Olhe com atenção

No belo filme A câmera de Claire, há uma passagem em que a personagem-título, interpretada por Isabelle Huppert, responde ao motivo pelo qual fotografava: “Porque o único jeito de mudar as coisas é olhar para elas novamente de modo bem devagar”. Penso agora que, num período de quarentena, essa estratégia pode servir como alívio, ou até como solução.

Olhar com atenção: de fato, sem contar a prática fotográfica, creio que só fiz isso – com espontânea intensidade – na infância. Toda criança tem curiosidade pelo mundo; tudo, em sua experiência tão tenra, parece inverossímil e, por isso mesmo, possível. Crianças se espantam continuamente, sobretudo as muito pequenas, que ainda não falam; portanto, ainda não receberam modos de rotular o mundo. Para elas, as formas e superfícies transitam em fluxos mágicos. Talvez tenham ilusões óticas ou vejam fantasmas – o seu assombro permanece constante, pois não sabem discernir as fronteiras do real.

Mas depois… ah, depois o crescimento é uma perda de ilusões. As coisas se fixam nos lugares, cabem nos aprendizados. A própria identidade parece estável – e daí a pensar que uma situação se torna imóvel, um ser se paralisa num estado qualquer… eis um mero passo. As ilusões da infância são substituídas por enganos, juízos simplistas: o equívoco-mor de achar que algo “vai ser sempre assim”.

Se voltarmos a observar o mundo, aprendendo a apenas estar na experiência de um espaço, notamos que nada permanece. A luz muda, as partículas de poeira dançam aqui em raios solares, mas ali já são invisíveis. Há uma sombra fina nesta parede, uma silhueta cuja companhia durou um segundo. Os ruídos da vizinhança, junto com os pássaros, criam timbres familiares – mas não quero pensar em sua rotina, não quero enfiar tudo no saco “sons familiares”. Quero perceber o grito periódico sem classificá-lo com palavras: “canto do galo”, “sirene” ou “buzina”. Quero apenas o grito, e quero escutá-lo como se não soubesse o que ele é, de onde vem, e sequer soubesse que o que faço é escutar.

Quero somente estar disponível à vivência. Isso, que talvez alguém entenda como um tipo de meditação, é na verdade um regresso. Já fomos entregues e confiantes, sem qualquer defesa (e sem pavor por essas circunstâncias). Depois, apenas depois, aprendemos a lutar, a produzir, a fazer coisas úteis, fazer coisas também belas, e aprendemos o medo, a preocupação, a raiva, a vingança, ativamos emoções e crenças coletivas, agimos conforme a sociedade, praticamos obediência ou rebeldia…

Mas agora eu descubro que é possível retornar – visitar, nem que seja por um instante, o estágio sutil da existência primeira. Simplesmente sentir, sem buscar um nome, uma expectativa, um pensamento. Trata-se de estar e observar. Olhar com atenção me parece a prática mais vital.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

Formas de dançar

“Formas de dançar” faz parte de uma série fotoperformática mais ampla, que discute a situação da mulher em várias circunstâncias, com o seu corpo-alvo de tantas violências sociais. Durante a quarentena provocada pelo coronavírus em Fortaleza, este trabalho – produzido em 2 de abril de 2020 – fez com que eu, na solidão de minha casa, pudesse me conectar com a dor e a história silenciosa de muitas outras mulheres pelo mundo.

A partir de hoje estas imagens participam da exposição virtual Arte em tempos de COVID-19, promovida pelo Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, em seu instagram.

 

Jim Sumkay, de Liège

Uma parte do meu recém-lançado romance Em plena luz (Companhia das Letras) se passa em Liège, cidade belga onde vivi durante um semestre. À parte o fato de ser a terra natal de Georges Simenon, o local não prometia grandes descobertas culturais – mas logo encontrei ótimas surpresas. Os excelentes museus e cinemas, além da Biblioteca Chiroux, fizeram a minha felicidade na época. Entretanto, dentre tantas boas lembranças, a mais especial talvez esteja ligada a um episódio de reconhecimento estético que me impressionou profundamente.

Aconteceu assim: na primeira semana da estada, eu – durante uma visita ao Curtius Museum – encontrei uma exposição que trazia fotos e projeções fotográficas de “coincidências visuais”. As imagens eram muito inteligentes e divertidas, compondo situações irônicas pelo diálogo entre texto visual e verbal. Por exemplo, numa das fotos viam-se três policiais de costas passando por uma rotisserie onde havia a placa “Les trois poulets”, como se fossem aqueles agentes da lei os tais frangos anunciados. Em outra, uma porção de gansos se amontoava em frente a uma porta de igreja em que se lia a faixa “Venham a Deus com todo o seu coração”.

Eu me via rindo quase às gargalhadas com esses achados, que – além do aspecto de humor – eram também fotografias de alta qualidade. Mas na ocasião o nome do artista, Jim Sumkay, me fez imaginar um jovem magro, estadunidense, que estivesse incursionando pela Europa. Provavelmente alguém ligado ao cinema, ou a histórias em quadrinho, pelo tipo de narratividade em suas composições.

Não cuidei de guardar esse nome ou investigá-lo pela internet.

Alguns meses depois, eu andava em direção à Universidade de Liège, para resolver compromissos profissionais, e de repente flagrei um homem, com cerca de cinquenta anos de idade, usando bigode, cavanhaque, óculos e chapéu. Ele segurava uma pequena câmera, tentando enquadrar uma pessoa que andava e dali a um instante estaria diante de um caminhão com um anúncio de um frigorífico. Eu li a frase do anúncio, observei a pessoa, antecipei mentalmente a foto que aconteceria – e fiquei paralisada.

A minha suspensão alertou o homem, que se empertigou meio desconfiado: “Bonjour?” Eu devia estar com os olhos tão arregalados que provavelmente parecia uma louca. Com um ímpeto impossível à minha timidez, avancei para ele, estendendo a mão a cumprimentá-lo. “O senhor”, perguntei, “estava expondo umas fotos no Curtius, um tempo atrás?” Agora quem se espantava era ele: “Sim, mas como…?” Eu estava à beira da euforia: “Eu reconheci! Essa cena, essa situação… era uma fotografia sua, bem aqui!”

Aquela evidência estilística, materializada num acaso que considerei milagroso, fez com que confraternizássemos, numa breve conversa. Ele me contou que tinha superado o alcoolismo “substituindo um vício por outro” – e não se passava um dia sem que saísse para fotografar.

Nunca mais reencontrei Jim Sumkay, mas comecei a visitar sua página virtual. Principalmente depois que voltei ao Brasil, suas imagens ganharam em afetividade, na medida em que me faziam tornar às ruas de Liège. Entretanto, eu não me dava conta de como seguir o seu trabalho impregnava a escrita do romance que ia elaborando. De modo consciente, sabia que as cenas ambientadas na cidade belga nasciam de anotações e demais registros que eu própria tinha acumulado durante a vivência por lá. Era esse material o alvo das minhas consultas diretas, à medida que a história ia sendo construída. A página de Sumkay eu espiava em momentos “de folga”, despretensiosamente, por assim dizer.

Percebi a dimensão dessa influência há pouco tempo, já na fase de preparação editorial do Em plena luz. Em determinado dia – enquanto descansava do trabalho de revisar os originais –, entrei na página do fotógrafo e achei um casal abraçado na Praça Saint-Lambert, bem diante do monumento em homenagem às vítimas do terrorista Nordine Amrani, que ali atacou em 2013. Foi um efeito madeleine: involuntariamente, me lancei de volta à sensação de andar pelo mesmo local, eu também em busca de memórias.

Encontrei em outra foto, comovida, um personagem que frequentava o refeitório da Biblioteca Chiroux, um idoso que eu associava a uma figura de Dürer. E descobri, dentre tantos gatos clicados por Sumkay (é um de seus temas preferidos), aquele que um dia eu própria fotografei, dentro de uma loja na rua Féronstrée.

Em certo trecho do livro, minha protagonista diz: “Afinal, trago coisas que não compartilho. Basta me acalmar, e estão lá — as ruas estrangeiras. Liège, Lieja, Luik: o refúgio que ela significou para mim. ‘Cortiça’, eu disse para mim mesma, ‘é o que significa Liège.’ E a cidade me fez boiar, sim, na espuma confusa daqueles dias.”

Jim Sumkay é igualmente náufrago. É mais alguém que se salvou – e que nos salva – através da arte.

                                                                                                                          Tércia Montenegro

 

 

 

 

Nuvens

Stieglitz

“Era a técnica daqueles dias o que fazia com que a foto ficasse antiquada e agudizava a contradição: o atemporal continuava sendo-o e, ao mesmo tempo, ficava marcado no tempo como algo dos anos vinte. O mesmo havia acontecido com as formações de nuvens de Stieglitz. O que ia flutuando pelo céu era uma única nuvem que já nunca se deteria e que havia passado rápido através da paisagem como um globo dirigível, uma nuvem que haviam visto pessoas que já não existiam. Mas, através da foto, essa nuvem se havia convertido em todas as nuvens, nas anônimas formas de água que sempre estiveram ali, que estavam ali antes de que houvesse pessoas, que se tinham aninhado em poemas e refrões, corpos celestes fugazes que quase sempre percebemos sem ver até que chega um fotógrafo que outorga ao mais efêmero de todos os fenômenos uma durabilidade paradoxal, obrigando-te a refletir sobre o fato de que é inconcebível um mundo sem nuvens, e que cada nuvem, seja onde for, represente todas as nuvens que nunca vimos e que nunca veremos.” (Cees Nooteboom. El día de todas las almas. pp.89-90)

Visada – Grupo de investigação do Texto Visual

Ainda aproveitando o dia da Fotografia, declaro o início oficial do Visada – Grupo de investigação do texto visual, que terá suas atividades no curso de Letras da UFC. Agradeço ao Coletivo Colher pela bela logomarca!

Deixo abaixo maiores informações.

VISADA – Grupo de investigação do Texto Visual

Coordenação: Profa. Dra. Tércia Montenegro Lemos

Encontros às segundas-feiras, de 11h50 às 13h20, a partir do dia 26 de agosto.

Critérios de participação:

– ter interesse por pesquisa e/ou produção de textos visuais

– ter cursado a disciplina de Semiótica ou de Teoria da Imagem Fotográfica

Interessado(a)s devem se inscrever, enviando um email para grupovisada@gmail.com