O que elas querem

            Recentemente, uma situação lembrou-me de que ainda existe certa mentalidade bastante confusa nas mulheres contemporâneas. Numa reunião que era para ser profissional, de repente percebi várias colegas discutindo relacionamentos amorosos. Uma delas afirmou literalmente que estava procurando marido e, para isso, resolveu investir num curso de corte e costura. Juro que não entendi a conexão entre as duas coisas, mas creio que fui a única; todo mundo assentiu com a cabeça, e no minuto seguinte mais uma mulher se pronunciava, para admitir a sua “parcela de culpa” pelo fato de o marido ter se apaixonado por outra. Segundo ela, o desleixo das esposas, que passam a dormir de pijama de algodão, é fatal. Na mesma linha de raciocínio, uma terceira colega passou a dica de um “Viagra natural” (sementes de melancia, caso alguém queira anotar) e disse que aproveitaria sua licença de doutorado para também fazer um curso de culinária.

            O que eu me perguntava loucamente, durante o desenvolvimento desse tema, era algo muito simples: por que as mulheres continuam a ver as relações como um investimento? Elas planejam estratégias e armadilhas de sedução como se apostassem na bolsa de valores, com risco calculado e taxas sob vigilância. Isso me dá a sensação de que existe pouquíssima espontaneidade e cada gesto amoroso não passa de um estágio com vistas ao objetivo supremo: a conquista do parceiro. Essa conquista ocorre como um ritual ou um tipo de hipnose – quando o homem menos espera, está laçado, engolido pela serpente. À mulher, resta a fria função de manter seus feitiços e estratagemas, cuidando do casamento com o mesmo afã de um funcionário que preserva o emprego.

              Parece óbvio que tal mentalidade é um resquício da época (não tão distante) em que as mulheres eram sustentadas pelos homens e, de fato, por uma questão de sobrevivência, precisaram desenvolver suas prendas e dotes comportamentais, tornando-se verdadeiras atrizes dentro de casa, fingindo desde a paciência até o orgasmo. Mas agora que somos independentes e livres, qual a razão para essa atitude?  Apesar da autonomia material, trabalhista, geográfica etc – por que as mulheres parecem não se entregar de um jeito sincero às paixões? Por que continuam preferindo conquistar a serem conquistadas? E, sobretudo, por que acham que sua importância no mundo está associada ao fato de terem ou não filhos, de serem ou não capazes de “sustentar um relacionamento”?

                Existe um descompasso terrível entre o que as mulheres hoje são e o modo como elas se sentem. Revistas femininas e comédias românticas giram ao redor de assuntos repetidamente conjugais, para reforçar conceitos antigos ao mesmo tempo em que a sociedade exige atitudes modernas. Um paradoxo desses não pode ser digerido com facilidade – e talvez essa seja uma das causas do conflito íntimo de tantas mulheres.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

 

 

 

Brígida

Adoro descobrir a obra de artistas ao acaso (na verdade, sei que está tudo conectado, mas falar em circunstâncias fortuitas é um modo de a gente se tranquilizar). Então, outro dia catei o livro Passagem secreta, sobre a Brígida Baltar, na biblioteca. Foi uma chance linda de conhecer a série de performances poéticas que essa autora realiza. A “Coleta da neblina”, por exemplo, é uma das coisas mais delicadas de que já ouvi falar – e as fotografias que registram a ação são tão efêmeras quanto o tema, quase inacreditáveis.

A coleta da neblina, de Brígida Baltar

As formas plenas

Está em cartaz, no Palácio da Abolição, a exposição Luz, do Sérvulo Esmeraldo. No último domingo, tive a chance de vê-la com a presença do artista e de Dodora Guimarães, que nos levou a uma visita guiada. As peças que ficam ao ar livre, em especial Les feiulles mortes, são de uma delicadeza surpreendente, com a integração perfeita do aço à grama. Os cubos, os trapézios e as outras formas trefiladas criam possibilidades geométricas e desenhos de sombra no pátio – e a gente fica com vontade de voltar ali de noite, para ver as novidades que a luz dos refletores deve criar. Entretanto, essa é uma missão impossível diante do pesado esquema de segurança do espaço: certa funcionária daquele domingo, por exemplo, deixava claro (por sua fisionomia irritada) que a presença da arte num lugar de gestão política lhe parecia algo inconcebível. Os visitantes a estressavam como se fossem vândalos em potencial, e sua grande preocupação era fechar as portas de vidro antes das cinco da tarde, para encerrar a mostra. Imaginem então que um inocente tentasse penetrar nos jardins do Palácio sob o pretexto de ver as sombras das obras do Sérvulo, à meia-noite… Era prisão na certa, sob acusação de terrorismo!

