FRANCISCO

Hoje, dia 4 de outubro, meu pensamento vai para ele – o filósofo do altruísmo, o poeta do meio ambiente, o caridoso em extrema coerência, o santo que protege os animais. Uma figura tão emblemática de humildade que o papa decidiu homenageá-lo, tomando-lhe o nome – e, como consequência, um pouco da sua postura despojada, sem tantos riquíssimos paramentos católicos. Aliás, acho que combina muito bem com Jorge Mario Bergoglio, com seu sorriso e simpatia, chamar-se de Francisco.

Das cenas de sua vida tão longínqua, gosto especialmente de imaginar a pregação aos pássaros, a conversa com o lobo de Gubbio e a descoberta de que o desprendimento é libertário. Quando ele doou até a roupa que vestia, renunciou a qualquer grilhão de vaidade ou convenção social – e, além disso, seu gesto o consagrou como o primeiro santo performático e naturista do mundo…

Tenho em casa algumas estatuetas que o recordam: uma comprei em Salvador; outra, em Sabará. Mas a mais realista foi adquirida em Assis, o lugar de maior encanto que já visitei. Durante todo o dia em que ali estive, num passeio-relâmpago cinco anos atrás, eu me senti abençoada, não há melhor palavra. Entrei na Basílica, arrepiei-me diante dos afrescos de Giotto, andei pelo espaço sagrado da cripta, depois percorri sem rumo as ruas inclinadas e antiquíssimas – mas o fundamental permaneceu invisível: a emoção de ainda encontrar, naquela cidade, a energia de um ser iluminado. Ele esteve ali oito séculos antes, sua túnica exposta na Basílica era tão desgastada quanto uma pele que se queimou, do seu próprio corpo provavelmente só restam vestígios… porém nada disso importava. A presença de Francisco paira em Assis e, óbvio, dirão os devotos, não somente lá.

Embora eu não me sinta à vontade em nenhuma religião (fujo de líderes e dogmas), sei reverenciar as energias superiores e reconheço o exemplo de São Francisco. Confesso inclusive que, de tão presente em meu cotidiano, ele às vezes me surge em sonhos, oferecendo a inspiração da sua existência, que foi tão simples quanto extraordinária.

O seu amor pela natureza, a sua integração com o todo traz o maior testemunho a respeito da paz. Ele condenou o especismo e desenvolveu uma consciência ecológica em plena Idade Média – foi, portanto, um visionário (mas assim não são todos os iluminados?). Os seus milagres e contemplações nos lançam a uma poética que só a mais refinada literatura atinge. Ele foi andarilho e recluso, reuniu multidões mas também sempre agiu sozinho. O que esse homem, defensor da harmonia holística e da fraternidade astral, diria atualmente sobre o planeta? Talvez usasse as mesmas orações, a mensagem que – por ser perfeita – permanecerá idêntica. Entretanto ela parece bem mais urgente agora, não é? Meditemos.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)

Surtos de quarentena

      Alguém me disse que o artista cearense Paulo Montserrat infelizmente abandonou a releitura que preparava de “Haraquiri em um encontro de ventríloquos”, obra-prima de René Pollesch, e resolveu passar o confinamento numa floresta bávara, vivendo de coleta. Ele não é um caso único: várias pessoas têm apresentado um comportamento estranho, graças ao mix de 2020. Vírus, medo, desemprego, situação política em mistura com ódios, recalques e frustrações inconfessáveis compõem a fórmula cotidiana de muita gente.

     Assim, não é de espantar a notícia sobre um homem que, durante uma briga com o parceiro, pegou todas as máscaras faciais que ambos possuíam e atirou pela janela. Quero imaginar o arremesso daqueles estranhos pássaros de pano, caindo do vigésimo segundo andar – mas a cena não me agrada (como também não agradou ao síndico do prédio, que multou a dupla por jogar lixo semi-hospitalar no pátio).

     Há também o caso de uma amiga que – logo no início da quarentena – sentiu-se tão aprisionada, que começou a doar os móveis do apartamento. Sua família se desesperou, ao saber que a mesa da sala, com seis cadeiras, tinha ido embora, e ainda uma cristaleira e um guarda-roupa. Ao final, minha amiga se viu apenas com a cama, um armário e a mesinha do computador. “Parece que as paredes estavam se aproximando de mim”, ela disse, “então precisei tirar os móveis para criar distância”.

