A casa do Quinze

As fotografias são um trampolim do tempo; revejo aquela em que Rachel posa como Rainha dos Estudantes, e penso: essa era a sua aparência, quando escreveu O Quinze. Uma foto da casa no Pici acrescenta cenário à retrospectiva desse momento. Estive algumas vezes lá, em passeios investigativos para criar a biografia Rachel: o mundo por escrito (Edições Demócrito Rocha, 2010) – e reparei na divisão dos aposentos, atentíssima ao piso, às paredes. Eram os espaços em que a autora havia se recolhido para, muito jovem, produzir um dos melhores romances da literatura brasileira.

A casa, anunciada por grandiosos benjamins, talvez ainda guarde um pouco da atmosfera dos habitantes antigos. Ela não foi transformada em museu, e o fato de que permaneça sendo uma residência dificulta o acesso a esse patrimônio, claro. Mas na rua Antônio Ivo, ela se destaca – com certa solenidade que a velhice lhe atribui –, juntamente com as árvores. Enquanto viveu ali, Rachel de Queiroz também colaborava para o jornal O Povo, escrevendo crônicas, e atuou como professora da Escola Normal. Aos 18 anos, era mais nova que a maioria de suas alunas, daí ter sido eleita Rainha dos Estudantes. Aos 20, já concluíra O Quinze.

Quero crer que os espaços são, em certa medida, responsáveis por um destino. Não somente o país e a região de nascimento definem muita coisa na vida de alguém – idioma, cultura, tendência religiosa ou política, certas formas de pensar ou agir, crenças –, mas a própria moradia afeta um temperamento.

Viver numa casa, bem próxima da terra, das plantas, transitando pelos cômodos largos, de paredes grossas… como isso afetou Rachel? Em sua época, como percebeu, daquele justo lugar em que vivia, a chuva no telhado, a ventania fazendo crepitar as folhas dos benjamins ou passando veloz, como um assobio, pelas frestas das janelas? De que modo se aplicou a olhar para o céu, apostando em descobrir os formatos de nuvens, tendo em torno amigos e familiares que o dia inteiro zanzavam pelos quartos, pela cozinha de cheiros tão variados e frequentes? Como decidiu por suas histórias, quando começou a imaginar personagens e fixar palavras – e qual foi o instante preciso em que se deitou no chão da sala, inaugurando sua primeira noite a escrever em cadernos, à luz de um lampião?

Esses detalhes as fotografias não resgatam. Mas o salto que elas permitem, de volta ao passado, mistura imaginação com verdade. Observo de novo o rosto dessa Rachel ainda adolescente, bochechuda e numa pose graciosa. Transfiro mentalmente sua fisionomia para o interior da casa que ela habitou no Pici. Integro as existências – a pessoa, a morada, as árvores – numa harmonia que surge como um tipo de lufada: refresca, alegra e traz alívio. Mas é, ainda assim, bastante fugaz.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Um pensamento sobre “A casa do Quinze

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