O que Anne me ensinou

Por razões óbvias, tenho pensado muito em ilhas, esconderijos, cárceres, cativeiros. E, dentro desse tema, lembrei a figura de Anne Frank. Eu e minha irmã lemos seus Diários com a mesma idade que ela tinha quando os escreveu. Sem dúvida, foi a primeira história terrível de nossas vidas, porque terminava com a informação de Anne ter sido presa pela SS (após dois anos escondida com a família), morrendo de tifo na prisão. Até que chegássemos àquele ponto, porém, o livro nos ensinava uma lição de humildade e sobrevivência na solidão.

Enquanto seres criativos, temos a impressão de explodir, se não pudermos extravasar ideias, palavras, imagens – e talvez isso seja verdade. Mas também pode ser que o movimento não seja necessariamente explosivo: a maioria de nós murcha, dia a dia se sente mirrando. Para qualquer um dos casos, Anne, aos 12 anos, ressalta a importância de usar o que se tem à mão, criando um pouco de felicidade.

Entretanto, nós adultos tantas vezes nos proibimos ser felizes, e ainda mais numa situação como a de agora. Parece obsceno sorrir, sentir algum tipo de prazer ou bem-estar enquanto do lado de fora há os doentes, há um prometido caos para o sistema de saúde, e além de tudo há os irresponsáveis que não se recolhem, e os que estão na rua por não poder de fato ficar em casa, ou nem terem casa etc. Motivos não faltam para se envenenar de tristeza ou desespero – mas basta pensar um pouco (temos tempo para isso) e vemos que sempre existiram razões, numerosas, dando argumento a quem quer ser infeliz. Se fomos nos ater aos fatos, os pessimistas estão certíssimos: o leque de desgraças no mundo não acaba. E não acabará com o fim do coronavírus.

“O que não tem solução, solucionado está”: foi algo que também li na infância, uma frase que aparecia na série de livros de Laura Ingalls Wilder, que eu e minha irmã adorávamos. Ainda hoje acredito nessa sabedoria de deixar um pouco de lado, parar de insistir, esquecer – concentrar-me naquilo que é possível, que está ao meu alcance.

Anne Frank ficou escondida num anexo secreto de um prédio em Amsterdã, enfrentando condições precárias. Ela não lutou diretamente contra Hitler, não foi heroína da resistência, não pegou em armas: era apenas uma criança e escreveu um diário. Com ela, aprendi a enxergar as ocasiões em que sou impotente, volto a ser menina diante da vida – e o que posso fazer, então? Somente criar brinquedos para me salvar.

Tércia Montenegro

 

Ficar consigo

Graças à atual pandemia, estamos à beira de um confinamento estilo Decamerão – com a diferença de que as pessoas não vão se dedicar a contar histórias umas para as outras; a quarentena se dará diante de uma tela de computador ou smartphone: todos passivos, recebendo “conteúdo” sem parar. Entretanto, seria possível tomar este período como uma chance de aprendizado, e não de queixumes? Vamos experimentar.

Quem encara a perspectiva de um isolamento doméstico na forma de um martírio tem aí um sintoma grave. Se você não vive tranquilo em casa, pode achar preferível passar o dia na rua, com estranhos, a suportar o inferno familiar. Mas deveria ser um direito inalienável, a garantia de paz no próprio lar, e embora eu saiba que toda mudança envolve uma logística que ultrapassa a simples vontade, sem um primeiro passo não se avança nada.

Imagine que felicidade, acordar sabendo que entre suas paredes o dia será pacífico e harmonioso! Criar essa zona de conforto e proteção é também uma escolha; nunca vem de modo fácil, mas sempre recompensa. Sobretudo agora, quando todos devemos “viajar para dentro”, no sentido de que as novidades se encontrarão nos espaços internos, na casa e no espírito. É um exercício de atenção mais acurado, descobrir singularidades em local tão conhecido que se tornou opaco – mas as surpresas existem o tempo inteiro, se permitimos. Meditar, por exemplo, é encontrar em si um outro ritmo, um corpo mais denso, vibrante, energético.

Dançar, cozinhar, ouvir música… todas são formas de achar beleza e alegria. Que tal passar uma noite à luz de velas, para descobrir que a casa vira um quadro de Caravaggio ou La Tour? E desenhar, com o prazer que uma criança tem nisso (às vezes com igual qualidade técnica, não importa). Rever antigas fotografias. Arrumar aquela gaveta. Ler, escrever, óbvio!

Mas nem todo mundo está preparado para a própria companhia – e esse dado é o mais espantoso. Como assim, as pessoas preferem ruídos e confusão, para não ouvir a si mesmas? São dependentes da presença alheia, do sentimento de massa – porque, enquanto estiverem integradas num grupo, não correm o risco de olhar o seu abismo solitário. Mas essa epifania, ainda que dolorosa, é uma experiência necessária para que a gente se veja em profundidade. É o passo fundamental para se autoconhecer, contemplar a imagem íntima: o rosto cru da identidade.

Imagino que, para certas criaturas, seja intolerável a feiura do seu caráter, a mesquinhez das suas intenções diante da vida e do mundo. Por isso, depois de uma rápida espiada no monstro, elas voltam a trancá-lo num porão emocional e, para abafar seus rugidos, seguem uma compulsiva rotina de alienação. Podem levar anos nesse comportamento, convencidas de que o seu verdadeiro eu se calou ou morreu, e só restou o eu social, midiático, perfeito. Mas essa naturalmente não será nunca a verdade, conforme já nos ensinava Oscar Wilde, através de Dorian Gray.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)