      A maioria das crises vem pelo desejo de liberdade, e as estratégias para obtê-la vão surgindo, de modo simbólico ou concreto – mesmo que, neste último caso, possam durar pouquíssimo. Certa senhora de um bairro acolá, para escapar do aperreio constante, deixa a filha de 5 anos invadir as casas vizinhas. A mulher se põe distraída, conversando na porta, enquanto a menina explora gavetas, pula no sofá alheio ou, frequentemente, abre a geladeira e agarra o primeiro frasco que encontra… Ao todo, já bebeu soro fisiológico, xarope de groselha, infusão contra reumatismo e vinagrete. É preciso que a própria dona da casa ou outro morador qualquer segure a pequena intrusa e a arraste de volta à mãe, pois esta aproveita cada minuto do descanso e jamais iria, por um gesto espontâneo, recuperar a criatura infatigável.

     Eu também – confesso – tenho exercitado pensamentos mirabolantes para escapar da rotina. Mas freio qualquer atitude prática, quando lembro o perigo de contaminação: a ameaça da pandemia persiste, por mais que alguns finjam o contrário. Portanto, a saída que encontro são as viagens – através de livros, fotos, ou por meios virtuais. Outro dia, fiz um trecho do caminho de Santiago de Compostela pelo google street view. Creio que amanhã visitarei Galápagos… ou, quem sabe, Cracóvia? Enquanto mantiver a curiosidade, vou escapando dos surtos, do precipício que espreita os que se sentem rodar, autômatos e fechados nessa gaiola urbana.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

UM HIPPIE TECNO

O músico e artista plástico David Byrne, no seu Diários de bicicleta (que foi uma viagem possível – e extremamente agradável – nesta quarentena), aborda inúmeros assuntos. Sob a proposta de compilar vivências em diversos países, através de turismo ou turnês, quando Byrne sempre encontra um modo de pedalar, seja em Manila ou Istambul, Salvador ou Berlim, o livro faz um percurso reflexivo variado. De questões urbanas e culturais a perspectivas históricas, artísticas e filosóficas, aprendemos a cada página. Eu poderia citar aqui muitos temas, mapeando os capítulos de Byrne – mas elejo um, em alerta sobretudo graças ao momento atual.

Ao tratar sobre a região do Vale do Silício, em São Francisco (EUA), o autor estabelece certo conceito à primeira vista estranho: o de um hippie tecno. Conforme sua percepção, os “jovens ponto-com” tinham, assim como a geração paz-e-amor, um interesse revolucionário em fazer algo que unisse todas as pessoas. “O livre-para-todos da blogosfera e a loucura total das coisas que as pessoas postam on line compartilham uma bela sensação de tanto faz. A sensação de liberdade anárquica permanece”, assinala.

Ora, essas podem ter sido iguais motivações de base, mas é inegável que a utopia nerd dos anos 1970 se transformou num meganegócio que apenas finge promover as possibilidades humanas livremente – na verdade, paga-se caro pelo acesso a informações, mídias, plataformas de reuniões remotas etc (não estou falando só no preço dos planos de internet, vocês me entendem). Com a pandemia de 2020, a vida virtual saiu favorecida: ainda mais pessoas agora devem pensar que presenças e paisagens reais são dispensáveis ou substituíveis.

Essa, acredito, é justamente a crença contrária à de um hippie.

Um hippie não prioriza alternativas práticas, “confortáveis” – especialmente se elas implicam em vigilância, monitoramento das atitudes.

O próprio Byrne comenta que, quando chegou a São Francisco na época da juventude, sentiu-se atraído pela visão hippie-eco-tech… mas acabou vagando com um amigo pelas ruas de Berkeley, tocando violino e ukulele. Entretanto, o estilo Woodstock terminou há tempo, alguém poderia dizer. Hoje os andarilhos utilizam GPS, os nômades já não são criaturas secretas… Concordo, porém imagino que uma nova tendência virá – um retorno ao rústico, pelo abuso total da tecnologia.

