Teoria da Teia

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Neste período de confinamento, não sei se pelo motivo de estar mais atenta – dedicada às minúcias do espaço doméstico, em vez de me perder na dispersão das paisagens –, tenho encontrado inúmeras teias. E não me refiro às redes virtuais, estruturas tecnológicas que, com um misto de consolo e desalento, trazem uma ilusão qualquer de proximidade (do mundo, das pessoas amadas, sim – mas também de muito conteúdo nocivo). Estou falando em algo bem mais simples e pouco problemático: teias de aranha.

Aranhas tecem moradas no topo dos meus armários, ficam suspensas de modo fantasmagórico quando passo e as encontro, em aparente flutuação. Num canto de parede, também é provável descobrir seus vestígios; às vezes consigo acompanhar suas operações de caça e alimento.

Surpreendo aranhas dentro do meu carro, quando – para a ida semanal ao supermercado – me lembro dele. E, se penso na Teoria da Catástrofe, que menciona mudanças bruscas e súbitas, suponho que possa existir, em alguma revista acadêmica de secreto prestígio, um trabalho sobre a Teoria das Teias, mas numa proposta longe de modelos econômicos…

Ora, antes atribuí simplicidade a este tema, porém agora me corrijo. As aranhas são muito complexas. Elas criam arquiteturas invisíveis, moram em autocasas diáfanas; parecem, por excelência, seres circenses – embora, pela discrição, avessos a espetáculos. Elas trabalham onde tudo se aquieta, matam por armadilha e não por ataque (o que parece menos cruel, pois numa armadilha a própria vítima, distraída, de algum modo escolhe o seu destino). São minuciosas e persistentes… e amam a elegância, com certeza.

Aranhas desenham, bordam, praticam matemática e design. São criaturas de porte poderoso: basta admirá-las na escala da escultura Maman, de Louise Bourgeois. Desde sempre me fascino por suas redes translúcidas, feixes tão perfeitos nos caminhos aéreos. Uma brisa os transforma em pula-pula de brinquedo; imóveis, são ornamento para os ângulos no muro, tanto quanto os paninhos rendados que uma avó põe sobre a mesa.

Certa vez, numa viagem a Cococi (cidade-pioneira dos isolamentos, olha só!), ao entrar na igreja e buscar assento num dos bancos, senti a resistência de uma longa teia que me barrava o caminho, como um tipo de algodão-doce finíssimo. Lamentei a destruição involuntária do material e me senti uma invasora. A igreja estava ali para os insetos e as aves; eles que davam vida ao lugar – o que queria eu, estouvada visitante?

Trabalhar em silêncio e com capricho; ser criativa a cada salto. Eis a lição aracnídea. Mas há outras, muitas outras, nesta teoria: uma teia cria conexões, alonga (fisicamente mesmo) os elos. E quando se cai em sua armadilha, a vítima vira múmia, antes de ser deglutida (atenção agora para as teias virtuais). Essa estrada tecida é um tipo de labirinto; a aranha reconstrói o cosmo. Ela imita o olho. O diamante. A corola.

A aranha é uma explosão que levita.

Aprendamos com sua existência.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

Formas de dançar

“Formas de dançar” faz parte de uma série fotoperformática mais ampla, que discute a situação da mulher em várias circunstâncias, com o seu corpo-alvo de tantas violências sociais. Durante a quarentena provocada pelo coronavírus em Fortaleza, este trabalho – produzido em 2 de abril de 2020 – fez com que eu, na solidão de minha casa, pudesse me conectar com a dor e a história silenciosa de muitas outras mulheres pelo mundo.

A partir de hoje estas imagens participam da exposição virtual Arte em tempos de COVID-19, promovida pelo Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, em seu instagram.

 

Ficar consigo

Graças à atual pandemia, estamos à beira de um confinamento estilo Decamerão – com a diferença de que as pessoas não vão se dedicar a contar histórias umas para as outras; a quarentena se dará diante de uma tela de computador ou smartphone: todos passivos, recebendo “conteúdo” sem parar. Entretanto, seria possível tomar este período como uma chance de aprendizado, e não de queixumes? Vamos experimentar.

