Dentre as mais alegres viagens de minha infância, estavam as idas a Pernambuco. Em Recife, os gibis chegavam antes do que em Fortaleza – e havia, na época, um paraíso chamado Livro 7, livraria onde eu e minha irmã passávamos tardes inteiras. Ainda muito criança, eu olhava o Capibaribe enquanto ouvia meus pais falarem de João Cabral e Manuel Bandeira: a literatura se colava à paisagem, essencialmente. Mas foi em Olinda que aprendi as lições iniciais de folclore e de festa. O carnaval era a supremacia de cores e extravagâncias, no centro histórico onde desfilavam enormes bonecos, brinquedos de monstros que a qualquer momento poderiam aparecer, esmigalhando os foliões-formigas.
Aprendi a exorcizar meus medos com confetes, e aquelas primeiras aventuras fora de casa serviram de treino – inclusive (quem diria?) para minha experiência atual. Pois aterrissei na Bélgica para fazer um pós-doutorado, e o acaso quis que meu dia de chegada coincidisse com o festejo de Outremeuse. O 15 de agosto em Liège reúne multidões para ver o cortejo de gigantes liderado por Tchantchès e Nanesse, figuras típicas da tradição local.
A missa em valônio, as músicas e sabores – com o irresistível peket, em suas combinações variadas – me impulsionaram às descobertas. Recém-chegada ao país, eu me dispunha ao assombro, com uma curiosidade infatigável. A língua francesa em prática cotidiana, os museus, o povo, os costumes… eu buscava ganchos culturais onde me apoiar, mas na verdade uma boa parte era (e continua sendo) improvisada. Até o corpo busca soluções: para uma cearense, é insólito andar com as mãos nos bolsos de um casaco, mas em Liège eu me habituei a isso, assim como aprendi sobre a textura de cachecóis e o tipo exato de meias para usar com as botas. Ao mesmo tempo, os hábitos também impõem sua presença – e continuo vendo uma cidade através de sua arte. A Place du Marché agora é, para mim, o local onde Jim Sumkay produz flagrantes fotográficos. A igreja de Saint Pholien e as casas ao redor levam ao percurso dos livros de Georges Simenon. A Université de Liège, claro, está para sempre ligada ao Groupe µ, que adensou minha paixão pela semiótica visual.
A “cidade ardente” se torna um equivalente afetivo da minha “terra do sol”: entre a Bélgica e o Brasil, construo insólitas relações. Talvez a saudade nos capacite a esse tipo de fantasia – mas o fato é que ando pelas ruas chuvosas de Liège reparando no movimento das pessoas, que levantam e abaixam sobrinhas, para não esbarrar nos demais transeuntes. Isso para mim é Pernambuco, criando um frevo ritmado pelo frio. E confirmo o que afetivamente já suspeitava: o Nordeste brasileiro é o princípio do mundo.
Tércia Montenegro (crônica também publicada ontem no blog da Companhia das Letras)
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