As feições

Há pessoas que nunca vi sem máscara. Intuitivamente, então, elaboro uma solução para a parte do rosto oculta – e, se acontece de poder comparar com a realidade, quase sempre tomo um susto. Por exemplo, aquela atendente do supermercado livrou a face para tomar um rápido gole de uma garrafa d’água: tinha o nariz subitamente fino, agudo como um bico de pássaro.

Às vezes eu me sinto brincando com um Mr. Potato mental, enquanto ando pela rua. Experimento fisionomias para as cabeças que avisto, fugazes. Homens escondem bigodes, barbas ralas, e suponho que muita gente carrega cicatrizes, marcas de queimadura, acne, piercings, dentes estranhos ou coisas inimagináveis sob o acessório pandêmico.

As máscaras inventaram um tipo de mistério cotidiano, e não digo que isso me incomoda. Na verdade, penso em como antes de 2020 as fisionomias se expunham, logo assim no primeiro momento, e para todo mundo… A nudez facial hoje me parece um tipo de promiscuidade – porém não estou me referindo a sensualidades sugeridas por um sorriso malicioso… É a mescla dos hálitos que me apavora. Depois do coronavírus, reflito sobre as inúmeras partículas que trocamos com gente desconhecida, pelo simples fato de estar no mesmo ambiente.

Você, que me lê num dia de domingo, talvez inclusive lembre a canção com esse título, na voz de Gal Costa e Tim Maia. Sejamos sinceros: não é temível querer “respirar o mesmo ar que rodeia” alguém? Nesse sentido, admito que ainda é cedo, realmente cedo para “ficar por conta da emoção”. Falta um bom tempo para que as máscaras deixem de ser necessárias.

Por enquanto, seguimos conhecendo as feições de pessoas íntimas, que são, aliás, as que merecem o nosso fôlego partilhado. E quem sabe, à custa do exercício mental com o puzzle fisionômico, em breve encontremos numa avenida aquela personagem de Nicolai Gogol, o solitário Nariz que se extraviou de S. Petersburgo. Releio um delicioso parágrafo do conto:

“O assessor do colegiado Kovaliov acordou bastante cedo, murmurando: ‘Brrr!’, segundo um hábito que ele teria muita dificuldade em explicar. Ele se espreguiçou e olhou-se no espelho para examinar uma pequena espinha que, na noite do dia anterior, havia saído em seu nariz. Para seu imenso espanto, percebeu que o lugar que seu nariz deveria ocupar apresentava apenas uma superfície lisa! Alarmado, Kovaliov apanhou água e esfregou os olhos com uma toalha de rosto. O nariz havia desaparecido por inteiro! Apalpou-se, beliscou-se para se convencer de que não estava mais dormindo: não, estava muito bem acordado. Kovaliov pulou da cama e agitou-se: continuava sem o nariz!… Vestiu-se de imediato e foi direto ao chefe de polícia.”

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

A vida secreta

Todo mundo deveria ter uma vida secreta. Escrevo esta frase inicial e já pressinto o leitor alerta, disposto a se eriçar. Pois a ideia de uma rotina misteriosa geralmente é sinal de vícios, manias ou tendências inconfessáveis. Quem nunca conheceu um perfeito cidadão, que na surdina carrega certo impulso estranho? O hábito secreto pode ser inofensivo, porém vergonhoso – como no caso daquela senhora idosa que era conhecida por suas proezas culinárias, mas também gostava de guardar, na despensa, pilhas e pilhas de revistas pornográficas.

É óbvio que não estou defendendo mistérios criminais, tendências mortíferas, taras, nada disso. Uma vida secreta pode se concretizar com um simples hobby ou com uma atividade paralela à rotina profissional, algo que fuja das ações obrigatórias. Imaginem, por exemplo, que aquele porteiro do clube esportivo não é apenas um encarregado de fiscalizar o vaivém de pessoas e carros. À noite, quando chega em casa, ele se dedica a compor sambas e modinhas, canções sem compromisso e quase condenadas a permanecerem incógnitas. Talvez ele precise de talento, mas não é isso o que importa: o seu exercício musical destina-se a ventilar a vida, não é uma estratégia para se tornar rico.

Aquele outro rapaz, que abriu um pequeno comércio ao lado do clube, também escapa do tédio nas horas vagas: dedica-se ao aeromodelismo com uma paixão de criança. E agora, pela calçada, passa uma jovem com todo o jeito de universitária. Ela não somente cumpre tarefas de estudo e se diverte com os amigos de sua idade; nos fins de semana, arrecada fundos para um bazar e envia auxílio aos albinos da Tanzânia.

Em todos esses “desvios” da mesmice, existe um elemento mágico que faz a pessoa se sentir diferente, especial. Ela adota prazeres que não se compartilham, coisas que parecem ridículas ou inúteis para o juízo alheio. Sobretudo, a pessoa faz suas escolhas por motivação íntima, sem seguir recomendações, campanhas ou projetos de ninguém. A satisfação está em realizar o ato; não é preciso ostentá-lo.

