Vinte-vinte

Não tenho muito o hábito de balanços, para além dos meus quadris – mas senti uma necessidade de recapitular coisas deste ano, inclusive como exercício de agradecimento íntimo (e público agora, inclusive). Então, vamos lá: por que 2019 foi pessoalmente muito bom?

Eu fiz várias viagens, todas excelentes e intensas. No meio dessas expedições, o projeto Arte da Palavra, do Sesc, fez com que conhecesse pessoas e locais maravilhosos, que espero algum dia rever. Em fevereiro e março, o curso A ficção nas imagens, que ministrei na galeria Sem Título, foi uma oportunidade de reflexão rica, que me conectou ainda mais com os assuntos que discuto na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho (que você acessa aqui).

Reencontrei amizades queridas ao longo deste ano, compartilhei momentos com gente preciosa – e soube também cancelar quem vibra no negativo. Sei como é um privilégio alcançar discernimento para escolher as companhias de existência (nem todo mundo pensa a respeito, ou age nesse sentido). Eu me congratulo por isso.

Publiquei meu segundo romance, Em plena luz, pela editora Companhia das Letras: o livro ficou do jeito que eu queria; é um filhote do qual me orgulho e que me deu muito prazer de ser feito.

O ano acadêmico na Universidade Federal do Ceará foi excelente: completei uma década como professora efetiva desta instituição, e novamente as turmas entusiasmadas, com alguns estudantes admiráveis, revigoraram minha certeza de ter escolhido a carreira certa (como se algum um dia eu tivesse duvidado! kkk). Venci a burocracia acadêmica e consegui criar a disciplina de Análise do Texto Visual, no currículo do curso de Letras. Ao lado disso, o Visada – Grupo de Investigação do Texto Visual – completou 6 meses com alegria e força para novos projetos.

O Coletivo Colher seguiu também fazendo arte, acreditando no poder do embevecimento, tirando lições profundas da Natureza.

Tive tristezas em 2019, passei por um luto. Os próximos souberam e deram o seu apoio fundamental. Só a eles dedico agora estas palavras; a solidariedade é sempre algo íntimo. Sou muito grata.

De resto, novas ideias fermentam já, felizes. Continuarei desconfiando de quem utiliza a expressão ter que. Acreditarei cada vez mais na amizade, no afeto sem interesses escusos. Estarei perto de quem não se economiza para a vida, não sovina humanidade. Quanto às resoluções… um pouco mais de esporte para este vinte-vinte? Mais viagens, amor e risadas? Mais literatura, performance, arte? Evidente: quem duvida, não me conhece!

Coletivo Colher

 

Tokarczuk

“Sempre tive a impressão de que os pés são a parte do corpo mais íntima e pessoal, e não os genitais, ou o coração, nem mesmo o cérebro – órgãos insignificantes e supervalorizados. É nos pés que se encontra todo o conhecimento sobre o ser humano, é para lá que flui todo o sentido fundamental daquilo que realmente somos e de como nos relacionamos com a terra. Todo o mistério – o fato de sermos compostos de elementos da matéria e, ao mesmo tempo, estranhos a ela, isolados – jaz no contato com a terra, em sua ligação com o corpo. Os pés são nossos pinos da tomada.” (Olga Tokarczuk. Sobre os ossos dos mortos. Trad. de Olga Baginska-Shinzato. Ed. Todavia, p.15)

Foto: Coletivo Colher

As enfurecidas

 

 

 

 

Dois recentes lançamentos da Companhia das Letras – A Fúria, de Silvina Ocampo, e Prólogo, ato e epílogo, biografia de Fernanda Montenegro escrita em colaboração com Marta Góes – deixaram-me com a sensação de que há muitos mais elos que distâncias, entre diferentes artistas e linguagens. Essas publicações trazem autoras irmanadas na explosão de energia criativa, enfurecidas porque jamais se põem conformadas com o trivial ou o medíocre.

O volume de contos da argentina instaura um ambiente de crueldades, algumas bem sutis, outras nem tanto. Uma sensação de solidão e desamparo, uma quase-loucura feérica anima estas histórias – já a partir da ousadia na perspectiva do primeiro texto, intitulado “A lebre dourada”. Pelo tom de ocultismo (mas também associável a outras artes de disfarce, como o próprio teatro), assinalo este trecho: “As inumeráveis transmigrações que sua alma tinha sofrido lhe ensinaram a se tornar invisível ou visível nos momentos indicados, para haver cumplicidade com Deus ou com alguns anjos intrépidos”.

