A fumaça entra nos olhos

Smoke gets in your eyes foi uma recomendação da amiga escritora Luisa Geisler, em nossa última viagem juntas no ano passado, pelo projeto do Sesc Arte da Palavra. Em português, entretanto, o título ficou Confissões do crematório. A autora, Caitlin Doughty, também se tornou conhecida pelo volume Para toda a eternidade – uma espécie de diário de expedições realizadas com o objetivo de investigar rituais funéreos.

Doughty escreve a partir de um lugar profissional: “Na minha função de agente funerária eu descobri que tanto limpar o corpo quanto passar tempo com ele exercem um papel poderoso no processamento da dor. Isso ajuda as pessoas a verem o cadáver não como um objeto amaldiçoado, mas como um belo receptáculo que já abrigou seu ente querido.” O espaço do velório, portanto, recorda a necessidade de que exista algum “lugar de segurança”, onde “é permitido falar da pessoa que se foi, chorar e demorar o tempo que for necessário nesse sentir”.

Em Para toda a eternidade, diversos choques culturais nos levam à reflexão – já bastante constatada mas nunca o suficientemente discutida – sobre como a morte se transformou num tema proibido, na maioria dos países ocidentais. Ao passo que experimentamos um repulsivo assombro diante de práticas como a do sepultamento celestial, no Tibete, não podemos deixar de ver (com algum tipo de inveja primitiva?) a validação dos rituais funéreos dentro de suas culturas.

O capítulo mais espantoso do livro, nesse sentido, talvez seja o dedicado à Indonésia, especialmente à região de Tana Toraja, onde em determinada data ocorre um ma’nene’, ritual em que os túmulos são abertos para que as famílias possam rever seus mortos, trocar suas roupas, conversar com eles, tirar fotografias etc. Como ressalta a autora, qualquer pessoa de fora, o(a) leitor(a), por exemplo, “não cresceu acreditando que os relacionamentos familiares devem ter continuidade depois da morte do corpo. Para os habitantes de Toraja, tirar alguém do túmulo anos depois da morte não só é respeitoso (a coisa mais respeitosa que eles podem fazer, na verdade), mas funciona como uma forma importante de continuarem ligados aos mortos.”

O livro ainda se volta para questões sanitárias e seu impacto no ambiente – como o grande problema que as cremações trazem, com a liberação de monóxido de carbono, dióxido de enxofre e de mercúrio (proveniente das obturações dentárias) na atmosfera. Não são pontos sobre os quais pensamos comumente – e ainda há muitas outras reflexões interessantes. Lembro o capítulo dedicado à compostagem humana – denominada, de uma forma mais poética, recomposição –, que vem sendo praticada na Carolina do Norte (EUA) num projeto capitaneado quase que exclusivamente por mulheres, dentre cientistas, antropólogas, advogadas, arquitetas. Ressalta Doughty que tal ideia pode ser considerada um ato radical feminista: “Os corpos das mulheres estão com frequência sob o escopo dos homens, sejam nossos órgãos reprodutores, nossa sexualidade, nosso peso ou nossa forma de vestir. Existe uma liberdade encontrada na decomposição, um corpo que fica bagunçado, caótico e descontrolado. Essa imagem me agrada e me satisfaz, quando visualizo o que vai acontecer com meu futuro cadáver.”

Na obra, aprendemos sobre as ñatitas de La Paz, com seus poderes mágicos, e sobre os modernos columbários no Japão, que se preocupam com estratégias para minimizar a epidemia de kodokushi – palavra que nomeia as “mortes solitárias”: porque há muitas pessoas idosas que morrem sem que haja ninguém para encontrar seus corpos ou, posteriormente, ir orar em seus túmulos. “Há até empresas especializadas contratadas por senhorios para limpar o que ficou depois de um kodokushi”, comenta a autora.

Em Confissões do crematório, o aspecto multicultural não é tão denso, mas mesmo assim podemos descobrir, por exemplo, que “quando uma morte acontece na ilha indonésia de Java, a cidade toda é obrigada a comparecer ao funeral. O corpo é desnudado, o maxilar é fechado com um pano amarrado ao redor da cabeça e os braços são cruzados sobre o peito. Os parentes mais próximos do falecido lavam o corpo, segurando o cadáver no colo, posicionando-o de forma que os vivos também ficam encharcados com a água. A ideia de aninhar os mortos dessa forma, de acordo com o antropólogo Clifford Geertz, ‘se chama ser tegel – ou seja, ser capaz de fazer uma coisa detestável, abominável e horrível sem hesitar, seguir em frente apesar do medo e da repulsa interiores’. As pessoas de luto executam esse ritual para ficarem iklas, distanciadas da dor. Abraçar e lavar o cadáver permite que elas encarem o desconforto de frente e sigam para um lugar em que ‘seus corações já estejam livres’.”

Doughty questiona o constrangimento que o luto traz – justamente porque não aprendemos a lidar com esse tema. Além disso, numa sociedade tão voltada para a ambição e o “sucesso” como a nossa, conviver com alguém que pareça mergulhar demais na própria perda tende a provocar, em vizinhos, colegas de trabalho e até na própria família um desconforto que gera segregação.

