Objetos transitórios

Já tratei da literatura de Siri Hustvedt em textos anteriores nesta coluna – mas preciso voltar à escritora porque recentemente ela me provou como algumas obras parecem nascer da mesma safra, são obras irmãs e, portanto, idealmente merecem ser lidas em sequência, ainda que não pertençam a um ciclo ou “saga”. O que eu amava e O mundo em chamas são, nesse sentido, livros gêmeos.

À primeira vista, o segundo apresenta uma estrutura bem diferente do primeiro, que desenvolve uma narrativa mais clássica. Entretanto, apesar de O mundo em chamas sugerir um dinamismo maior, pela narrativa que se distribui em diversas vozes (Hustvedt circula com maestria por diversos estilos) e pela mistura de textos, que envolvem fragmentos de diários, cartas, depoimentos ou entrevistas, as obsessões temáticas são idênticas. Harriet Burden e Bill Wechsler são protagonistas que produzem, ambos, instalações com caixas, exploram conexões intertextuais e buscam a própria identidade através da arte. Para os dois, seria válido o mesmo resumo: “(…) a trajetória de sua experiência artística se transformou em movimento na direção de uma ambiguidade crescente e sinistra”. (O mundo em chamas, p.93)

Apesar de às vezes Hustvedt parecer salpicar seu enredo de âncoras eruditas meio gratuitas, ela também constrói aproximações interessantes (no sentido de imprevisíveis ou estranhas) entre assuntos diversos, que vão se tangenciando pelas realizações artísticas dos pintores. Assim, em O que eu amava a pesquisa desenvolvida pela segunda esposa de Bill Wechsler, Violet, acerca das pacientes histéricas do hospício La Salpêtrière, vira inspiração para uma série de instalações sobre a histeria.

Essas mulheres, vítimas de uma medicina machista –, que até hoje interfere vorazmente nos corpos femininos – eram submetidas a vários experimentos, dentre eles a dermografia, o ato de escrever sobre a pele, induzindo inflamações que pareciam ostentar a assinatura dos médicos, como se eles de fato tivessem a posse dos corpos que tratavam. A posse do pintor sobre a figura que retrata é uma aproximação subliminar que o livro traz, mas, para além desse desejo de “assinar” determinadas alterações físicas, há um interesse no travestimento: uma das histéricas, Augustine, aparece na instalação de Wechsler usando um disfarce de homem, que teria o sido o modo com que ela fugiu do La Salpêtrière. Certamente, isso faz ressoar a ambiguidade dos primeiros quadros de Wechsler, quando ele pintou Violet em variados volumes, emagrecendo ou engordando sua silhueta de uma tela a outra. O título que conferiu a essa série, Autorretrato, indica toda a profundidade dessa fixação ambígua.

Uma terceira e última obra descrita em O que eu amava é inspirada na história de João e Maria, a predileta da infância de Mark, o filho que Bill Wechsler teve com Lucille, sua primeira esposa. Uma série híbrida, com telas e instalações, tanto parece recuperar a proposta deformante dos corpos (pois as crianças, conforme a narrativa do conto, são representadas no início como famintas e esqueléticas e, depois, como cativas da bruxa da casa feita de doces, engordando cada vez mais), como também sugere a síntese masculino-feminino no par infantil, João e Maria. Aliás, o próprio Mark, ao longo de sua adolescência complexa, reprisa esse jogo de travestimento, disfarçando-se de mulher em algumas ocasiões.

Menções à histeria surgem igualmente em O mundo em chamas, com a lembrança de Anna O., famosa referência nos estudos de Breuer e Freud. Essa personagem, como tantas outras mulheres silenciadas, rotuladas ou diminuídas ao longo da história, ressurge como um símbolo de poder. Afinal, O mundo em chamas é um livro poderosamente feminista, que afirma: “Toda artista mulher se depara com a propagação insidiosa do status quo masculino”. A protagonista Harriet Burden decide, então, demonstrar o preconceito de gênero na sociedade, fazendo com que suas obras de arte circulem sob o nome de três homens – que despertam o interesse imediato dos marchands e do público.