Mas voltando às peças (que são o que interessa) também me encantaram aquelas dos espaços internos. Feixes, contorções, jogos de espelho e polimento estão ao lado de construções sólidas, compactas – as formas plenas, conforme Dodora citou. São peças cheias, com o aço imitando madeira, fazendo-se objeto e estátua a um só tempo, embora penduradas na parede.

Esta é uma exposição para se ver devagar, pensando nos mecanismos dos gestos e dos materiais, na brincadeira séria que o artista faz com os elementos de seu ofício.

Les Feuilles MortesSérvulo

Sósias

        Devo ter um rosto muito comum: essa é a única justificativa para o fato de ser costumeiramente abordada por desconhecidos, homens e mulheres a me perguntar se não sou parenta de Fulana, irmã, prima ou filha de não sei quem – e quando respondo com uma negativa, ficam bastante assombrados: “Mas você é a cara dela!” Suponho que qualquer mulher branca, de cabelos pretos e lisos, com sobrancelhas meio lobatianas, deva se parecer comigo, de forma que não dou importância a esses comentários. Na maioria dos casos, inclusive, a semelhança está numa relação singularíssima que o observador faz.

            O fato é que fisionomias próximas entre pessoas que não pertencem à mesma família são sempre algo curioso. Há quem encontre conforto nos traços de reconhecimento, por mais aleatórios que sejam. Lembro que certa vez um aluno se indignou porque eu havia cortado o cabelo: “Agora a senhora não está mais parecida com a Marisa Monte!” Ora, jamais supus que houvesse qualquer identidade física entre mim e a cantora – além do semiparentesco de nossos sobrenomes, creio que só compartilhamos da preferência pelo batom vermelho. Quanto à voz, desafortunadamente não pareço em nada com ela…

            Mas esse fetiche de fingir estar na presença de outra pessoa graças ao aspecto similar de alguém, eu própria já exercitei. Costumava ir a um salão de beleza apenas para ser atendida por uma pedicure idêntica à Clarice Lispector. Da primeira vez em que aqueles olhos oblíquos se curvaram diante de meus pés e reconheci as maçãs do rosto salientes, iguais às da autora, quase fugi. A custo consegui relaxar, mas passei todo o tempo lembrando frases que poderiam despertar a Clarice adormecida naquele ofício tão simples. Depois de comprovar que a moça definitivamente não era a escritora reencarnada, continuei frequentando o salão por brincadeira. Cheguei inclusive a levar amigas, que também se divertiram pensando que era a Lispector quem lhes lixava os calcanhares.

            Nos últimos meses vivo uma sensação parecida no restaurante onde almoço. Um dos garçons é absolutamente igual a Kafka, nos seus vinte anos. Quando vem me estender o cardápio, imagino que são os originais de um livro que me entrega em segredo. Creio perceber uma ansiedade nos seus olhos, nos pômulos largos e até nas orelhas um pouco grandes, que o corte de cabelo ressalta. Tenho vontade de lhe dizer que sossegue, pois será um autor reconhecido e na posteridade estará livre das maldições burocráticas que – tanto quanto a tuberculose – o perseguem. Ele, porém, tal como a pedicure clariceana, não me entenderia.

            Por distração, continuo buscando substitutos de artistas. Quero encontrar por aí o rosto de Tchékhov, de Nijinski ou Baudelaire: eles podem estar em qualquer canto, num consultório médico ou numa oficina mecânica. Quem sabe Villa-Lobos retorne no aspecto de um senhor impetuoso que acaba de entrar no mercadinho – ou Gustav Klimt seja agora esse farmacêutico gordo, que me vende umas aspirinas? Eu me manterei silenciosa mas contente por revê-los, esses sósias que dão à existência uma feição de eternidade.

