Balanço de 2013

Este foi o ano em que conheci Proust – e me diverti muitíssimo. Também me declarei voyageuse farseuse e pratiquei o Diamantinismo. Explorei minha própria cidade, para um livro que ainda virá – e engrenei quase todas as páginas do romance que ganhou a bolsa da Petrobras. Eu me descobri romancista em 2013, mas não abandonei o conto (nem os versos, secretos). Fui traduzida para o alemão e soube de novas traduções a sair, para o inglês e o romeno. Aprendi sobre os mistérios do tempo em contemplação na África. Ainda não pisei na Polônia, mas conheci os ucranianos do Brasil. Viajei com pessoas formidáveis, fiz mais amigos – e sofri a saudade dos que ficaram distantes. Este foi o ano em que O tempo em estado sólido trouxe alegrias; finalista do Jabuti e do Telecom, o livro ganhou vida própria. Agora eu cuido das histórias futuras, nesta fase que é a melhor de todas: o momento de gerá-las, sem saber direito como vão se tornar. Neste ano mergulhei nas artes visuais, como há muito planejava. Em meio a decepções com o “sistema”, descobri lições prazerosas – e seguirei nesse caminho, prometendo pesquisas em fotografia e semiótica. Posei para um retrato do Sergio Helle e para outro, do Válber Benevides. Decidi estudar alemão e resgatar o meu estudo das outras línguas, claro. Terminei a minha fase de crônicas para o jornal e publiquei pela Amazon o ebook Meu destino exótico, com muitos textos de viagens. Para 2014, os planos são intensos – mas seguem a mesma pauta. Aventura, arte amor, bichos e risadas: não preciso de mais nada.

A Cesária o que é de Cesário

A CESÁRIA O QUE É DE CESÁRIO

Tércia Montenegro

26/12/2013

       Só agora, que já “assentei a poeira” desta última viagem, posso organizar as minhas impressões – tão boas e impactantes – da África. De uma parte dela, melhor dizendo: a parte talvez mais próxima de nós, pela língua, pela arquitetura colonial, pela culinária que herdamos dos portugueses. “Que Cabo Verde não amadureça!”: era o refrão dos amigos poetas, que (re)encontrei graças à Feira Mundial da Palavra. Num pequeno grupo bem humorado, exploramos as marcas de uma cultura ainda intacta – e não somente no passado luso que citei, mas em outros ricos indícios, de uma raiz bem mais remota. Os penteados e as roupas, com distinções tribais, a incrível destreza dos belos corpos negros, o artesanato (com as franjas dos panos de téra, a ressaltar os movimentos dos quadris), tudo era ensinamento ancestral.

            A paisagem às vezes parecia indecisa, entre a caatinga e a savana. No ônibus do time futebolístico Tubarões Azuis, fiz um passeio de reconhecimento. Na praia de São Tomé, divisei um cenário de descobrimento; a areia escura, de chão poroso como um bolo macio, abria-se para águas infinitas. Na Ponta Bicuda, diante da praia Mulher Branca, uma chapada exibia as fases geológicas do terreno, e alguns turistas aproveitaram para catar pozolanas, as rochas vulcânicas que assumem desenhos curiosos. Não desci à Cova de Lázaro, o famoso bandido que fez de certa gruta o seu refúgio – e não me arrependi. Disseram-me que havia ali ossadas de cães caídos por descuido.

          De outros locais, já mais perto do Plateau, estende-se costa de Santiago, em sua forma de ferradura. Do restaurante “O poeta”, visitei o farol de D. Maria Pia, dito “A ponta temerosa”, guardado pelo velho Malaquias e seu sobrinho, o atual faroleiro Jorge. Ambos eram de uma simpatia irresistível, daquela que nos constrange na hora de partir (porque afinal queríamos ficar, para um café e uma longa conversa sobre a vida). Ali, com o sabor do vento marítimo, senti palpitar minha aventura africana. Em frente, o ilhéu de Santa Maria sobressaía-se, e eu já tinha ouvido as pessoas murmurarem sobre o antigo leprosário. Imaginei fantasmas mutilados e tristes naquele gueto – e depois pensei nos três pescadores que se perderam, saídos para um dia de trabalho normal. Talvez tivessem ido em busca de atum, um dos peixes mais atrativos de Praia. Por algum motivo, escapou-lhes a rota, e ficaram sozinhos por 24 dias num barco de cinco metros, até aportarem em São Luís do Maranhão. Isso me contou o faroleiro, e lamentei não conhecer a costa maranhense, os ditos lençóis, e tanta coisa que ainda há por ver neste mundo.