Os dois romances trazem reflexões sobre massificação, mercado e mídias, mas em O mundo em chamas encontramos um teor ainda mais direto de denúncia. Num trecho do diário de Harriet Burden, vemos como ela se entrega à paródia de um discurso curatorial: “A aporia na obra de X é alcançada por meio dos processos de autoindução para ausência. Os atos autoeróticos com origem sexual implícitos, portanto invisíveis, dão abertura a um colapso abismal, a fantasias de ruptura e à retirada do objeto de desejo”(p.50). Logo adiante, ela admite que “a fabricação dessa prosa pretensiosa e simulada” poderia matá-la, e outra personagem do livro acrescenta: “Críticos de todas as estirpes gostam de se sentir superiores a uma obra de arte; se ela os confunde ou intimida, é mais provável que a destruam”.

Há também a presença de personagens secundários e insanos – o Senhor Bob, um sem-teto que profere bênçãos estranhas e fala sobre móveis antigos possuídos por fantasmas, em O que eu amava, e o Barômetro, outro desabrigado, acolhido por Harriet Burden: um lunático que acreditava registrar, em sua cabeça, cada mudança na pressão do ar. Talvez sejam estes seres errantes, que atravessam os livros parecendo apenas repetir os cacoetes de seus delírios, uma verdadeira chave de leitura para a obra de Siri Hustvedt. Como as esculturas que Harriet produz para recordar o marido morto (os “objetos transitórios”, conforme ela as chama) – e como qualquer coisa ou pessoa, aliás, entregue à velocidade das experiências e, depois, ao apagamento das memórias, tudo vai passar. Tudo é efêmero – e a arte, nessa tentativa patética de vencer o tempo, sempre irá exibir um esforço ambíguo.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de agosto de 2022)

Siri Hustvedt

O corpo é sábio

Uma amiga certo dia me contou como, para fazer uma mudança necessária – admitindo que estava numa carreira odiosa e desejava seguir outro caminho profissional –, o seu corpo teve de sofrer. Ela passou quase dois anos sem conseguir andar, presa por inexplicáveis dores de coluna.

Outra conhecida, na mesma ocasião, revelou que suas crises alérgicas, violentíssimos espirros às vezes seguidos de urticária, não tinham qualquer motivo externo: poeira, pelo de cachorro ou determinados alimentos eram fatores inocentes. A verdadeira razão estava na presença de um parente invasivo, que periodicamente se hospedava com ela – e, durante todo o tempo da estada, não parava de criticar o seu estilo de vida.

Eu mesma, alguns anos atrás, demorei para perceber – ou confessar a mim própria – o quanto determinado relacionamento me fazia mal. Nossas conversas eram um desfiar de tristezas e problemas, e eu chegava a ficar desconfortável com minha tendência à alegria. Afinal, como podia gargalhar ao lado de um homem tão desgraçado? Era praticamente uma obscenidade, uma heresia, exibir felicidade diante de alguém com seus dilemas trágicos. E por mais que eu acenasse com uma ideia, uma opção de melhoria, ele balançava a cabeça: aquilo não poderia ajudá-lo.

Então tive uma enxaqueca terrível, que não se manifestou de forma evidente. O sintoma foi um escotoma negativo, algo completamente insólito para mim, e que me fez buscar a emergência oftalmológica e, depois, fazer exames com um neurologista. Lembro que, quando estava esperando o primeiro atendimento, o meu telefone tocou e eu, ainda meio cega, expliquei ao homem tristonho o que me acontecia. Ele desligou rápido, pois eu não teria tempo de escutá-lo.

Quando mais tarde lhe disse que os exames estavam normais, ele somente respondeu: Ah. E passou a falar do seu calvário.

Ainda insisti naquela relação (às vezes, a mensagem é tão óbvia, que a gente nem acredita: deve haver um pouquinho de mistério ali, não é possível!). Mas quando tive a segunda crise de enxaqueca, com o escotoma negativo bloqueando a outra visão, decidi que finalmente ouviria meu corpo. Ele me pedia para eu enxergar. Como podia ficar numa situação de sentir remorso por minha alegria? Eu decididamente não iria adoecer para me harmonizar com o destino de ninguém!