Quem encara a perspectiva de um isolamento doméstico na forma de um martírio tem aí um sintoma grave. Se você não vive tranquilo em casa, pode achar preferível passar o dia na rua, com estranhos, a suportar o inferno familiar. Mas deveria ser um direito inalienável, a garantia de paz no próprio lar, e embora eu saiba que toda mudança envolve uma logística que ultrapassa a simples vontade, sem um primeiro passo não se avança nada.

Imagine que felicidade, acordar sabendo que entre suas paredes o dia será pacífico e harmonioso! Criar essa zona de conforto e proteção é também uma escolha; nunca vem de modo fácil, mas sempre recompensa. Sobretudo agora, quando todos devemos “viajar para dentro”, no sentido de que as novidades se encontrarão nos espaços internos, na casa e no espírito. É um exercício de atenção mais acurado, descobrir singularidades em local tão conhecido que se tornou opaco – mas as surpresas existem o tempo inteiro, se permitimos. Meditar, por exemplo, é encontrar em si um outro ritmo, um corpo mais denso, vibrante, energético.

Dançar, cozinhar, ouvir música… todas são formas de achar beleza e alegria. Que tal passar uma noite à luz de velas, para descobrir que a casa vira um quadro de Caravaggio ou La Tour? E desenhar, com o prazer que uma criança tem nisso (às vezes com igual qualidade técnica, não importa). Rever antigas fotografias. Arrumar aquela gaveta. Ler, escrever, óbvio!

Mas nem todo mundo está preparado para a própria companhia – e esse dado é o mais espantoso. Como assim, as pessoas preferem ruídos e confusão, para não ouvir a si mesmas? São dependentes da presença alheia, do sentimento de massa – porque, enquanto estiverem integradas num grupo, não correm o risco de olhar o seu abismo solitário. Mas essa epifania, ainda que dolorosa, é uma experiência necessária para que a gente se veja em profundidade. É o passo fundamental para se autoconhecer, contemplar a imagem íntima: o rosto cru da identidade.

Imagino que, para certas criaturas, seja intolerável a feiura do seu caráter, a mesquinhez das suas intenções diante da vida e do mundo. Por isso, depois de uma rápida espiada no monstro, elas voltam a trancá-lo num porão emocional e, para abafar seus rugidos, seguem uma compulsiva rotina de alienação. Podem levar anos nesse comportamento, convencidas de que o seu verdadeiro eu se calou ou morreu, e só restou o eu social, midiático, perfeito. Mas essa naturalmente não será nunca a verdade, conforme já nos ensinava Oscar Wilde, através de Dorian Gray.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

A sabedoria das paisagens

Foto: Tércia Montenegro

Há mais de dez anos conheço Ana Miranda, embora a sua literatura eu conhecesse bem antes. Depois que passamos a conviver, entretanto, acontece uma coisa mágica quando leio seus livros: escuto a sua voz percorrendo as linhas. O seu timbre, tornado tão familiar, acompanha a história inteira, num embalo doce e secreto.

Neste volume de crônicas, a melodia de Ana Miranda me traçou vários temas. Levou-me para perto de outros escritores, como Rachel de Queiroz, José de Alencar, Natércia Campos… Mas também me fez passear pela sua memória mais pessoal. Este livro é um verdadeiro retiro que se vai construindo com pistas biográficas: o local de nascimento da autora, suas origens familiares, seus gostos, sua prática literária. Há reflexões sobre os costumes na capital e no interior, retratos do Nordeste, descrições de um tempo perdido, pinçadas de velhos cronistas – e aqui Ana ativa o espírito pesquisador que a fez brilhar pelos romances de veio histórico.

Há ainda os textos de humor, dentre tantos voltados para a poética, acentuando a beleza de palavras e superstições, a observação sobre nomes de flores e personagens, anagramas, lugares, hábitos… cada crônica é um mundo, são muitas harmonias que esta obra dispõe. Percorrê-la é se irmanar com essa paixão que a própria Ana Miranda tem pelos livros. É se tornar mais sábio, com as “asas invisíveis” que a literatura inventa, para nos arremessar em profundas viagens.