Em tempos de massificação virtual, ganhar plateia, de qualquer tipo que seja, virou exigência – daí porque uma vida com lados secretos sugere transgressão ou imoralidade. Mas, sob tal argumento, esconde-se o perigo do controle sobre o gesto livre. Que eu saiba, nenhuma ditadura conseguiu informações com tanta minúcia como fazem certos ambientes virtuais – e (o que é mais grave) o próprio usuário deseja ser seguido, vigiado. Para esses reféns da autoconfissão e do aplauso, ter uma hora solitária – ou uma vida secreta – pode ser a única chance de encontrar a individualidade…

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Literatura feérica

Primeiro conheci o cinema de Alejandro Jodorowsky. Santa sangre me golpeou com inesquecível impacto, quando o vi anos atrás. Tempos depois soube que este filme revisita El Topo, sobretudo no personagem do pistoleiro, recuperado no espectro da mãe mutilada e dominadora em Santa sangre. Eu começava a perceber as obsessões temáticas de Jodorowsky, o conjunto de “experimentos estranhos” que caracterizava a sua arte.

Conhecido como chocante, grotesco e maravilhoso a um só tempo, o universo plurifacetado deste autor sempre retorna a alguns pontos: circo, loucura e misticismo – com a presença de corpos híbridos realizando uma espécie de expurgo. Essas constantes estão presentes nas diversas linguagens que Jodorowsky explora, seja o cinema, o teatro, a mímica ou a tarologia. Em literatura, obviamente, ele não poderia deixar de lado a própria personalidade, e é assim que encontramos o seu texto ficcional: ágil e cumulativo, uma explosão ruidosa que deixa a impressão de um roteiro folclórico mas também kitsch e psicodélico.

Quando Teresa brigou com Deus apresenta-se como a narrativa de sua família – mas, ao mesmo tempo em que traz, sim, aspectos críveis de seus ancestrais judeus, perseguidos e exilados, trocando de nome, profissão e país para sobreviver, conta muitas histórias surreais. A imaginação tem tanto valor quanto os fatos. Há aspectos escatológicos misturados aos mágicos; várias vezes, os personagens parecem agir num estado de transe, ou irracionalmente, levados por impulsos instintivos – e isso soa tão válido quanto um destino de perfeita coerência.

O roteiro poderia ser resumido num desfile de personagens bizarros ou alegóricos. Serafim, por exemplo, é uma figura híbrida, pai de um hermafrodita venerado como um deus. Há cruzamentos mitológicos de várias culturas, e um forte teor político na última parte, quando a História do Chile faz repercutir inúmeras situações similares – de poder e injustiça, inclusive (ou principalmente) no caso do Brasil.

Jodorowsky transforma a crítica e a erudição em festa: não resiste às muitas procissões, de trabalhadores, de artistas mambembes, gente sempre em trânsito. O ímpeto das massas perpassa toda a narrativa e lhe dá um caráter sacro. Mas os rituais são também gestos vazios, automatizados pelo hábito.

Numa entrevista, Jodorowsky afirma que “não quer ser perfeito nem verdadeiro, quer ser autêntico”. Diz que a razão navega na imensa loucura do inconsciente – a ideia de uma loucura sagrada, que ele celebra e evidencia com sua arte: “Abram-se as portas, e que o vento sopre!” Depois da morte de seu filho, aos 24 anos, ele entendeu que precisava ultrapassar a arte para chegar à terapia: “Se um artista não é um curandeiro, não é nada”.

A arte polifacetada, portanto, se estabelece como um elogio à fragmentação holística, por paradoxal que isso pareça. Jodorowsky acredita que cada sujeito é um ser transpessoal, comunicante com os demais, ao mesmo tempo em que conserva um “império irredutível”, um universo em sua própria individualidade. Essa via de mão dupla, ele explora em obras mais espiritualistas (mas nem por isso menos estéticas): Psicomagia, O caminho do tarot, Metagenealogia… Trabalhando com a confluência de arte, psicologia e metafísica, ele demonstra como “nós estamos a serviço dos nossos ancestrais, imitando-os como títeres”.

Voltamos a Quando Teresa brigou com Deus, para notar o quanto de homenagem familiar subsiste nessa ficção fantástica. Nem tudo é pirotecnia de roteiro, porém; há passagens bem poéticas, que mostram como Jodorowsky a um tempo entretém e enleva. Vejam, por exemplo, estas:

            “– Sim, Jashe – disse a mãe severamente –, os leões aprenderam a falar hebraico. Se você quiser tirar alguma mensagem da sua história, deve aceitar não só esse milagre como muitos outros. Na memória tudo pode tornar-se milagroso. Basta desejar e o inverno inclemente transforma-se em primavera, os quartos tristes enchem-se de tapeçarias douradas, os assassinos tornam-se bons e as crianças que choram de solidão recebem mestres bondosos que, na verdade, são eles próprios que se deslocaram da idade adulta para seus primeiros anos de infância.”