Depois de nos obrigarem a usar tantas máquinas e conexões artificiais, e nos forçarem a manipular softwares para tudo, chegaremos um dia à exaustão revoltosa. Faremos um gesto que nem precisa ser grandioso – e, claro, não será divulgado no instagram. Simplesmente deixaremos o celular, a câmera, o carro, até mesmo as roupas, à beira de uma praia naturista. De lá sairemos com um tipo de sabedoria. Inigualável. Intraduzível. O trampolim da aventura.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

Jim Sumkay, de Liège

Uma parte do meu recém-lançado romance Em plena luz (Companhia das Letras) se passa em Liège, cidade belga onde vivi durante um semestre. À parte o fato de ser a terra natal de Georges Simenon, o local não prometia grandes descobertas culturais – mas logo encontrei ótimas surpresas. Os excelentes museus e cinemas, além da Biblioteca Chiroux, fizeram a minha felicidade na época. Entretanto, dentre tantas boas lembranças, a mais especial talvez esteja ligada a um episódio de reconhecimento estético que me impressionou profundamente.

Aconteceu assim: na primeira semana da estada, eu – durante uma visita ao Curtius Museum – encontrei uma exposição que trazia fotos e projeções fotográficas de “coincidências visuais”. As imagens eram muito inteligentes e divertidas, compondo situações irônicas pelo diálogo entre texto visual e verbal. Por exemplo, numa das fotos viam-se três policiais de costas passando por uma rotisserie onde havia a placa “Les trois poulets”, como se fossem aqueles agentes da lei os tais frangos anunciados. Em outra, uma porção de gansos se amontoava em frente a uma porta de igreja em que se lia a faixa “Venham a Deus com todo o seu coração”.

Eu me via rindo quase às gargalhadas com esses achados, que – além do aspecto de humor – eram também fotografias de alta qualidade. Mas na ocasião o nome do artista, Jim Sumkay, me fez imaginar um jovem magro, estadunidense, que estivesse incursionando pela Europa. Provavelmente alguém ligado ao cinema, ou a histórias em quadrinho, pelo tipo de narratividade em suas composições.

Não cuidei de guardar esse nome ou investigá-lo pela internet.

Alguns meses depois, eu andava em direção à Universidade de Liège, para resolver compromissos profissionais, e de repente flagrei um homem, com cerca de cinquenta anos de idade, usando bigode, cavanhaque, óculos e chapéu. Ele segurava uma pequena câmera, tentando enquadrar uma pessoa que andava e dali a um instante estaria diante de um caminhão com um anúncio de um frigorífico. Eu li a frase do anúncio, observei a pessoa, antecipei mentalmente a foto que aconteceria – e fiquei paralisada.

A minha suspensão alertou o homem, que se empertigou meio desconfiado: “Bonjour?” Eu devia estar com os olhos tão arregalados que provavelmente parecia uma louca. Com um ímpeto impossível à minha timidez, avancei para ele, estendendo a mão a cumprimentá-lo. “O senhor”, perguntei, “estava expondo umas fotos no Curtius, um tempo atrás?” Agora quem se espantava era ele: “Sim, mas como…?” Eu estava à beira da euforia: “Eu reconheci! Essa cena, essa situação… era uma fotografia sua, bem aqui!”

Aquela evidência estilística, materializada num acaso que considerei milagroso, fez com que confraternizássemos, numa breve conversa. Ele me contou que tinha superado o alcoolismo “substituindo um vício por outro” – e não se passava um dia sem que saísse para fotografar.

Nunca mais reencontrei Jim Sumkay, mas comecei a visitar sua página virtual. Principalmente depois que voltei ao Brasil, suas imagens ganharam em afetividade, na medida em que me faziam tornar às ruas de Liège. Entretanto, eu não me dava conta de como seguir o seu trabalho impregnava a escrita do romance que ia elaborando. De modo consciente, sabia que as cenas ambientadas na cidade belga nasciam de anotações e demais registros que eu própria tinha acumulado durante a vivência por lá. Era esse material o alvo das minhas consultas diretas, à medida que a história ia sendo construída. A página de Sumkay eu espiava em momentos “de folga”, despretensiosamente, por assim dizer.