Farol

            Vista do farol

        Mas pelo menos vou conhecendo o que consigo. Em Cabo Verde, visitei apenas (parcialmente) uma das ilhas do arquipélago. Para conhecer mais, precisaria de outras semanas: o acesso aos locais é lento, como o tempo tranquilo do povo. Não fui a Fogo, que era o meu grande interesse vulcânico – mas em compensação conheci a Cidade Velha, em Santiago. D. Rosalinda, a guardiã das chaves da igreja de Nossa Senhora do Rosário, transporta-nos a uma atmosfera medieval. O único ponto de ressalva foram os camelôs, insistentes em sua negociação. Eles estendem suas mercadorias na praça do Pelourinho e, quando eu quis comprar uma fruteira com peças miúdas, de madeira, subitamente me vi dentro de uma disputa entre dois senegalenses. Os vendedores me mostravam produtos semelhantes, mas cada um oferecia um preço menor do que o do outro, numa espécie de leilão ao contrário. Fui salva pelos amigos brasileiros.

            Ainda precisaria falar do mercado Sucupira, das mechas de cabelo à venda, para serem trançadas in loco. E dos alfaiates sorridentes, que preparam vestidos em meia hora. Precisaria abrir um espaço grande para o batuku, espetáculo de dança e canto que parece nos raptar para dentro de uma floresta, onde as mulheres se transformam em deusas fortes. Sim, é necessário voltar à África (não só fisicamente, mas com outros textos). Por enquanto, eu termino com a lembrança de Cesária Évora, enquanto ouço uma morna. Conduzida pelos nomes, lembro aquele poeta português, um dos meus preferidos, e de quem também se dizia para não amadurecer. Não é um despropósito fechar com seus versos, já que Cabo Verde tem – na sua genética de palavras e na própria história – um sabor de Portugal:

  “E evoco, então, as crônicas navais:

Mouros, baixeis, heróis, tudo ressuscitado!

Luta Camões no mar, salvando um livro, a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!”

(Cesário Verde)

Render-se à língua

Lindo trecho de uma entrevista do Gonçalo M. Tavares:

“O fato de escrever numa língua marca tudo. Uma língua não é um objeto, não é uma caneta, uma faca – uma língua não é algo exterior ao corpo, não é algo que se possa pousar numa mesa. A língua portuguesa, nesse caso, faz parte do meu organismo, desde que me conheço. Começamos a comer e a ouvir uma língua logo no primeiro dia, ou antes do primeiro dia. Esse contato com os sons primeiros de uma língua, esse contato pré-natal tem conseqüências para toda a vida. Eu sou português desde o início ao fim do meu organismo, não há nada a fazer. Bem, posso querer viajar muito, aprender a língua mais afastada, apaixonar-me por completo por outra cultura ou país, mas não há nada a fazer. Tudo já foi decidido logo no início. Quando caminho ou penso, está lá a língua. Penso com os sons que ouvi desde bebê, com o ritmo mental que a sonoridade da língua tem. E, portanto, eu diria que, no limite, tudo o que fazemos, não apenas escrever e falar, tem a marca da nossa cultura e da nossa língua. Eu ando em português, como em português, durmo em português. Não adianta correr. Nem fugir. Correrei e fugirei sempre em português.”

(TAVARES, Gonçalo M. In: O livro das palavras. São Paulo: Leya, 2013, p.115)

Trem noturno para o lugar-comum

Quanto maior a expectativa, maior a decepção. Fiquei com vontade de ver Trem noturno para Lisboa por várias razões: o título (belo), o argumento (interessante) e as críticas (favoráveis) me instigaram. Mas ontem saí do cinema com a velha sensação de ter sido enganada. Tudo no filme era de uma previsibilidade e/ou de uma inverossimilhança absurdas – um verdadeiro insulto à inteligência. Os personagens, rasos e estereotipados, debatiam-se com textos cheios de clichês. O pano de fundo histórico da ditadura salazarista se transformou num trampolim para falsos heróis, criaturas romantizadas com os piores estigmas da idealização.

