novo, apressado. Os acampados continuaram tranquilos, conversando em voz baixa. Eram homens e mulheres dos mais diversos feitios, e todos trabalhavam. Sim – era preciso dizer àquele senhor dentro do veículo metálico –, o que eu vi no sábado passado foram trabalhadores essenciais, pessoas que labutam no ofício de pensar e habitar uma cidade. Gente que frequenta as ruas a pé e assim deseja continuar, desde que haja veredas, parques e espaços preservados.

      No conto da Cinderela, a protagonista lidava com cinzas e pó, explorada pela madrasta malvada e suas filhas egoístas – e ali os manifestantes também estavam circulando pelo borralho, por entre os detritos de galhos, folhas, vestígios do ocorrido. Vieram escavadeiras e tratores (eu li) e guardas com cassetetes (me contaram), homens com serras (vi as fotos) e mais caminhões carregando as tábuas. A menininha arregalou os olhos quando seu pai lhe contou sobre o vestido e o baile, o encanto da princesa – mas para o Cocó não haverá passes de mágica. O autoritarismo reinará, cruel, a menos que a justiça impeça definitivamente agressões como a fúria desse 8 de agosto.

       Enquanto isso não acontece, os trabalhadores persistem acampando. Eles validam com sua presença uma espécie de voz das árvores: insistem na importância de – contra a luz cega dos ambiciosos – preservar as nossas sombras.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

Cecília e as velhas baianas

Agradeço à amiga Núbia por me apresentar a linda obra plástica da Cecília Meireles, reunida no livro Batuque, samba e macumba – estudos de gesto e ritmo (1926-1934). Se esta autora já era uma de minhas poetisas preferidas, agora ganhou em dimensão estética, pelas incursões no desenho. É impressionante a dinamicidade que Cecília imprime a suas figuras, seja usando aquarela, nanquim e grafite, seja valendo-se de carvão e pastel. Reproduzo abaixo algumas das imagens que mais me encantaram; a qualidade ficou comprometida pelo scanner, lógico – mas espero que sirva para embevecer um pouco. Para mim, estes desenhos chegam em hora propícia, às vésperas do meu passeio para a Bahia…

Baiana. Cecília Meireles"Brocó Frô du Má". Cecília MeirelesAquarela sobre papel. Cecília Meireles"Baiana sambando". Aquarela, grafite e nanquim.

O calor do Cáucaso

         Nestes primeiros dias de agosto, o Theatro José de Alencar teve mais uma estreia histórica. O duelo, da Mundana Companhia, pressagiava – aos que já conheciam o seu O idiota, encenado aqui há três anos a partir do romance de Dostoiévski – um espetáculo a transcender o mundo russo. A novela de Tchekhov inspirou novas intervenções físicas no Theatro: prolongou-se o palco principal com um tablado, e algumas frisas foram aproveitadas pelos atores. Restringiu-se, necessariamente, o tamanho do público – e, se O idiota teve pretensões mais amplas, de tempo e utilização de espaço (muitas horas de peça, com atuação no território da plateia, no pátio, no foyer e nos jardins do Theatro), O duelo se firma como um trabalho igualmente complexo, daqueles que a gente se orgulha de dizer: “Eu estive lá, eu vi.”

             Não por acaso, o laboratório da peça foi feito no sertão do Ceará. O calor do Cáucaso – elemento que circunda o enredo e ajuda a indispor Laiévski contra Nadiejda – se espelha na nossa vivência nordestina. Com este mergulho os atores resgatam as lições da alma, os duelos íntimos e dilaceramentos típicos da literatura russa, mas universalizando o seu poder. Não seria arriscado dizer que em alguns momentos o próprio rosto cearense de Aury Porto assume a rudeza eslava (escrava, como o quis a etimologia), no reflexo dos comportamentos condenáveis, dos conflitos morais que o personagem Von Koren aponta em Laiévski.

            O humanismo de Tchekhov se conserva em texto e cultura, admitindo uma costura com elementos ecléticos. Encontramos no espetáculo momentos de ópera, balé, ritmos latinos, referências à moderna presença das luzes de “bichos unicelulares”, fosforescendo no mar da plateia, menção a Antônio Conselheiro… E um dos momentos mais comoventes é quando se retrata a tempestade na praia: no proscênio, os atores esticam panos com a exata postura dos jangadeiros na obra de Raimundo Cela ou de Chico Albuquerque.