Percebi a dimensão dessa influência há pouco tempo, já na fase de preparação editorial do Em plena luz. Em determinado dia – enquanto descansava do trabalho de revisar os originais –, entrei na página do fotógrafo e achei um casal abraçado na Praça Saint-Lambert, bem diante do monumento em homenagem às vítimas do terrorista Nordine Amrani, que ali atacou em 2013. Foi um efeito madeleine: involuntariamente, me lancei de volta à sensação de andar pelo mesmo local, eu também em busca de memórias.

Encontrei em outra foto, comovida, um personagem que frequentava o refeitório da Biblioteca Chiroux, um idoso que eu associava a uma figura de Dürer. E descobri, dentre tantos gatos clicados por Sumkay (é um de seus temas preferidos), aquele que um dia eu própria fotografei, dentro de uma loja na rua Féronstrée.

Em certo trecho do livro, minha protagonista diz: “Afinal, trago coisas que não compartilho. Basta me acalmar, e estão lá — as ruas estrangeiras. Liège, Lieja, Luik: o refúgio que ela significou para mim. ‘Cortiça’, eu disse para mim mesma, ‘é o que significa Liège.’ E a cidade me fez boiar, sim, na espuma confusa daqueles dias.”

Jim Sumkay é igualmente náufrago. É mais alguém que se salvou – e que nos salva – através da arte.

                                                                                                                          Tércia Montenegro

 

 

 

 

A sabedoria das paisagens

Foto: Tércia Montenegro

Há mais de dez anos conheço Ana Miranda, embora a sua literatura eu conhecesse bem antes. Depois que passamos a conviver, entretanto, acontece uma coisa mágica quando leio seus livros: escuto a sua voz percorrendo as linhas. O seu timbre, tornado tão familiar, acompanha a história inteira, num embalo doce e secreto.

Neste volume de crônicas, a melodia de Ana Miranda me traçou vários temas. Levou-me para perto de outros escritores, como Rachel de Queiroz, José de Alencar, Natércia Campos… Mas também me fez passear pela sua memória mais pessoal. Este livro é um verdadeiro retiro que se vai construindo com pistas biográficas: o local de nascimento da autora, suas origens familiares, seus gostos, sua prática literária. Há reflexões sobre os costumes na capital e no interior, retratos do Nordeste, descrições de um tempo perdido, pinçadas de velhos cronistas – e aqui Ana ativa o espírito pesquisador que a fez brilhar pelos romances de veio histórico.

Há ainda os textos de humor, dentre tantos voltados para a poética, acentuando a beleza de palavras e superstições, a observação sobre nomes de flores e personagens, anagramas, lugares, hábitos… cada crônica é um mundo, são muitas harmonias que esta obra dispõe. Percorrê-la é se irmanar com essa paixão que a própria Ana Miranda tem pelos livros. É se tornar mais sábio, com as “asas invisíveis” que a literatura inventa, para nos arremessar em profundas viagens.

Tércia Montenegro (para as “orelhas” do mais recente livro de Ana Miranda, Histórias contadas pelo vento)

O que não se esconde

Coletivo Colher

Hoje comemoramos um ano do Coletivo Colher, e há vários motivos de alegria! Nossa parceria artística trouxe grandes conexões, êxtases e êxitos diversos. Expusemos uma série fotográfica na Casa de Cultura Alemã, fizemos ações urbanas e aquáticas, algumas que inclusive saíram do país (caso da performance Zona B), e – o mais importante – os projetos continuam a crescer! Divulgamos agora este recente trabalho, O que não se esconde, para marcar nossos festejos e fazer um agradecimento retrospectivo aos envolvidos, com destaque para os queridos parceiros Helder Weiss e B. Ayres, que oxalá possamos logo rever. Uma lembrança especial vai também para a performance revisitada da obra de Sophie Calle, na semana passada! Vida longa para nós!

