Amigos, hoje, em homenagem ao aniversário de 287 de Fortaleza, saiu este meu texto no caderno especial do jornal O Povo. Cada convidado devia escolher um bairro da cidade como tema, e a mim coube o Mucuripe…
Sobre veleiros e cataventos
Nesta direção, a paisagem ficou sufocada por prédios, e apenas sobre o mar é possível ver as nuvens. Mas pelo calçadão caminham os turistas, ou correm, desinteressados de natureza. Em ziguezague, desviam das pessoas que vendem chapéus e óculos, oferecem comida, quadros e esculturas. Há os que expõem aos gritos sua oferta e os que pedem esmola por cegueira, aleijão ou velhice. Em dez minutos chega-se ao final do trajeto, bem perto das barracas de peixe, onde as jangadas descansam à tarde.
O Mucuripe, antigamente, era sobretudo o farol: pintado em cores claras, com as ameias delicadas – tão diverso daqueles faróis dos livros ilustrados, que na infância eu associava a gigantes, ciclopes com seu olho varrendo a noite em fachos poderosos. Havia também o porto, como ainda hoje – com seus guindastes e marinheiros, e a linha férrea anunciada numa curva, pouco antes do painel feito por Estrigas. Mas agora o farol se arruinou, entregue à própria carcaça feito um bote encalhado, casco de bicho marítimo, agredido por sujeira e crime. O bairro se reduziu, limitou-se pelo medo.
Eu circulo entre os extremos: à direita, hotéis blindados, com leões-de-chácara estufando os coletes à prova de balas. Do outro lado – ah! Vejo corpos de cães ou de bêbados, pedras na arrebentação, estátuas de Martim e Iracema. Um vendedor passa com três cocos em cada mão, preparando-se para um boliche verde.
Neste trecho – com futebol na areia – a vida parece lenta e salgada. Cinco homens num bote seguem a onda rotineira; mais perto da margem, turistas se arriscam nos caiaques. As embarcações levam nomes poéticos, Pele Morena, Catolé, Atlântico, Garopinha – e algumas anunciam venda (quem quer morar no mar?). Mas é aqui onde a gente repousa, nesta simbiose de madeira das árvores e barcos, com grupos deitados à sombra feito acampassem, velas recolhidas como grandes cortinas enroladas.
A claridade incomoda, conforme se avança ao encontro das armadilhas: cestos, redes que anunciam os metros finais da orla – barracas onde ficam homens de facão ágil, compassando o ritmo da morte; uns escovam tábuas vermelhas, o rosto crestado como as ranhuras das mesas. Num canto, dispõem os peixes em camadas, parecendo trapos – mas são seres ainda, pelos olhos e lábios abismados. As balanças pesam as postas, levantam as carnes em leque, feixes moles. O dedo de um comprador investiga guelras, experimenta o róseo do frescor, o avesso das escamas. De uma tigela, tentáculos se expandem, imóveis. E ainda há os camarões, as ovas que se amontoam como peças de um jogo. Os pombos desfilam em pose de elegantes senhoras, e há uma pausa nos cheiros, na náusea de vísceras expostas, pois ali se vendem frutas: mangas, sapotis, limões.
Retorno o passo em direção à Capelinha de São Pedro, com a cruz inclinada no teto, tímida e bela, livre de extravagâncias como as estátuas brutais que se veem no pátio de outras igrejas. Agora o Mucuripe fica tranquilo, indiferente à ganância que o rodeia. Muitos metros para cima, entretanto, talvez um magnata estrangeiro tome whisky no seu terraço. Ele está diante de veleiros e cataventos, mas não repara. Não enxerga os ciclistas, os meninos do surfe ou os gatos cochilando como esculturas, à sombra. Ignora as jangadas, caídas num desmaio lateral, e a bomba d’água com que os pescadores se refrescam. Seus goles são tão rígidos que ele nem vai se dar conta se, em vez do mar, um dia houver uma serra, um edifício ou uma extensão completa de areia, à sua frente.
Tércia Montenegro
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