Há muitos estudos em psicologia voltados para a efetivação do luto (recordo aqui apenas o trabalho de Elizabeth Kübler-Ross), mas o tema persiste sendo um tabu ocidental. Conforme Caitlin Doughty comenta em seus livros, “nós escolhemos continuar vendados, no escuro em relação às realidades da morte. No entanto, a ignorância não é uma bênção – é só um tipo mais profundo de pavor”.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal curitibano Rascunho, em setembro de 2020)

Sombra insignificante

Criaturas que vivem de oportunismo e autopromoção não são novidade. Mas em algumas plataformas a marca de um determinado número de “seguidores” pode levar pessoas a acreditar que exercem um tipo de liderança ou até missão, por mais extravagante que isso pareça. Os ingênuos da virtualidade talvez creiam que suas palavras e postagens têm grande importância na vida alheia – mas bastaria reparar no quanto o seu modelo é idêntico ao de outras dezenas de nomes que circulam por canais semelhantes. A constatação é cruel, porém óbvia: quase toda a gente se preocupa mais em mostrar, e menos em ser, de fato. Repetem maneirismos descartáveis, e sua própria identidade dura na medida desse aplauso. Vale uma curtida de quem gastou poucos segundos saltando entre conteúdos.

            É provável que eu seja uma idealista, por achar que ainda se deve aplicar lentidão, coerência e profundidade nos atos, sobretudo nos criativos, e que tal conjunto deve ser o seu motivo elementar – mas pelo menos não estou sozinha. Leio Frantumaglia e encontro, no meio de cartas, depoimentos e entrevistas da autora italiana oculta sob o nome de Elena Ferrante, uma passagem em reação ao brilho volátil que tantos perseguem (mania traduzida numa espécie de sentença como “Fale sobre mim, mesmo que não saiba o que eu faço”). O trecho é o seguinte:

            “A fama do autor, ou melhor dizendo, da persona do autor que entra em cena graças à mídia, é um suporte fundamental para o livro? (…) Acho que os leitores de um bom livro esperam no máximo que o autor de um bom livro continue a trabalhar com consciência e produza outros bons livros. Acho, enfim, que até os autores dos clássicos são apenas um amontoado de letras mortas ao lado da vida que arde em suas páginas assim que começamos a lê-las. Só isso. Para usar uma fórmula: até Tolstói é uma sombra insignificante quando sai para passear com Anna Karenina.” (p.44)

            O fato de que alguém pareça mais cativante do que sua literatura é um alerta que não se pode desconsiderar. “O ativismo promocional dos autores tende a anular cada vez mais as obras e a necessidade de lê-las. Em muitos casos, o nome de quem escreveu, sua imagem e suas opiniões são muito mais conhecidos do que seus textos”, acrescenta Ferrante, páginas à frente. Esse mecanismo de troca é um fenômeno que afeta todas as linguagens, mas no caso da literatura parece bem mais evidente porque o empenho de ler um livro realmente passou a ser substituído por um ligeiro reconhecimento da autoria. E pior: há autores que chegam a se contentar com essa fama-pelo-rótulo, acham que é assim mesmo – a propaganda foi eficaz, o livro vendeu, não importa se vai mofar numa prateleira. Suspeito que haja inclusive quem prefira leitores que compram, mas não leem: a eles, jamais será preciso apresentar uma qualidade de texto.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

FRANCISCO

Hoje, dia 4 de outubro, meu pensamento vai para ele – o filósofo do altruísmo, o poeta do meio ambiente, o caridoso em extrema coerência, o santo que protege os animais. Uma figura tão emblemática de humildade que o papa decidiu homenageá-lo, tomando-lhe o nome – e, como consequência, um pouco da sua postura despojada, sem tantos riquíssimos paramentos católicos. Aliás, acho que combina muito bem com Jorge Mario Bergoglio, com seu sorriso e simpatia, chamar-se de Francisco.

Das cenas de sua vida tão longínqua, gosto especialmente de imaginar a pregação aos pássaros, a conversa com o lobo de Gubbio e a descoberta de que o desprendimento é libertário. Quando ele doou até a roupa que vestia, renunciou a qualquer grilhão de vaidade ou convenção social – e, além disso, seu gesto o consagrou como o primeiro santo performático e naturista do mundo…

Tenho em casa algumas estatuetas que o recordam: uma comprei em Salvador; outra, em Sabará. Mas a mais realista foi adquirida em Assis, o lugar de maior encanto que já visitei. Durante todo o dia em que ali estive, num passeio-relâmpago cinco anos atrás, eu me senti abençoada, não há melhor palavra. Entrei na Basílica, arrepiei-me diante dos afrescos de Giotto, andei pelo espaço sagrado da cripta, depois percorri sem rumo as ruas inclinadas e antiquíssimas – mas o fundamental permaneceu invisível: a emoção de ainda encontrar, naquela cidade, a energia de um ser iluminado. Ele esteve ali oito séculos antes, sua túnica exposta na Basílica era tão desgastada quanto uma pele que se queimou, do seu próprio corpo provavelmente só restam vestígios… porém nada disso importava. A presença de Francisco paira em Assis e, óbvio, dirão os devotos, não somente lá.

Embora eu não me sinta à vontade em nenhuma religião (fujo de líderes e dogmas), sei reverenciar as energias superiores e reconheço o exemplo de São Francisco. Confesso inclusive que, de tão presente em meu cotidiano, ele às vezes me surge em sonhos, oferecendo a inspiração da sua existência, que foi tão simples quanto extraordinária.

O seu amor pela natureza, a sua integração com o todo traz o maior testemunho a respeito da paz. Ele condenou o especismo e desenvolveu uma consciência ecológica em plena Idade Média – foi, portanto, um visionário (mas assim não são todos os iluminados?). Os seus milagres e contemplações nos lançam a uma poética que só a mais refinada literatura atinge. Ele foi andarilho e recluso, reuniu multidões mas também sempre agiu sozinho. O que esse homem, defensor da harmonia holística e da fraternidade astral, diria atualmente sobre o planeta? Talvez usasse as mesmas orações, a mensagem que – por ser perfeita – permanecerá idêntica. Entretanto ela parece bem mais urgente agora, não é? Meditemos.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte)