Nós, que amamos Agatha

            Vibramos com a novidade: uma edição brasileira, pela Harper Collins, trouxe agora em 2022 a Autobiografia para os fãs da “rainha do crime”. Talvez inclusive esta obra seja decisiva para conquistar ainda mais leitores: embora a pesquisadora Janet Morgan já estivesse com Agatha Christie – uma biografia desde 2018 editada no Brasil (pela BestSeller), os livros têm sabor inteiramente distinto. Quem gosta de minúcias poderá ler ambos, para compará-los, e nesse caso recomenda-se começar pela investigação de Morgan. Aqui temos os fatos e cronologias bem organizados; descobrimos, por exemplo, como surgiu a ideia de Agatha se dedicar à literatura.

Assim como Mary Shelley gerando Frankenstein em resposta a um desafio, Agatha Christie também escreveu depois de ser provocada; a irmã Magde a instigou a produzir uma história de detetive, na época em que o trabalho num dispensário farmacêutico, durante a primeira guerra mundial, ficou monótono: “ela decidiu experimentar, adotando o que viraria sua prática-padrão: começar decidindo o crime e definindo um procedimento que o deixasse particularmente difícil de elucidar”. (p.115)

Antes disso, ela já havia abdicado dos sonhos de ser pianista ou cantora de ópera: “Tenho certeza de que nada pode ser mais destruidor na vida do que persistir em algo que sairá malfeito e de maneira medíocre” (p.81). Ao contrário de tanto discurso atual sobre persistência (a tal ponto que falar em talento virou tabu para o nosso tempo), a lucidez de Agatha assinala que, além do esforço, é preciso, sim, que exista um dom criador.

            Houve também muita escrita por vingança. Por exemplo, durante uma excursão que ficou conhecida como um “passeio pelo Império” e que durou dez meses, a autora amargou o temperamento da figura central da viagem, o major Belcher: “Belcher trazia à tona o pior das pessoas e da natureza, e o melhor na escrita de Agatha. O relato do passeio na autobiografia é fluente e divertido, mas, em termos de humor, não chega aos pés do diário mantido por ela, a sequência de cartas enviadas para a família e os dois grandes álbuns de fotografias e souvenirs que montou quando ela e Archie finalmente escaparam das garras de Belcher” (p.125). Ao longo do tempo, ela iria se inspirar em muitas figuras peculiares, com defeitos patéticos ou traços de personalidade detestáveis – e assim, o estilo sardônico de Agatha foi alimentado pelo seu grande espírito de observação. A sua ironia também deslizou pelo pastiche, com inúmeras cenas em que a autora ridiculariza fórmulas da literatura policial, chegando inclusive a fazer piadas à custa de seus “heróis”, como Hercule Poirot.

            São muitas as criaturas famosas de Agatha Christie: além de Poirot, Miss Marple ou Ariadne Oliver, seus principais detetives, podemos lembrar Parker Pyne (considerado pela própria autora “mais realista” que Poirot). Não esqueçamos o “misterioso Sr. Quin”, juntamente com o Sr. Satterhwaite, “um cavalheiro idoso que acredita ser simples espectador, mas, quando inspirado pelo Sr. Quin, consegue resolver problemas” (p.230). Miss Caroline Sheppard é outra das muitas mulheres perspicazes nos livros de Christie, alguém “cuja onisciência expressa de modo suave é tanto irritante quanto maravilhosa para o círculo de homens condescendentes ao seu redor” (p.231)

            Há quem aponte falhas nos romances policiais de Christie, sobretudo porque várias histórias atribuem peso factual à declaração dos personagens, sendo quase sempre por meio do testemunho deles que se chega a esclarecer uma trajetória criminal. Ora, na “vida real” as pessoas mentem, distorcem depoimentos por motivos psíquicos sutis ou por simples má-fé. Outro aspecto que talvez soe artificial é a estrutura sintética que os livros de Christie assumem ao fim do enredo, geralmente com uma reunião em que se explanam os detalhes do caso. Essa fórmula de fechamento, com uma apresentação de raciocínio e dedução, é clássica (basta lembrar os livros de Conan Doyle, que Christie tanto admirava); se pode soar um pouco pedante, ao menos reconheçamos o mérito da autora em disfarçar tal estratégia: a solução é alcançada com inúmeras variações, que quebram a monotonia entre um livro e outro – tarefa árdua para alguém que publicou mais de uma centena.

