Errando imagens

Lendo imagens (Companhia das Letras, 2006), de Alberto Maguel, traz um erro à pág.240, quando cita o grito de uma Pietà de Mazzoni e o ilustra com esta obra:

O conjunto escultórico, que é realmente uma trágica e impactante obra, na verdade se chama Compianto sul Cristo morto e foi realizado por Niccolò dell’Arca em 1463. Encontra-se em Bologna, no Santuario di Santa Maria della Vita e, além destas duas figuras femininas (que certamente são as mais célebres), há outras quatro imagens em tamanho natural e um cristo jacente. Dificilmente isso poderia ser caracterizado como uma pietà – como de resto, também não o pode a obra de Mazzoni, igualmente um Compianto (datado de 1492), que se encontra na igreja de Sant’Anna dei Lombardi, em Nápoles. A obra é a seguinte:

No detalhe da imagem de Maria, pode-se ver também uma expressão dolorosa e gritante – o que leva à dúvida sobre a obra que Manguel realmente quis citar… São praticamente da mesma época, mas não podem ser confundidas!

detalhe da obra de Mazzoni

Ler e ver

Há uns dois meses, anunciaram – falsamente – a estreia da A espuma dos dias nos cinemas de Fortaleza. Pensei que havia perdido as escassas sessões, quando na verdade elas sequer haviam começado. Procurei o filme em locadoras (também em vão) até que descobri que na verdade ele era inspirado num livro do Boris Vian. Como já havia lido poemas deste ótimo autor francês, não demorei a encomendar o tal romance. A espuma dos dias transcorre num clima surrealista, mas não no estilo flâneur de, por exemplo, Nadja, do André Breton. Embora os personagens sejam igualmente livres de censura, quanto aos absurdos do mundo que os rodeia, no livro de Vian tudo se torna divertido, sem que pareça automatismo. Vejam, por exemplo, esta passagem:

“Colin, de pé na esquina da praça, esperava Chloé. A praça era redonda e havia uma igreja, pombos, um jardim, bancos e, em frente, carros e ônibus no macadame. O sol também esperava Chloé, mas podia se divertir fazendo sombras, fazendo germinar sementes de feijão selvagem nos interstícios adequados, fazendo escancarar as janelas e envergonhando um poste de iluminação aceso em razão de inconsciência da parte de um lumifuncionário.

Colin enrolava a borda de suas luvas e preparava sua primeira frase. Esta se modificava mais e mais depressa à medida que a hora se aproximava. Ele não sabia o que fazer com Chloé. Talvez levá-la a um salão de chá, mas em geral a atmosfera ali é mais para deprimente, e as senhoras glutonas de quarenta anos comem sete doces de creme com o dedinho levantado – disso ele não gostava. (…) Não no deputódromo, ela não gostaria. Não nas corridas de bezerro, ela vai ficar com medo. Não no hospital Saint-Louis, é proibido. Não no museu do Louvre, está cheio de tarados atrás dos querubins assírios.” (pp.56-7)

Outras inúmeras partes engraçadíssimas alternam-se com momentos poéticos, a ponto de às vezes termos a sensação de ler uma espécie de fábula. Mas, como eu lia já pensando no filme que me aguardava depois, não podia evitar a todo instante o pensamento: “Como será que esta cena vai ser transposta?” Havia muitos desafios na troca de linguagem artística, e só por isso eu me sentia atraída para o cinema – além de saber que Audrey Tatou estava no papel de Chloé (o que vale por uma boa recomendação. Nunca vi filmes ruins que essa atriz tivesse feito). Hoje, finalmente, eu estava pronta para enfrentar um shopping, único lugar em que o filme era exibido. Aturei com bravura a atmosfera nociva do espaço – não só pelo mofo que começava a arder na garganta, assim que alguém entrava na sala de exibição: a loucura de consumo, passeios frenéticos e overdose alimentícia (que caracteriza, em linhas básicas, um shopping center) também me trouxe um grande mal-estar. Claro que parte disso pode ser atribuída ao desfecho da história de A espuma dos dias, que é tristíssimo. Se no livro ainda se aguenta o suicídio até de um minúsculo personagem, na tela isso seria cruel demais – motivo pelo qual o filme busca um desfecho de redenção, mas que afinal não tira o gosto da tragédia. Tristeza no enredo, entretanto, não significa um defeito; se o espectador não for melindrosamente sensível, consegue acompanhar bem as criatividades de cena, que o filme esbanja. A atmosfera opressiva de sua última parte corresponde à tônica que Boris Vian criou – e que deixa clara a redução do homem ao rato, na mensagem escancarada pelo existencialismo vicioso a que um dos personagens se entrega. Pensar, rir, deixar-se levar pelo fluxo da vida; afinal, não importa o rumo da correnteza, pois o que restará no fim é isso: a espuma dos dias.