Tércia Montenegro (para as “orelhas” do mais recente livro de Ana Miranda, Histórias contadas pelo vento)

Portinari e suas poéticas

A mim sempre emociona, ver nascerem as personagens. Flagrar os bastidores do processo artístico – encontrando as fases iniciais de um projeto, com suas hesitações, experiências provisórias, testes – costuma ser uma lição de humildade e talento. Ninguém chega ao seu melhor sem passar por exercícios – e, ao mesmo tempo, quando o criador tem verdadeira perícia, um rascunho de sua obra já traz a marca do gênio. É um privilégio ter acesso a manuscritos, esboços, notas que mostram o trampolim de uma ideia, o lampejo – seguido por alguns recuos, ajustes… até que, de repente, o artista achou o ponto profundo, o caminho dentro do qual seguirá, firme e feliz.

A exposição sobre o universo gráfico de Portinari, em cartaz na galeria Multiarte, de Fortaleza, abre ao público a chance de viver esta experiência. Mas não somente adentramos a intimidade criativa do pintor: pelos seus desenhos, percebemos a vasta multiplicidade técnica que ele dominava.

Alguém que percorresse as seções desta mostra sem atentar para qualquer notícia, digamos, um visitante (nesta hipótese que agora invento) distraído a ponto de sequer saber que o mesmo autor – Candido Portinari – unifica todas as obras, essa pessoa facilmente poderia sair com a sensação de ter visto uma coleção de vários artistas. Porque, no fundo, são muitas as fontes que Portinari aciona, na complexidade de seu(s) estilo(s). A sua poética é híbrida, plural – conforme o tema, a fase, a matéria plástica.

Há cenas de ação agrícola, ciclos do trabalho – e os famosos retirantes, os despejados da terra e da sociedade. Os estudos para quadros mostram o treino (somos convidados a presenciar um ensaio antes do espetáculo), o artista manipulando seus temas preferidos. Figuras em reza, crianças desfalecidas: muitos corpos disformes que se apresentam quase como fantasmas, máscaras de dor. Este é o Portinari mais conhecido – e que prazer acompanhar o palimpsesto de seu processo, o surgimento de suas criaturas pelo traço!

Eu me detenho diante dessas mulheres que seguram crianças mortas: levam os corpinhos rijos logo abaixo dos seios – os filhos são a trava a lhes barrar o gesto, um corpo que elas não oferecem nem agarram, apenas sustentam, exatamente ali, horizontalmente sob o peito. Quando eles forem tirados delas, certamente o seu movimento será o de levantar as mãos vazias para o alto. Desespero ou prece?

Há uma partitura em Portinari.

Mas há ritmos inesperados, muitos, nesta exposição. E o novo chega ao máximo impacto, pela mudança estilística.

Na série Israel, encontramos um desenhista viajante, voltado sobretudo para a rapidez do registro, o reconhecimento do território. Vejo o traço veloz desta pequena imagem: árabe e israelita. Logo depois, na seção dedicada às ilustrações, encontro a multiplicidade com que Portinari abrilhantou, por exemplo, livros de Graham Greene ou André Maurois. Posso apenas reconhecer a mesma dança convulsiva, aplicada antes na paisagem de Cafarnaum, e agora investida na rispidez das Figuras (de 1954, em grafite), feitas para A cidade assassinada, de Antonio Callado. O restante da seção é um mistério mágico.

Os três desenhos surrealistas de 1936, feitos para poemas de Manoel de Abreu, trazem uma densidade lenta em sua textura aveludada, com o sfumato que indica a destreza no uso do carvão. E, se parece inesperado encontrar Portinari praticando surrealismo, mais adiante – nos Estudos para Painéis – juramos encontrar um trecho de Guernica numa peça de 1942, em nanquim. Saímos desta influência de Picasso para, bem perto, flagrar dois desenhos de animais – um tamanduá e uma corça – que se diria pertencerem ao caderno de um artista-viajante do século XIX.

Tudo isso é Portinari.

E ainda as cenas religiosas, com este belo Profeta, que me captura pela expressão de firmeza viril. Mais discreta, descubro a avó, Nonna, numa cabeça feita em malha de riscos. Seu traçado é semelhante ao de outra cabeça – este Rosto de mulher, de 1960, que parece surgir de um novelo, com os leves pontos de cor do lápis. Estamos diante de figuras familiares, e esta sensação foi bem premeditada. Dentre tantas técnicas, o artista sabe à perfeição o que usar, segundo o seu intento dramático.