Silvina Ocampo realiza, neste livro, uma equivalência literária do que Leonora Carrington fez na pintura. Essa artista de origem inglesa (embora depois naturalizada mexicana) deixou textos publicados – assim como Ocampo, antes de ingressar na literatura, atuou nas artes plásticas. Em La casa del miedo: memorias de abajo, “se rompem os mundos convencionais, para deixar sair uma matéria completamente inesperada”, comenta o filho de Carrington. Temos a mesma impressão diante de quadros seus, como Y entonces vimos a la hija del minotauro ou Quería ser pájaro, que parecem mostrar igualmente o enigma que Ocampo exibe com palavras.

Nas memórias de Fernanda Montenegro reencontramos o tom macabro e quase surreal de algumas histórias de família – como a da tia Vicenza, que costumava ir à Santa Casa de Misericórdia para visitar a morgue da instituição, “onde rezava pelos cadáveres de indigentes ali abandonados” e onde certa vez reconheceu o seu marido, alcoólatra, que ela havia abandonado em Minas Gerais. Sabendo-se então viúva, a tia pôde casar novamente.

A atmosfera íntima dos costumes, dos rituais domésticos e utensílios, joias, lembranças, que passam, inquestionados, pelas gerações, lembra o cenário sufocante de contos como “A sibila” e “Os objetos”, de Ocampo. O que na escritora se realiza em transição de foco, perspectiva alheia do narrar – sob o ponto de vista de uma criança ou um animal, por exemplo – no teatro acontece de modo ainda mais ostensivo. Como esclarece Montenegro, a profissão milenarmente foi alvo de hostilidades religiosas, que consideravam heresia alguém querer viver um destino que não fosse o seu.

Foi essa “arte de se propor como um Outro” que levou a atriz, então ainda bastante jovem, à ousadia de pedir para si um papel de mulher diabolicamente sedutora, “para experimentar um não eu”. E comenta: “(…) porque o teatro, no fundo, é isto que todos sabem: um jogo. Mesmo no ensaio de um grande drama, havia uma hora em que a gente se olhava e pensava: ‘Meu Deus, eu não sou nada disso, o que eu estou fazendo aqui?!’, e tudo parecia dolorosamente cômico. Existia um humor fulminante em nós.”

Há inúmeros momentos engraçados nos contos de Ocampo, também. O enfurecer passa pelo entusiasmo, tanto quanto pela raiva. Nesse sentido, preciso citar uma obra homônima ao livro da contista – mas agora um espetáculo de dança. Fúria, da companhia de dança Lia Rodrigues, abriu a recente XII Bienal Internacional de Dança do Ceará, no Theatro José de Alencar, e ali, a dramaturgia de Silvia Soter mostrou toda a potência possível.

Algumas cenas pareciam se passar em hospícios; bem no início, alguém a arrastar um corpo pelo chão nos lembrava como essa é uma imagem classicamente funesta. Os gestos repetitivos, os espasmos e convulsões falavam de tortura, de abusos e castigos, submissão e crueldade. Os bailarinos ora se organizavam no cortejo lento (parecendo, pelas cores e formatos, simular um movimento peristáltico), ora se juntavam em grupos, executando estranhos rituais, com diversos modos de rastejar e contorcer. O desnudar-se era violento: alguém tirava as roupas do outro como o se destripasse, e as próprias roupas tinham cor de mucosa.

“É a ponte com o imprevisto, o improvável, o absurdo que, muitas vezes, nos leva a renascer. No palco, atingir o impensável é fundamental”, diz Fernanda Montenegro, quase no final de suas memórias. E exatamente essa exasperação encontramos no espetáculo da companhia de dança Lia Rodrigues. Uma fúria contra tantos episódios que foram institucionalizando o crime na política brasileira. Contra os escândalos e as perseguições. As injustiças, as impunidades. A mentira e a celebração da estupidez.

Recordemos inclusive a capa da revista Quatro cinco um, que em sua edição de outubro passado trouxe Fernanda Montenegro posando como bruxa, em cima de uma pilha de livros. Diante dessas fogueiras que ameaçam a cultura ou o conhecimento, ouçamos a voz poderosa das artistas que não por acaso chegaram aos 90 anos com esplendor: Silvina e Fernanda nos falam de outro fogo, insubmisso, que não se pode apagar dentro de nós.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho, na edição de dezembro de 2019)