            A interpretação de cada personagem é inesquecível. Camila Pitanga exibe versatilidade e destreza na pele da fútil e febril Nadiejda. Carol Badra é uma excelente Mária Bitiugova, equilibrando os limites da dignidade e da caricatura, como o seu papel exige. O médico Samóilenko ganha espontaneidade com Vanderlei Bernardino; Sergio Siviero se transmuta em fantasma e Kirílin da maneira mais convincente. Guilherme Calzavara e Fredy Állan dominam a proposta de Atchmiánov e do Diácono Pobêdov, respectivamente. Aury Porto, bem mais sofrido que o príncipe Míchkin, d’O idiota, parece, entretanto, trazer deste personagem a carga de inocência para a salvação, no final da peça.

            O duelo também se realiza de maneira inteiramente feliz em luz, figurino e sonoplastia. As soluções cênicas para fazer o mar, o vento ou a chuva trazem a sensação de um rito mágico, ao mesmo tempo teatral, sertanejo e trágico. Como no desfecho da novela de Tchekhov, todas as divergências se conciliam em síntese; e a arte da Mundana Companhia, sob a ótima direção de Georgette Fadel, transmuta dor em vivacidade.

Tércia Montenegro (artigo publicado no caderno Vida & Arte de hoje)

Aury Porto e Camila Pitanga na peça “O duelo”

A arte impossível

Trecho sobre Hokusai do mesmo livro comentado no post abaixo:

 “Esse grande homem ficou magoado de sempre repetirem: ‘És apenas um pintor de pequenos formatos…’ e resolveu lançar-se no outro extremo… Seus alunos preparam-lhe um imenso chassi, grande como a fachada de um prédio de seis andares. Cobriram-no de papel. No dia da demonstração, Hokusai passeou sobre seu painel arrastando atrás de si, presos ao pescoço, sacos de arroz embebidos de nanquim… A multidão presente não compreendia nada das longas esteiras que ele assim traçava… Ele pegou também vassouras molhadas de tinta para aspergir aqui e ali o painel. Mas quando o pintor deu a ordem de erguer o quadro verticalmente – ele concebera para isso um sistema de cordas e roldanas – todos reconheceram nessa imagem gigantesca os traços de Dharma, o deus do chá, cuja lenda, aliás, é magnífica. Surpreendido pelo sono durante a prece, esse sacerdote ficou tão exasperado que arrancou seus olhos e os lançou longe… A planta que brotou onde eles caíram preserva do sono: é o chá… (…)

“Foi na casa de um príncipe que queria ter um ‘quadro’ de Hokusai. O pintor fez desenrolar um longo rolo de papel, nele traçou algumas linhas azuis, ondulantes. Depois pegou umas galinhas, molhou suas patas com tinta vermelha e deixou-as correr através do rolo de papel… E todos reconheceram o rio Tatsuta cujas águas carregam no outono as folhas púrpuras do bordo, semelhantes à pata das galinhas…”

Hokusai

Imagine essa turma junta

Um trecho do livro Conversas com Picasso, do fotógrafo Brassaï, quando se comenta a respeito da peça teatral O desejo pego pelo rabo, do pintor espanhol, e a leitura pública que reuniu alguns dos maiores gênios daquele século. Imagine essa turma junta, compartilhando surrealidades:

“Esse divertimento Picasso o escreveu em Royan em quatro dias – de 14 a 17 de janeiro de 1941 –, num caderno de escola. Deixou vagabundear seu espírito segundo a ‘escrita automática’, o transe verbal dando livre curso a sonhos, obsessões, desejos inconfessados, encontros bizarros de ideias e de palavras, de banalidades cotidianas e de absurdos. O humor e o inesgotável espírito inventivo de Picasso manifestam-se ali em estado puro. Tudo o que o preocupava durante aqueles dias de uniformidade em Royan – o inverno rude, a ocupação alemã, as privações, o isolamento, a desconfiança, os prazeres da cama e da mesa – são os motores que animam seus personagens burlescos: o Pé Grande, a Cebola, a Torta etc.

(…)

“A ideia dessa representação, ou melhor, leitura pública, veio de Michel Leiris, acho eu. Ele confiou sua ‘direção’ a um homem de teatro: Albert Camus. Foi a este último que coube a tarefa de descrever os cenários, de anunciar os atos e de apresentar os protagonistas. Ele o fez munido de um bastão que deu as três batidas… Leiris interpretou o Pé Grande; Raymond Queneau, a Cebola; Jean-Paul Sartre, a Ponta Redonda; Georges Hugnet, a Angústia gorda; Jean Aubier, as Cortinas; Jacques-Laurent Bost, o Silêncio. A bela atriz Zanie de Campan, Louise Leiris, Dora Maar e Simone de Beauvoir dividiam os papéis femininos: a Torta, os dois Totós, a Angústia magra e sua Prima.”