Mas eu me rendo por completo é com esta pequena Mulher chorando, de 1955. O que temos, por um lado, parece tão pouco: uma postura debruçada, que se esconde sob os cabelos, simples feixes verticais a escorrerem por um corpo do qual praticamente se veem somente os pés, esquálidos. Nada poderia ser mais anônimo do que este vulto feminino em desespero – e, no entanto, nada é mais potente como tradução visual de um sentimento, todos os sentimentos pelos quais as mulheres ao longo dos séculos choraram.

Fecho os olhos diante desse quadro, para buscar uma forma de silêncio. Ali, no meu escuro interno, ainda o tenho. Ele está comigo inclusive enquanto termino este texto.

Portinari persiste.

 

Tércia Montenegro (texto produzido para a galeria Multiarte e publicado também no site dela)

Visada – Grupo de investigação do Texto Visual

Ainda aproveitando o dia da Fotografia, declaro o início oficial do Visada – Grupo de investigação do texto visual, que terá suas atividades no curso de Letras da UFC. Agradeço ao Coletivo Colher pela bela logomarca!

Deixo abaixo maiores informações.

VISADA – Grupo de investigação do Texto Visual

Coordenação: Profa. Dra. Tércia Montenegro Lemos

Encontros às segundas-feiras, de 11h50 às 13h20, a partir do dia 26 de agosto.

Critérios de participação:

– ter interesse por pesquisa e/ou produção de textos visuais

– ter cursado a disciplina de Semiótica ou de Teoria da Imagem Fotográfica

Interessado(a)s devem se inscrever, enviando um email para grupovisada@gmail.com

Elza e Elke

O que pode haver em comum entre uma fotógrafa paraense e uma artista visual paranaense, duas mulheres de gerações e mídias diferentes? No fundo, tudo se tangencia e se encontra – de forma que decido reunir aqui as obras de Elza Lima e Elke Coelho. Até porque eu as conheci no mesmo período, e isso já é sinal de convergência, num foro íntimo. A visualidade e o trato com o espaço são outro aspecto semelhante entre elas, embora surja como sutileza, que só se percebe depois.

Elza Lima veio ao Museu da Fotografia de Fortaleza para uma palestra e um curso, “A cor do tempo”. Trouxe suas experiências em viagens e percursos fotográficos, com simplicidade e bom humor perfeitamente sintonizados com suas imagens. A série do círio de Nazaré (ou de outras tantas procissões) mostrou seu interesse pelo registro do “antes”: o preparo, os movimentos prévios das pessoas que ainda não se vestiram completamente para um ritual. Essa é a vida cotidiana prestes a ficar suspensa por um acontecimento; é a cena à beira do futuro.

O menino que mergulha no lago, tendo deixado as asas de anjo na margem; as garotas se amontoando numa pose desengonçada, anjinhos também, prontas para um desfile – apenas individualizadas pelos pés, em sandálias ou botinhas da Xuxa… Elza Lima fotografa desde 1984. Percorre sobretudo a Amazônia, documentando uma rotina sobre águas. Na série “Uma alegria feita manhã”, de 2010, em cores, temos os momentos prévios ao círio de Caraparu, no município de Santa Isabel. Marujos e anjos alvoroçados em torno do andor preparam a viagem de barco até a capela onde será celebrada uma missa.

As fotos parecem pulsar com os ruídos, o formigamento daqueles instantes: pressentimos risadas, chapinhar de pés no rio, gritos de crianças. Nas séries mais antigas, em pb, o mesmo elemento líquido é constante. Meninos emergindo, espumosos como figuras míticas; mulheres tão serenas, com o cabelo longo e liso flutuando; homens que seguram peixes como troféus. Tudo isso é o estilo marcante de Elza Lima.

Mas em algumas de suas imagens mais recentes – pelo trabalho com transparências, pelo instável das cores, que parecem bordadas em verde, azul e cinza nos reflexos da vegetação dentro d’água – vemos um diálogo estreito, agora, sim, com a obra de Elke Coelho. É essa exploração do onírico que as motiva, as formas que se dissolvem ou vaporizam, transcendem a matéria.

Soube da segunda artista por email; uma delicadeza de mensagem chegou a mim, lembrando que nos tínhamos visto pessoalmente em Londrina, mais de dez anos atrás: ela era monitora do Museu de Arte desta cidade, e eu viajava com o grupo teatral Cabauêba, para apresentar no festival de Londrina a peça Linha Férrea, baseada nos meus contos. Pois Elke, nascida em 1983, desenvolveu uma carreira como professora e artista; em 2018, lançou o livro-objeto Coisas de Iracema, que depois ganhei pelo correio. O exemplar é um primor: composto por páginas em lâminas soltas, alterna desenhos e textos curtos, sobre a personagem do título.

O perfil dessa Iracema, tão diferente da figura alencarina que impregna os cearenses, fez com que minha leitura fosse singular. Mas a carga simbólica não é a mesma no resto do país. No Paraná – ressaltou Elke, numa resposta às impressões que lhe mandei – esse nome tem sabor de estranheza, é quase anacronismo.

Num Brasil tão amplo e sujeito aos cruzamentos de culturas e destinos, os museus confirmam a sua habilidade de criar paixões. Também Elza Lima, por suas fotos em exibição, nos leva para outras épocas: seus registros falam de ancestralidade e essência. As duas artistas são igualmente atentas às minúcias, à relevância dos detalhes – e há partículas que se revelam tão vastas, sob um novo olhar! No portfólio de Elke Coelho encontro excertos expositivos: a lâmina de barbear que ganha uma nova perspectiva, as bolinhas de pingue-pongue, as esferas… objetos parecem se organizar num mundo próprio, e os vazios têm poder de ameaça. Sinto que preciso voltar a várias cenas para saber exatamente o que elas me incitam. Existe aqui um aprendizado perceptivo, que se faz aos poucos.

As preferências de Elke Coelho pelo arranjo repetido, pela mistura de palavra com imagem, são ressaltadas em sua tese de doutoramento, defendida na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Área de risco traz os liames entre vida e prática artística. Conhecer um pouco dessa escrita ampliou minha compreensão.

“Tornar tangível” talvez seja a principal tarefa a que Elke Coelho se atém. E – assim como sua personagem Iracema – ela traz “como dom imergir até mesmo em superfícies”. Suas experiências de infância no campo de algodão, suas obsessões com os acúmulos e os desertos, assim conciliados numa estética, atingem alto grau poético no texto-testemunho. Mas a pesquisa vai além: faz com que o leitor mergulhe no ateliê, nos processos dolorosos da criação. A arte é como essa “grande e delicada ferida”– e eu saio da leitura convencida de que ela também é um mundo, cada vez mais expandido.

Tércia Montenegro (texto publicado na seção Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho. Pode ser lido também aqui)

 

 

O que não se esconde

Coletivo Colher

Hoje comemoramos um ano do Coletivo Colher, e há vários motivos de alegria! Nossa parceria artística trouxe grandes conexões, êxtases e êxitos diversos. Expusemos uma série fotográfica na Casa de Cultura Alemã, fizemos ações urbanas e aquáticas, algumas que inclusive saíram do país (caso da performance Zona B), e – o mais importante – os projetos continuam a crescer! Divulgamos agora este recente trabalho, O que não se esconde, para marcar nossos festejos e fazer um agradecimento retrospectivo aos envolvidos, com destaque para os queridos parceiros Helder Weiss e B. Ayres, que oxalá possamos logo rever. Uma lembrança especial vai também para a performance revisitada da obra de Sophie Calle, na semana passada! Vida longa para nós!

Brennand

Exatamente um ano atrás eu estava em Recife. Em meio a várias reflexões e compromissos acadêmicos, acionei o antigo desejo de conhecer a Oficina Brennand, no bairro Várzea. A experiência foi mística, não tenho como definir de outra forma. Revejo agora fotografias desse passeio e me transporto de volta para lá. Reencontro as estátuas protetoras, os bichos: um mundo de fábulas íntimas que eu percorria, como se entrasse por baixo das pálpebras de Brennand e pudesse conhecer as histórias que ele sonhou durante décadas, para depois nascerem petrificadas. Eu dava voltas, contornava os objetos, tornava a um e outro, comparando. Queria adivinhar a experiência geradora, o impulso antes da obra, o símbolo do cisne, do jaguar, do pássaro rompendo o ovo – que vontade precedeu cada imagem?