→Bom para ler e ver, comprovando de que modo o pessimismo pode ser o nó de uma história graciosa e poética, sem prejudicá-la.

Paris não tem fim

Lendo o livro de Villa-Matas…

“Pensem quais podem ser as razões básicas para o desespero. Cada um de vocês terá as suas. Proponho-lhes as minhas: a volubilidade do amor, a fragilidade de nosso corpo, a angustiante mesquinharia que domina a vida social, a trágica solidão na qual no fundo vivemos todos, os revezes da amizade, a monotonia e insensibilidade que o costume de viver acarreta.
No outro lado da balança, encontramos Paris.” (Paris não tem fim, pp.70-1)

Sem nada a perder

     Leio agora a notícia espantosa de que mais de mil pessoas estão pré-escaladas para fazer uma viagem de colonização a Marte em 2025, sem chance de arrependimento. Ou seja: quem for não volta.

      É claro que meu primeiro pensamento foi o desejo de que estivessem na lista duas ou três criaturas detestáveis que infelizmente conheci – entretanto, como não tenho lá grande sorte com palpites, descartei logo esta esperança. Com certeza, todos os inscritos são desconhecidos para mim, indivíduos que jamais encontrei e, portanto, não me trarão nenhuma falta (ou alívio) por sua partida. Isso me leva ao ponto seguinte de reflexão: qual o critério usado pela companhia Mars One, autora do projeto de exílio extraterrestre? Os selecionados são suicidas em potencial, dispostos a morrer num ambiente de ficção científica? Ou são leitores fanáticos de Asimov e Bardbury, quixotescos lunáticos (ou melhor, marciânicos), sedentos por aventuras espaciais?

      As colonizações do passado costumavam ser feitas de maneira mais ou menos caótica, extraviando para terras distantes criminosos ou degenerados de mistura com escravos, posseiros sonhadores e ambiciosos em geral. Em qualquer caso, essa gente não tinha nada a perder – ou, pelo menos, não dava muito valor ao que estava deixando para trás: família, possibilidade de emprego, país natal. Deve acontecer o mesmo com os 200 mil que se inscreveram para fugir da Terra. Imagino que sejam todos jovens, para que daqui a dez anos ainda estejam em idade fértil, capazes de se multiplicar pelo Planeta Vermelho… se conseguirem produzir oxigênio, encontrar água e alimento. Penso no choque surreal destas pessoas que serão obrigadas a conviver umas com as outras, todas estrangeiras (e qual será a língua que as unirá? Provavelmente o inglês – mas, se sobreviverem, em algum momento produzirão um novo idioma). Estarão dispostas a um desafio de sobrevivência absurdo, apegando-se a resquícios culturais para não enlouquecerem e se confundirem com bichos numa selva – ou, ao contrário, farão justamente isso, cairão no selvagem? É intrigante supor que essa experiência possa levar o ser humano a uma regressão primata.

      Seja como for, meus pais viram o homem ir à lua (ou será que não?). Em pouco mais de uma década, poderemos assistir a outra expedição inacreditável. Enquanto isso, suspeito que milhares de pessoas cometerão desatinos – sem tanta extravagância sideral, mas com idêntico ímpeto de despojamento, que leva a dizer “Nada mais me interessa; vou fugir para sempre”. Esse, ao meu ver, é o maior enigma por trás da notícia – quais os motivos para um abandono radical?

Poza czasem

Uma boa maneira de terminar o primeiro dia do ano: conhecendo a música polonesa contemporânea através de Dorota Miśkiewicz e sua “Poza czasem”. O refrão é viciante – além de promover uma identificação:

Razem ze mną nie śpiesz się.
Nie ma po co, nie ma gdzie.
Nie musimy robić nic.
Czasem wolno tylko być.

Ouça a música e veja o clipe aqui.