Inventar o silêncio

 

A edição 195 do jornal Rascunho trouxe, na seção Inquérito, com Charles Kiefer, um tema que me sensibiliza muito: a opção pelo silêncio. Desde a época em que, para o mestrado, pesquisei a obra de Raduan Nassar – tantas vezes definido como um “ex-critor” –, essa postura me intriga e fascina.

Inicialmente, fui tentada a considerar inviável tal espécie de renúncia. Como um artista, para quem a criação é coisa tão vital, poderia abdicar (e ainda mais, voluntariamente) de sua prática? No imaginário, estes indivíduos me surgiam como discretos rebeldes que, à custa dessa greve, pareciam elaborar algum protesto – contra o mercado? o público? os seus contemporâneos? Não me importava o ideal por trás da decisão: eu achava que essas pessoas amargavam o sacrifício, a sensação de sufocar pelo não-dito, ou não-escrito. Seriam mártires da estética ou, no mínimo, seres infelizes.

O tempo – com variados exemplos – fez com que eu mudasse de juízo.

O silêncio, como escolha, apresentou legitimidade e inúmeras facetas. Não se trata (apenas) de um gesto de recusa: deixar de produzir é também um tipo de resposta e, em última instância, o vazio linguístico pode ser recebido como um texto, implícito ou radicalmente econômico.

A própria literatura se encarrega dos exemplos. Vila-Matas é a figura que logo recordamos, para abordar estes casos; com Bartleby & cia. (e depois, em outros textos) o escritor espanhol explora, em sua ficção, episódios envolvendo “artistas do não”. O mote fornecido pelo livro de Melville, Bartleby, o escrivão, usa como ponto de partida a personalidade de quem prefere a paralisia ao gesto, a imobilidade à ação.

O silêncio derivado dessa circunstância parece ter uma raiz fleumática ou displicente, algo que se encontra em Oblómov, o protagonista eternamente deitado em sua cama. Este romance de Ivan Gontcharóv, publicado em 1859, repercute na obra de Georges Perec, O homem que dorme, de 1967. A preguiça ou indiferença pode ser um dos motivos para essa atitude de persistente repouso.

Confundindo-se com um pessimismo profundo – e oscilando à borda de um estado depressivo –, tal postura parece ecoar o início d’ “O artista inconfessável”, de João Cabral: “Fazer o que seja é inútil/ Não fazer nada é inútil”. Os versos seguintes, porém, elegem “o inútil do fazer” como mais relevante, “porque ele é mais difícil/do que não fazer” e o esforço, em si, já tem valor.

Fernando Pessoa – via Bernardo Soares, no Livro do desassossego – abordou o tema com abundância adverbial: “Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens”. O orgulho de se destacar da massa, do grosso comum da humanidade, surge como outro motivo para a recusa de agir. O ponto que oscila entre plenitude e pessimismo continua, porém, escorregadio. Em momento adiante, o poeta reflete: “Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo ‘Já sei tudo”, ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: ‘omnia fui, nihil expedit – fui tudo, nada vale a pena’.”

Susan Sontag, no ensaio “A estética do silêncio”, pertencente ao livro A vontade radical, demora-se em ponderações sobre o assunto e admite: “A atitude verdadeiramente séria é a que encara a arte como um ‘meio’ para alguma coisa que talvez só possa ser atingida pelo abandono da arte”.

Desde que o fazer estético pode ser considerado uma libertação, ou até mesmo um exercício de ascetismo, o artista vai se tornando purificado – “de si próprio e, por fim, de sua arte”. A necessidade (que, como tal, sempre revela uma carência, uma fragilidade) é superada pela satisfação. O artista não sofre mais com a inquietação de realizar uma obra; atingiu o sossego, que é mais valioso do que a voz.

Assim observa Sontag: “O silêncio é o último gesto extraterreno do artista: através do silêncio ele se liberta do cativeiro servil face ao mundo, que aparece como patrão, cliente, consumidor, oponente, árbitro e desvirtuador de sua obra”.

Em meio a tanto ruído do mundo, o caminho da contemplação surge como um veio promissor. É nesse sentido que abdicar da arte pode ser o ápice do propósito artístico, o exercício dentro de uma estética ensinando a extrair prazeres do mínimo. Render-se à tentação da mudez é, portanto, uma fase de êxtase, e não de sacrifício, para quem assim procede.

Mas Sontag adverte que essa etapa – como num trajeto de iluminados – tem de ser alcançada tardiamente: “Uma decisão exemplar dessa espécie só pode ser efetuada após o artista ter demonstrado que possui gênio e tê-lo exercido com autoridade. Uma vez suplantados seus pares pelos padrões que reconhece, há apenas um caminho para seu orgulho. Pois ser vítima de ânsia de silêncio é ser, ainda num sentido adicional, superior a todos os demais. Isso sugere que o artista teve a sagacidade de levantar mais indagações que as outras pessoas, e que possui nervos mais fortes e padrões mais elevados de consciência”.

O silêncio, em todas essas colocações, pode ser um sinal de orgulho no ultrapassar a ação (ainda que esta seja original, artística), ou pode, ao contrário, ser despretensioso, derivado de simples letargia. Também é possível que nem dependa de uma escolha do indivíduo, nos casos em que ele se encontra pleno a ponto de perder o anseio por criar. Tal parece ter sido o caso de Charles Kiefer, que em sua entrevista declara: “Como eu vivo hoje em absoluta plenitude, não escrevo mais”.