E os textos (sim, eles também estavam ali, nas paredes, tão plásticos quanto os outros seres): “Não interrompam este silêncio. Não interrompam este sonho”. Fragmentos de Ariano Suassuna, de Joseph Conrad ou dos Eclesiastes criavam estações – paradas necessárias para deixar o pensamento ecoar.

Há portais nos jardins, painéis de cerâmica – várias edificações, refúgios para diferentes propósitos do autor. No prédio principal se encontram as obras-primas em escultura, com insistentes formas eróticas. Cabeças inclinadas sugerindo falos, gigantescos elementos priápicos a compor tantos personagens – Galatea, Hiera, Halia, Oreste, Calígula, Édipo, Vênus, Semíramis. E as figuras femininas, fendidas e férteis, surgem no esbanjamento daquela orgia estética. Muitas referências clássicas, históricas ou míticas, mas cada uma vista sob esta perspectiva: o festejo do corpo. A abundância vital.

Não tive dúvidas de que a longevidade do autor está ligada a esse tipo de celebração. Depois de passear durante horas pelo espaço, eu o encontrei – e ali, na figura daquele homem alto, de 95 anos, de repente vi concentrados todos os ancestrais, Rembrandt, Monet, Balthus, Picasso… Foi como se eu entrasse no olho do Aleph, ou me empoleirasse em frente à Máquina do Mundo, levada por espirais de tempo para a frente e para trás, condensadas num minuto. Depois tudo se resumiu numa frase: “Ele não se submeteu”, surgida enquanto eu cumprimentava Francisco Brennand e recebia o seu presente – o Diário em quatro volumes (O nome do livro) que ainda hoje continuo a ler. A frase era uma espécie de lema para compreender a Oficina, a produção em esculturas e pinturas, os temas, os estudos… A persistência de um criador que constrói o próprio mundo: isso representa o mais profundo pacto que se pode ter com a arte.

Mas o turista em Recife deve prestar atenção para não confundir a Oficina de Francisco Brennand com o Instituto Ricardo Brennand. Este último apresenta-se como uma coleção montada por um industrial parente do artista. O espaço tem um contexto muito agradável, cercado pela mata atlântica. Mas quem busca a fruição típica dos museus sai de lá horrorizado: as peças estão dispostas sem qualquer coerência cronológica ou estética, sem legenda, seguindo apenas o gosto pessoal do proprietário ou alguma anedota de sua vida, que um esforçado monitor buscava me esclarecer.

O visitante deveria ser advertido de que o lugar foi concebido como um depósito, ou como a extensão da casa de alguém. Quem paga o ingresso pode espiar (mas não aprender, como é uma função dos museus). Sim, espiamos um acúmulo de obras; genuínas ou reproduções, estavam todas indistintamente juntas.

No jardim, uma escultura de Botero formava grupo com um rinoceronte de outra autoria e época – e o motivo daquela junção era o material comum, de que eram feitas as peças! Numa das salas, um tapete de Gobelin ficava em frente a uma mão do ateliê de Rodin. Um Bom Jesus da Agonia, do Barroco mineiro, bem como um arco de igreja do mesmo período, fazia a gente pensar na história dos trajetos, saques, revendas e complexas transações comerciais que as obras sacras – não apenas do Brasil – já sofreram. E, para ir a um local bem distante, havia ali também a China, representada por um gigantesco e terrível navio feito de marfim (quem puder, pense no tamanho da matança que uma obra assim representa).

A sala das figuras de cera, mimetizando em paralisia o julgamento de Nicolas Fouquet, juntamente com o castelo onde estão guardadas as armas – de uma variedade abominável, dentre canivetes, sabres, cimitarras, pistolas – trouxe um toque curioso à visita, que desse modo não me proporcionou somente angústia. Mas eu precisei passar um bom tempo em meio às plantas para reencontrar um eixo de tranquilidade. A grande beleza do Instituto é de fato a natureza circundante; na Oficina, ao contrário, tudo é primoroso e interessante. Não fica difícil fazer uma escolha.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho – edição de março de 2019)