Pode ser que um dia eu esteja tão habituada a esculpir meu próprio corpo com exercícios, que banalize o processo. Por enquanto, tudo me assombra. Por exemplo: num espaço de musculação – ao contrário do que supunha – as referências clássicas fervilham. A figura mais comum é a do discóbolo, simulada por qualquer homem que torça o tronco enquanto segura um peso redondo, sem arremessá-lo, mas indo e voltando no movimento (geralmente ao som de Lady Gaga). Em seguida, encontro muitíssimas reprises do Sansão: um atleta puxa por duas alças laterais, fazendo tanta força quanto o personagem prestes a demolir o templo dos filisteus.
Enquanto isso acontece, o instrutor sugere que eu use a máquina para “abdução dos quadris”, e por um instante imagino essa minha parte sequestrada por um óvni. A imagem do mutilante contato de quinto grau evapora quando passo ao exercício seguinte, um tipo de abdominal que me faz agir como um insistente autômato, ou um desses bonequinhos que se levantam por certo dispositivo de mola. Não sou a única: uma academia de ginástica parece, vista de longe, habitada por brinquedos que se põem a funcionar sob as mesmas engrenagens. Marionetes que levantam halteres, sobem escadas infinitas ou puxam polias, roldanas, sem parar: cada pessoa ensaia uma gestualidade repetida dentro do que lhe cabe nessa dança-teatro, onde cada estreia envolve o risco de ter um músculo estirado.
Todo o repertório de Dua Lipa toca, ao longo dos minutos em que um rapaz, como um joão-bobo, insiste em obsessivas inclinações de tórax. Perto dele, uma jovem muito séria açoita a corda naval, com fúria. Uma garota magrinha passa, transportando um peso de dez quilos junto ao peito, como se fosse um troféu. Outros figurantes andam com barras sobre os ombros, no mesmo tipo de esforço usado para carregar os blocos que construíram as Pirâmides no Egito e no México. Reconheço uma aluna remando como uma escravizada nas galés romanas – mas não paro. Estou também ocupada com minhas próprias situações catabólicas, e, agora que alguns sucessos de Madonna se fazem ouvir, eu me pergunto se já atingi a queima do ácido graxo ou se devo continuar mais vinte minutos na esteira.
Uma réplica do Popeye passa por mim, na companhia da Penélope Charmosa. Vão, muito confiantes, massacrar seus meniscos e artelhos – e, com essa mudança de elenco, percebo que já cumpri o meu horário. Amanhã continuarei perseguindo o metabolismo basal, mas agora me libero para esquecer que tenho um corpo e voltar à literatura, à mente.
Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)
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