A vida que há nas pedras

Assistindo a uma série documental sobre o império romano, sofro aquele assombro óbvio diante das proezas antigas – não as proezas bélicas, porque a meu ver elas não podem ser consideradas assim; são na verdade insanidades, desperdícios de vida. Mas o admirável está em todo o resto: a moda, o mobiliário, as joias, a arquitetura. Toda a disciplina absurda que foi necessária para construir cidades e rotinas, organizações implacáveis. E, dentre os artifícios e artefatos, algumas peças especialmente me sensibilizam. É por elas que visito os museus arqueológicos.

Há um mês, em Taranto, quando achava que depois dos museus mexicanos (vistos alguns anos atrás) eu já não me espantaria mais diante de lâminas, espelhos velhíssimos, pontas de lanças ou cacos de cerâmica e urnas funerárias, tive o encanto de voltar a esse passado. Um passado que não é especificamente meu – e justamente por isso seduz e assusta, filosoficamente lembrando como a humanidade estava no mundo e continuará (?) nele, extravasando os limites individuais. De maneira específica, as esculturas me atraem. Elas dão vida à pedra – ou melhor, lembram que há uma vida também nelas. Basta saber olhar para perceber sua identidade única: o polido, as cores, os reflexos, os formatos. Cada pedra em si é uma joia e conta uma história, no momento em passa pelas mãos de alguém. Colher pedras – um gesto simples, mas tão raro, que os sensíveis compreendem.

Viagem de salvação – parte 3

Lecce foi aquela cidade em que a recepcionista do hotel nos perguntou, espantada: “Por que vocês haveriam de sair agora à tarde?” Nós precisávamos almoçar, já com um certo atraso – mas de fato a ideia de andar sob o calor parecia não ocorrer a mais ninguém: todo o centro histórico estava deserto, passando uma sensação de abandono e sordidez que acende alertas de perigo. Horas depois, com apetite para jantar, o cenário estava completamente transformado. Intenso burburinho nas lojas, vida boêmia e familiar se entrecruzando nas ruas. Lecce foi onde pude ver a emocionante exposição do Elliott Erwitt – foi onde entrei em magníficas igrejas, onde contemplei um anfiteatro clássico.

Lecce – Chiesa del Gesù

No dia seguinte, tivemos um almoço em Ostuni (que também ostentava uma mostra do Picasso – mas dessa vez estávamos vacinados), e o restaurante era um charmoso local cavado na rocha. A parte culinária da viagem se tornava uma sensação à parte: para além das excelentes massas, dos inesquecíveis primitivi, havia os pães, os queijos e os quitutes. Ainda suspiro quando penso nos taralli, nos paticciotti… uma lástima que não se possa carregar um sabor como se faz com um artesanato ou uma fotografia!

Ostuni

Tomamos a estrada ladeada por antigos olivais – e dessa vez rumo à nossa última parada. Polignano a mare suplica por uma entrega poética: não há outra forma de entrar nessa cidade. A famosa Lama Monachile é de uma beleza tão profunda que, se não houvesse o bulício das multidões por perto, se alguém pudesse caminhar como antigamente se fazia, com silêncio e suspensão – seria uma experiência quase insuportável. Seria o inconcebível, como olhar direto nos olhos de Deus.

Polignano a mare

Talvez se possa dizer o mesmo de outros lugares (ou de qualquer lugar, se repararmos bem). Mas quando é que estamos em condições ideais de contemplação? Veneza, por exemplo: voltei para lá, por mais dois dias antes de pegar o voo de volta. É um local impossível, de tão mágico. Se não fosse exaurido o tempo inteiro pelas pessoas, pelo ruído em tantos idiomas simultâneos, também seria perfeito para uma viagem mística.

Il tramonto (Venezia)

Mas é verdade que o exercício espiritual pode ser tentado em qualquer parte. No avião de retorno (enquanto a França se tornava campeã na copa, para o festejo geral dos comissários) eu assistia a um documentário sobre os Rapanui e desejava ir para a ilha de Páscoa. Ou para Galápagos. Ou então (mais viável?), Patagônia. A ânsia pelo mundo não se acaba – mas, por enquanto, espero que um casal de pássaros aceite morar na minha varanda. Acompanhar o movimento deles tem sido igualmente um modo de voar.