Mesmo que o espectador embarque na ingenuidade, ainda assim a história não se sustenta; está repleta de pseudo-reviravoltas que procuram se justificar por uma “ânsia de aventuras” gratuita. É daqueles filmes adolescentes, que parecem circular numa crise de identidade, desequilibrando-se entre as decisões que poderia tomar – e escolhendo o caminho mais fácil: o de jogar com fórmulas (desde a trilha sonora até os personagens rotulados) para que a platéia receba “mais do mesmo” e se satisfaça. Bem, pode ser que algumas pessoas até aceitem pacificamente esses chavões requentados. Para mim, eles agem como um dispositivo irritante – e com certeza vou guardar o nome desse diretor, Bille August, para passar bem longe de suas “criações” da próxima vez.

Lições de partir e voltar

Termino 2013 com a boa sensação de crescimento, por conta de tantas viagens. Prudentópolis, Curitiba, São Paulo, Jeri, Igatu, Mucugê, Salvador, Dresden, Berlim, Frankfurt – e, mais recentemente, Cidade da Praia, na Ilha de Santiago: todas essas paisagens me trouxeram ensinamentos. Mas a principal lição acontece quando retorno. Gosto de abrir a porta de casa e perceber o cheiro que já esqueci. Adoro estranhar o sol de Fortaleza e me reacomodar com uma rotina cheia de momentos gratos (e alguns aborrecidos). Estou consciente do instável, do milagroso que é cada dia a se viver num lugar, e não em outro. É preciso despertar esse sentido de espanto: por que as coisas deveriam ser assim? Há inúmeras opções, latentes; o fato de realizarmos umas não anula a existência das demais. É essa expansão quase incontrolável que eu exercito, ao viajar. E, quando volto, tenho certeza de que meu caminho é múltiplo, com várias artes e projetos que me apaixonam. Quero fazer tudo, embrenhar-me no que for possível, com a maior das intensidades; não me contento com uma satisfação mediana. Quero o descobrimento de mundos – em livros e expedições e pessoas com suas histórias e trajetórias singulares. Quero a vida enquanto ficção: mágica e improvável.

Pai Inácio

Em despedida

Hoje, leitor, enquanto você folheia este jornal, eu estou na África. Não, não cheguei a fazer como a Karen Blixen, que se mudou para uma fazenda africana. Apenas viajei a Cabo Verde para fazer uma conferência na Feira Mundial da Palavra. O título desta crônica, portanto, não diz respeito a um adeus geográfico, embora mesmo assim se refira a territórios. Porque a partir de hoje não escrevo mais nesta seção d’O Povo.

A famosa saída à francesa nunca me pareceu coisa elegante de se fazer. Creio que todo mundo que vai embora deveria dizer até logo, distribuir abraços, flores ou algo desse tipo. Simplesmente desaparecer, criando um buraco de ausência, é agressivo. Se nem sempre podemos evitar as separações bruscas, que pelo menos o ritual do adeus surja, quando a partida for planejada. Saberemos que houve a conclusão explícita de uma fase, e há um lado bom em fechar os ciclos. É por isso que agora escolhi não falar sobre a África, sobre suas paisagens e gentes – pulo o tema de viagem para me concentrar nesta despedida.

Lembro, a propósito, a performance da artista Marina Abramović, quando ela e o seu grande amor, Ulay, decidiram se afastar, após mais de uma década juntos. Eles precisaram de um símbolo, um momento de ruptura que bifurcasse seus caminhos e ensinasse às suas mentes que já não eram mais um casal. Então combinaram de percorrer a muralha da China, cada um de um lado, até se encontrarem no meio, para um último abraço.

Pois este texto é a minha muralha: cada frase cria o trajeto que oficializa minha partida, da coluna Opinião. Foram quase quatro anos publicando quinzenalmente nesta página, o que me originou cerca de cem crônicas. Metade delas ganhou corpo no livro Os espantos, editado pela Demócrito Rocha em 2012. Outra parte foi reunida no ebook Meu destino exótico, publicado pela Amazon há poucos dias e que pode ser adquirido em http://www.amazon.com/dp/B00H27TYLA.