O estilo da escritora tornou-se inconfundível – “romance de forma simples, poucos personagens, capítulos curtos e sem frases longas e complicadas, com ênfase nos fatos e na mecânica das situações, dando considerável importância à psicologia. Os suspenses e as histórias de detetive de Agatha eram despretensiosos, em termos de estilo, mas intelectualmente interessantes.” (p.156)

Uma viagem para Bagdá que inspirou a trama d’O assassinato no expresso do Oriente, sua mais conhecida obra, serve, conforme Morgan, para ilustrar o processo criativo de Christie: “uma vida que corre nos trilhos convencionais, mas subitamente a leva para um território surpreendente e até assustador, uma forma ordeira e lógica de proceder, interrompida por vislumbres ocasionais da irracionalidade dos seres humanos e da aleatoriedade dos eventos.” (p.224)

            É esse impulso arrebatador do destino que se percebe na Autobiografia – e sua dicção, extremamente bem-humorada, certamente conquistará novos leitores. Agatha Christie se revela como alguém plurifacetado: uma aventureira incansável, eterna curiosa, disposta a inventar tramas complexas que tinham como primeira finalidade diverti-la. Assim ela comenta, sobre o percurso necessário para concluir a peça Testemunha de acusação: “(…) li enormes quantidades de julgamentos famosos, fiz perguntas a advogados, e de repente senti que estava me divertindo – aquele momento maravilhoso na escrita que geralmente não dura muito, mas nos empolga com uma espécie de vigor e nos arrasta como a onda ao nos impelir para a praia. ‘Isto é adorável. Estou conseguindo. Agora para onde sigo?’, pensamos.” (p.613)

            Um pouco antes, de modo mais amplo, ela comentava: “É uma sensação estranha, essa de sentir um livro crescendo dentro de nós, por talvez seis ou sete anos, sabendo que um dia iremos escrevê-lo, sabendo que ele não para de se formar esse tempo todo. Sim, já está todo dentro de nós – só falta que se destaque mais nitidamente. Todos os personagens estão ali, prontos, à espreita, prestes a entrar no palco quando escutarem suas deixas – e, de repente, é como se ouvíssemos uma ordem súbita e clara: ‘Agora!’. Esse ‘agora’ soa quando já estamos preparados para escrever o livro. acontece quando já sabemos tudo a respeito dele. É um verdadeiro milagre quando podemos escrevê-lo logo, quando agora é realmente agora!” (pp.592-3)

            Ao final de sua Autobiografia, Agatha Christie sintetiza: “Reli tudo o que escrevi e estou satisfeita. Fiz o que eu queria fazer. (…) Não fui limitada pelo tempo nem pelo espaço. Demorei-me onde quis, pulei para a frente e para trás, conforme meu desejo. Lembrei-me, suponho, do que queria me lembrar; há muitas coisas ridículas sem razão que fazem sentido. É assim que nós, criaturas humanas, somos feitos.” (p.631). Aos 75 anos, ela conclui o relato, escrevendo: “O que posso dizer aos 75? Graças a Deus por minha boa vida e por todo o amor que me foi dado”.

            Esse amor continua até hoje, Agatha.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, no jornal Rascunho de novembro de 2022)

Os que ficaram

“O antigo futuro”, novo romance de Luiz Ruffato, está prestes a ser lançado, pela editora Companhia das Letras. No começo de dezembro, os leitores poderão conhecer uma narrativa pungente, cheia de exílios e dores, que se irmana à experiência de tantos brasileiros. O título, em sua proposta circular, indica o reprise inevitável: carregamos nossos antepassados e, quase sempre, copiamos suas errâncias, seus desastres. O passado espreita cada personagem, como um “cachorro pronto a morder-lhe os calcanhares”.

A história, desenrolada à maneira de uma saga familiar – com os cruzamentos temporais, as associações de memória que indicam a destreza do autor –, remonta ao início do século XX, quando imigrantes italianos aportaram no Brasil: inevitável pressentir no tema uma herança dos próprios ancestrais de Ruffato. Na atualidade, a mesma esperança de uma sorte melhor expulsa tanta gente para sofrer em outra terra prometida, os Estados Unidos.

O ciclo dramático desses trabalhadores parece fiscalizado pela amargura, como se houvesse “uma espécie de interdição ao contentamento”. A prosa de Ruffato é melancólica e contundente – certeira pela estratégia de apresentar seus personagens por vias enumerativas, como neste exemplo à pág. 22: “Alex vivia há pouco mais de um ano em Somerville, numa ruazinha próxima à estação Sullivan Square do metrô, quarto a seiscentos dólares por mês, aparelho de ar condicionado e televisão de trinta e duas polegadas (…) e naquele inverno começara a trabalhar como ajudante de cozinha num restaurante mexicano em Malden, a treze dólares a hora e a trinta minutos de ônibus de casa”.

A pressão do capitalismo conforma as identidades – e a ironia do recurso caracterizador se revela pelo fato de que todas essas figuras do romance são pouquíssimo diferenciáveis. Seu destino é o da massa, confundido também por números impessoais. A descrição de posses indica somente a pobreza, a condição que se busca aplacar sob o orgulho de ostentar certos princípios, como a religiosidade ou o trabalho duro e honesto. Na perspectiva da classe operária, os acontecimentos do mundo e do país transcorrem como um pano de fundo que não chega a alterar sua fortuna, apesar dos momentos de entusiasmo. A ilusão logo chega, mostrando a necessidade de uma labuta interminável. 

Há momentos de profunda beleza na história – como quando Alex recorda a irmã dançando sobre uma “neve” feita de isopor. Entretanto, à maneira deste artifício cênico, que simula flocos de neve com material bem diverso, a felicidade dos personagens parece sustentada sob episódios frágeis. A dor, ao contrário, permanece compacta.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)