O nosso corpo é sábio. Reconhece os vampiros, os venenos. E também aponta a direção do prazer, nos conduz ao bem-estar – se deixarmos. Porque há quem prefira calar o corpo com substâncias, sejam quais forem. Em vez de ouvir a repulsa, o medo, quem sabe a vontade irresistível… a pessoa toma silenciadores de vários tipos, para enfrentar repetidamente uma situação insuportável. Resta saber: por que alguém insiste na autoviolência? Não consigo pensar em nenhuma armadilha pior.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

As fobias

Há mistérios que circundam os medos peculiares. Para certas pessoas, uma situação de terror pode ser desencadeada por um objeto ou situação trivial. De tanto conhecer fobias alheias, aprendi a respeitá-las – mas não deixo de achar algumas bem esquisitas. Às vezes, penso que a atitude pode ser confundida com uma excentricidade ou simples repulsa. A fobia clássica, entretanto, domina por inteiro o indivíduo, reduz seus nervos a frangalhos. É o que leva um sujeito musculoso a gritar feito um bebezinho, diante de abelhas; ou o que desespera uma dondoca, capaz de quebrar os saltos altos numa correria para fugir de um sapo absolutamente imóvel. A fobia é uma coisa íntima, intransferível. Há quem chore de pavor diante do mar, e não por medo das profundezas ou da violência das ondas, mas por intolerância à espuma. Aquele rendilhado líquido causa nojo em certas almas frágeis…

Houve aquela vez em que uma amiga entrou na minha casa e deu um grito ao ver a cabeça de ex-voto (que comprei por ser parecida com Drummond), na estante da sala. Ficou tão transtornada que não conseguia olhar para o objeto; pediu-me que o cobrisse com um lenço e depois fugiu para a cozinha, onde me contou que o seu pior medo era receber uma máscara mortuária pelo correio. Tentei argumentar que não tinha recebido a cabeça, mas a comprara no Mercado Central e, além disso, ela não fora esculpida no molde de nenhum defunto – mas a amiga estava nervosa demais. Tomou um copo d’água e inventou compromissos, para se despedir.

Outra colega me relatou o seu pânico por banheiras. De piscina, não tinha medo nenhum, conforme explicou. O problema eram as banheiras, esmaltadas ou cromadas, com hidromassagem ou sem, pés de garra ou não… todos os modelos lhe tiravam o fôlego e produziam calafrios. Um psicanalista poderia descobrir a origem dessa reação, mas eu apenas me espantei.

Minha história preferida, porém, é a mais bizarra. Trata da fobia que atacou uma pobre moça interiorana, recém-chegada a nossa capital. Em vez de se amedrontar com o trânsito e os aspectos temíveis de alguns monstros, digo, carros, a jovem apavorou-se com garrafas. Claro que ela conhecia garrafas de antes; é esquisito imaginar um lugar onde elas não existam. Mas foi em Fortaleza que o susto apareceu – e continuou. Até hoje a mocinha não pode ficar diante de uma garrafa, seja de que tipo for. É imediatamente acometida por tremedeira nervosa, com suores frios.

Os médicos sugeriram que o seu repúdio era uma resposta ao alcoolismo de um tio. Entretanto, a jovem jamais tivera grande contato com o parente, e também não fazia distinção quanto ao conteúdo das garrafas: contivessem vinho, água, suco ou absinto, sua atitude era idêntica. Outra prova de que a associação não era feita com o líquido e sim com a forma da garrafa, é que a moça podia beber em paz qualquer dose que lhe aparecesse servida num copo. Se, porém, visse a garrafa, começava o nervosismo. Por causa dessa fobia, a garota perdeu vários empregos: nunca pôde ser garçonete ou caixa de supermercado. Ela perdeu até mesmo o noivo, quando ele propôs levá-la a um boliche…

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Morandi