            Durante todo esse tempo, experimentei temas, fictícios ou não; documentei reflexões e aventuras, em circunstâncias variadas. E o melhor: conheci pessoas que me escreveram compartilhando relatos – a maioria, gente ótima, amabilíssima. Houve dois ou três agelastos, infelizmente, e a estes rabugentos expresso o meu desejo de que, de uma vez por todas, explodam (de rir, é claro, a ver se alcançam a cura para o seu mau humor).

Como tudo muda ou se transforma, lá vou eu para novos rumos literários, projetos diferentes, que me empolgam e exigem dedicação. Despeço-me de quem seguiu estas linhas – mas garanto que não é preciso ficar na saudade: você ainda pode acompanhar os meus textos pelos livros e também pelo blog http://www.literatercia.wordpress.com. As histórias continuam e, após a muralha, ainda virão muitas peripécias!

Tércia Montenegro (crônica publicada no jornal O Povo em 18/12/2013)

A faxina terapêutica

    Começa dezembro, e aqui em casa nada de estranho aparece: nem árvores natalinas, nem bonequinhos barbudos ou feitos de falsa neve – nada que seja descontextualizado com o Ceará. Uma vez pensei em enfeitar um cacto que tenho na varanda, mas não decidi quais os acessórios oportunos e também imaginei que o processo de adorná-lo seria espinhoso, de modo que abandonei o plano. Na verdade, o importante durante este mês não é realmente o que possa surgir (em termos de decoração ou em outro aspecto), mas o que vai embora.

    Sim, dezembro é a época ideal para o que chamo de faxina terapêutica. À diferença do asseio obrigatório, que acompanha a rotina doméstica, este tipo de limpeza tem caráter especial: consiste em “colocar abaixo” os trecos, esvaziando armários e gavetas, numa compulsão por se desfazer do inútil, dos objetos desencantados. Parece que o novo ano só começa quando se abre esse tipo de espaço para as coisas – e chega de entulho do passado! Eu precisava me desfazer de livros, telas, roupas; precisava vê-los enchendo caixas inteiras, para sentir que estou leve, receptiva ao que virá.

    Não pense o leitor que esvaziei completamente a morada; ao contrário, ela continua cheia de utensílios, de recordação e arte. Mas agora – mais do que no ano anterior – creio que ela me retrata na medida certa. Aqui estão as minhas escolhas: os objetos que selecionei para viverem comigo, presentes em cada dia. Óbvio, estes também não vão permanecer para sempre (o que, aliás, seria impossível); vou me desapegar de muitos no futuro, e talvez só resistam alguns livros extremamente amados, algumas peças que de fato me traduzem. Por hoje, no entanto, a seleção está perfeita. Tenho prateleiras vazias, pregos despidos de quadros – as paredes respiram.

    O valor terapêutico desta faxina depende de o próprio morador executá-la. Não adianta delegar o serviço a ninguém – mesmo porque outra pessoa jamais saberia quais artigos alheios deve jogar fora. O critério não depende das condições materiais; às vezes, um bibelô velhíssimo e trincado vale bem mais que um eletrodoméstico, em termos de afeto. Portanto, o verdadeiro interessado deve decidir onde o desapego funciona e até que ponto está preparado para não tornar a pôr os olhos em determinado objeto. Tal exercício de desprendimento é uma verdadeira terapia: envolve coragem para se despregar de referências antigas, libertar-se em direção ao desconhecido.

    O outro lado deste processo também satisfaz. Sempre, numa faxina de grande porte, encontramos coisas que estavam esquecidas. Um texto maravilhoso que há tempos não relíamos, um caderno de anotações bizarras, um álbum de viagens que nos faz viajar outra vez, frascos de perfume antigo… Alegro-me com os prêmios da caça ao tesouro, as relíquias resgatadas. O resto – que virou presença incômoda – vai se juntar ao entulho lançado porta afora.

Tércia Montenegro (crônica publicada ontem no jornal O Povo)