 

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

Leo

A grande mostra de obras do Leonilson, em cartaz no museu do Dragão do Mar, provou para mim que certos artistas têm de ser compreendidos em sua trajetória, para serem devidamente apreciados. Leonilson, que antes eu enxergava como uma espécie de interventor irreverente, símbolo de uma geração mais do que qualquer outra coisa, ganhou uma profundidade inegável, após uma visita à exposição. Os seus desenhos me provaram inventividade e talento, e cada peça – enquadrada numa fase e num propósito – serviu para compor um texto artístico, uma inteireza de projeto estético. Atando os fios soltos, o documentário exibido numa das salas desmitifica o artista, ao mesmo tempo em que o valora: é indispensável para firmar o entendimento da mostra.

“Leonilson inflamável” segue até o dia 8 de setembro. Ontem saiu uma matéria no Vida & Arte a respeito. Quem não leu ainda pode conferir aqui.

Gato com diamantes nos olhos (Leonilson)

Gato com diamantes nos olhos (Leonilson)

Gato com diamante na barriga (Leonilson)

Gato com diamante na barriga (Leonilson)

Crônica de Jeri

            No meio da semana atípica – com feriado de Copa e protestos pelo país – desapareci com meu namorado por três dias. Jericoacoara é perfeita para quem busca fugir dos problemas ou da mídia. Eu bem sei o quanto preciso recordar que também sou bicho, corpo feliz a se esbaldar dentro de um lago, ofegante ao subir dunas ao sol, ou no mormaço preguiçoso de um sono calmo…

            Para chegar ao céu, entretanto, havemos de fazer sacrifícios. No caso de Jeri, o traslado inclui cinco horas de estrada, e a última delas acontece em pau de arara (com todos os solavancos inclusos), a partir de Jijoca. Na antiga vila de pescadores, hoje conhecida pelo turismo, o sossego ainda existe – pelo menos fora da alta estação.

            Recomendaram-me o passeio à Pedra Furada, mas, se não fosse pela paisagem, isso seria mesmo uma verdadeira furada. A pedra não é muito estonteante para quem já viu os monólitos de Quixadá ou as falésias de Canoa Quebrada, e as pessoas tiram um pouco da graça do local ao se fotografarem obsessivamente, em poses pseudossensuais. Mas a caminhada vale a pena pelas grandes elevações verdes que se abrem repentinas para o mar, e depois para um chão cheio de rochas e búzios. É preciso tomar cuidado na subida do retorno, que já deve ter feito centenas de paraplégicos – mas o pôr do sol compensa o risco da escalada. No resto do caminho, porém, pode-se tomar uma charrete – escolha abençoada no meu caso, pois alguns metros adiante fiquei a salvo de uma vaca parida, que estava justamente correndo atrás das pessoas que iam a pé, pela estrada.

            Não quis dispensar uma visita a Tatajuba, e soube como a vila velha foi coberta – ou subterrada, no dizer do guia local – há 50 anos, pela areia. Atravessamos de buggy uma área embaixo da qual existem pelo menos quinze casas de pescadores ancestrais. Conheci a Duna Encantada, onde os nativos percebem luzes e sons misteriosos. Um geólogo especializado na medição do movimento de dunas explicou-me o seu ofício, e um funcionário do projeto Tamar falou da época de nascimento das tartarugas, quando o caminho é bloqueado e o tempo de espera dos carros chega a duas horas e trinta minutos, até que a última tartaruguinha enfim rompa seu ovo e vá no rastro das irmãs, em direção à água.

            O ritmo lento também é a principal lição de Jericoacoara. Anda-se obrigatoriamente pela areia, pois não existe asfalto ou qualquer espécie de piso artificial nas ruas. É como se a praia invadisse restaurantes, lojas e casas (e não o contrário), forçando o transeunte a um passo vagaroso, imprescindível à contemplação. E assim deixamos rastros: cada pisada de adulto, criança ou cão contribui para o desenho movediço de sulcos e elevações – um tipo de mensagem extra? Realmente eu acredito que, com calma e consciência, cada criatura imprime as suas marcas. Efêmeras que sejam, elas estão aí, sobre o mundo.

 Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

Lembrança de Jeri

Lembrança de Jeri