            “De qualquer modo, a realidade é a transformação progressiva dos sonhos; não há outro mundo que o onírico.” Esta passagem ressoa estreitamente com um trecho de seu livro Metagenealogia: “Podemos usar uma estratégia que é considerar racionalmente a realidade como um sonho, quer dizer, perguntar-se diante de uma situação traumática ou que não se pode resolver: ‘Por que estou sonhando esta situação?’ Da mesma forma, se pode sonhar acordado com uma solução inédita cuja influência se fará sentir na realidade.”

Há outros excertos que, mesmo separados do fluxo narrativo, conservam o valor reflexivo; podem ser usados como âncoras meditativas, oportunas em vários momentos:

“(…) vi desenvolver-se, de geração em geração, a consciência cósmica que, sem jogos de palavras superficiais, é enormemente cômica. Quem compreende a filosofia compreende o riso. Esse verbo misterioso do princípio, como nos indica o Evangelho, é uma gargalhada divina.”

“Estamos recordando a existência das pontes, porque tudo o que parecia cortado esteve unido desde a eternidade.”

“Nosso amor será tão longo quanto a língua de Deus.”

“Todos os seus medos haviam sido extirpados: morrer, adoecer, ser abandonado, invadido, fracassar, perder, sofrer, entediar-se, não significar nada, passar despercebido, envelhecer. Pela primeira vez, desfrutou de sua matéria, e a carne já não era um carrasco aliado ao tempo que, com seus segundos, tirava-lhe a vida em pequenas mordidas, mas sim um jardim paradisíaco onde seu espírito dançava como um anjo sem forma.”

A satisfação de circular pelo mundo de Jodorowsky se completa com o fato de podermos acompanhar o autor, hoje nonagenário e bastante presente nas mídias virtuais. Além disso, o seu filme A montanha sagrada, que durante 30 anos ficou inacessível, agora finalmente pode ser visto. Nele, igualmente encontraremos figuras em jornada rumo à iluminação, com o espiritual mesclado ao profano, além de extravagâncias visuais, assombros e significados cabalísticos – exatamente como no seu romance.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna “Tudo é narrativa”, do jornal Rascunho de outubro de 2021)

Os esportes impossíveis

Se hoje gasto pouco tempo com exercícios físicos, houve uma época em que eu era sedentaríssima. Quando lecionava em colégios, tinha de trabalhar tanto, e num ritmo tão alucinado, que não me restavam forças para qualquer movimento nas horas vagas. Eu tentava me iludir, acreditando que o desgaste da profissão queimava calorias – mas o fato é que bater palmas (para pedir silêncio aos alunos), andar para lá e para cá durante as aulas, gesticular e escrever na lousa não são um programa de exercícios completo. Como resultado, constantemente eu adoecia, sentia-me exaurida e pálida, enquanto ativava a imaginação (ao menos, essa!) para pensar nas modalidades esportivas que jamais conheceria.

Via-me com equipamentos de alpinismo, esqui ou mergulho, e às vezes inventava a sensação de lidar com bolas de tênis, vôlei ou basquete. Nos dias mais cinzentos, desejava patins para dança no gelo. Gostava especialmente da ideia de me tornar amazona, galopando por hípicas intermináveis – ou, talvez, eu pudesse ter sido uma ginasta, flexível e rápida. Todas essas versões utópicas de minha identidade eram motivadas por atividades físicas que nunca tive.

Mas não pense o(a) leitor(a) que foram apenas esportes de inverno ou caros que me fugiram do alcance. Um simples passeio de bicicleta ainda é para mim algo inviável! Minhas intenções de equilíbrio são sempre vencidas pela atração gravitacional, e por mais que eu me esforce não há jeito. Já me conformei com a hipótese de um carma ou maldição – até porque outro dia sonhei que de novo nascia, e o médico segurava minhas perninhas de bebê e fingia dar umas pedaladas. Depois ele ria como um psicopata, dizendo: “Rá-rá-rá, essa aqui nunca vai aprender!” Classifiquei a imagem como sonho, mas agora estou pensando se não sofri uma regressão e recuperei uma incrível memória dos tempos de infância…

De qualquer modo, se hoje eu pudesse escolher, de imediato me entregaria à esgrima – pelo prazer de usar máscara, luvas e colete protetor. E erguer um florete, acima de tudo: palavra que é delícia e perfume desde os tempos em que li “O chamado”, da Lygia Fagundes Telles. Nesse texto, a escritora (que se formou em Educação Física) fala da disciplina e da rapidez que o esporte lhe ensinou. Porque a esgrima – exatamente como a ficção – consiste em avançar veloz, para atingir um coração exposto.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)