Sendo múltipla e criativa – embora exteriormente possa soar como uma tendência uniforme e estéril, devido à falta de produtos ou resultados –, a inação guarda o impulso narrativo. Susan Sontag assinala que “a obra de arte eficaz deixa o silêncio em seu rastro”. Numa linha próxima, mas agora pensando no potencial inventivo dessa mudez, arriscamos a afirmação vista pelo outro lado para dizer: o silêncio eficaz deixa um rastro de arte.

 

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é narrativa, do jornal Rascunho)

 

 

Para poder não ser mãe

Porque ainda existe, sim, um pessoal de mente estreita que acha que a mulher só se realiza “completamente” (seja lá o que isso for) através da maternidade. Aos que sacam rótulos para definir as opções contrárias, recomendo a leitura do artigo cujo link segue abaixo. No fundo, esse tema ultrapassa questões de gênero e se baseia no simples respeito (ou na ausência deste) em relação às escolhas e estilo de vida de alguém.

Orna Donath, no El País, dá palavras ao que eu sempre quis dizer.

http://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/27/estilo/1477586348_982538.html?id_externo_rsoc=Fb_BR_CM

 

Perotá Chingó

Aquela música que eu dancei – mas então não tinha reparado na letra.

La Complicidad

Soy el verbo que da acción a una buena conversación
Y cuando tu me nombras siente ganas
Soy la nueva alternativa contra contaminación
Y tu eres la energía que me carga
Soy una arboleda que da sombra a tu casa
Un viento suave que te soba la cara
De to’os tus sueños, negra, soy la manifestación
Tu eres esa libertad soñada
Soy la serenidad que lleva a la meditación
Y tu eres ese tan sagrado mantra
Soy ese juguito e’ parcha que te baja la presión
Y siempre que te sube tu me llamas, ya
Tira la sábana, sal de la cama
Vamos a conquistar toda la casa
De todo lo que tu acostumbras soy contradición
Creo que eso es lo que a ti te llama

La complicidad es tanta
Que nuestras vibraciones se complementan
Lo que tienes me hace falta
Y lo que tengo te hace ser más completa
La afinidad es tanta
Miro a tus ojos y ya se lo que piensas
Te quiero porque eres tantas cositas bellas
Que me haces creer que soy

Soy
La levadura que te hace crecer el corazón
Y tu la vitamina que me hace falta
Soy ese rocío que se posa en tu vegetación
Y tu esa tierra fértil que esta escasa
Soy la blanca arena que alfombra tu playa
Todo el follaje que da vida a tu mapa
De toda idea creativa soy la gestación
Tu eres la utopía liberada

La complicidad es tanta que nuestras vibraciones se complementan
Lo que tienes me hace falta y lo que tengo te hace ser mas completa
La afinidad es tanta
Miro a tus ojos y ya se lo que piensas
Te quiero porque eres tantas cositas bellas
Que me hacen sentir muy bien

Reviajar – Mons

Dentro da série de postagens sobre minha estada na Bélgica no ano passado, resgato agora as impressões de Mons – mais especificamente, da exposição no BAM (Museu de Belas Artes) desta cidade. Em texto publicado abaixo, sob o título “Verlaine e seu fantasma”, falei melhor a respeito do tema. Complemento então as impressões do leitor com fotografias de algumas peças gráficas, algumas das quais mostram o talento de Verlaine para o desenho:

Autorretrato (circa 1870)

Autorretrato (circa 1870)

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Arthur Rimbaud avec l’ombre de Paul Verlaine – desenho de Frédéric-Auguste Cazals (1889)

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Arthur Rimbaud fumant la pipe – desenho de Verlaine (1872)

Famosa fotografia de Rimbaud feita por Étienne Carjat (circa 1871)

Famosa fotografia de Rimbaud feita por Étienne Carjat (circa 1871)

Filmes sobre artistas

Na mesma noite, tive a boa surpresa de ver estes dois filmes sobre artistas: A margem da linha Vélázquez, o realismo selvagem. Este último já me conquistou por ser um trabalho do Karim Aïnouz (ele é o tipo de diretor cujo nome basta para me fazer ir ao cinema). Com o tema em torno do grande pintor sevilhano, então, que mais eu desejava? Foi maravilhoso perceber a ligação entre aquelas pinturas da corte espanhola e um impressionismo já anunciante – ao mesmo tempo em que Vélázquez em nada devia aos mestres flamengos (cujos fundamentos religiosos o seu rei e patrão, Filipe IV, empenhava-se em massacrar, na Holanda de 1600). Reconhecer a estética fílmica – da obsessão pelo céu, por exemplo, e da narrativa similar à de Viajo porque preciso… – foi o brinde para os fãs de Karim.

A margem da linha , documentário de Gisella Callas, talvez se ressinta de certa monotonia – mas ainda assim há momentos valiosos. A obra de Regina Silveira e o seu testemunho, bem como o de Leda Catunda, foram pontos altos. Os “papéis dóceis” de Sérgio Sister também me conquistaram – e as lições do Lama Padma Santen, físico quântico e budista (talvez esses termos, numa certa medida, sejam redundantes?), ficaram reverberando, tanto quanto aquela definição: “A arte é o que nos dá a sensação de que a vida podia ser diferente”. Fiz anotações: garrafa cheia de água do mar, à deriva no mar – garrafa pontilhada, ilusória, em pânico de partir-se. O leão de manteiga feito por Michelangelo. “Ver e traçar”, texto do Paul Valéry. A cor como experiência – e o azul é sempre contemplativo. Apaixonante, eu acrescento.

                                                     Sérgio Sister