A sabedoria das paisagens

Foto: Tércia Montenegro

Há mais de dez anos conheço Ana Miranda, embora a sua literatura eu conhecesse bem antes. Depois que passamos a conviver, entretanto, acontece uma coisa mágica quando leio seus livros: escuto a sua voz percorrendo as linhas. O seu timbre, tornado tão familiar, acompanha a história inteira, num embalo doce e secreto.

Neste volume de crônicas, a melodia de Ana Miranda me traçou vários temas. Levou-me para perto de outros escritores, como Rachel de Queiroz, José de Alencar, Natércia Campos… Mas também me fez passear pela sua memória mais pessoal. Este livro é um verdadeiro retiro que se vai construindo com pistas biográficas: o local de nascimento da autora, suas origens familiares, seus gostos, sua prática literária. Há reflexões sobre os costumes na capital e no interior, retratos do Nordeste, descrições de um tempo perdido, pinçadas de velhos cronistas – e aqui Ana ativa o espírito pesquisador que a fez brilhar pelos romances de veio histórico.

Há ainda os textos de humor, dentre tantos voltados para a poética, acentuando a beleza de palavras e superstições, a observação sobre nomes de flores e personagens, anagramas, lugares, hábitos… cada crônica é um mundo, são muitas harmonias que esta obra dispõe. Percorrê-la é se irmanar com essa paixão que a própria Ana Miranda tem pelos livros. É se tornar mais sábio, com as “asas invisíveis” que a literatura inventa, para nos arremessar em profundas viagens.

Tércia Montenegro (para as “orelhas” do mais recente livro de Ana Miranda, Histórias contadas pelo vento)

Portinari e suas poéticas

A mim sempre emociona, ver nascerem as personagens. Flagrar os bastidores do processo artístico – encontrando as fases iniciais de um projeto, com suas hesitações, experiências provisórias, testes – costuma ser uma lição de humildade e talento. Ninguém chega ao seu melhor sem passar por exercícios – e, ao mesmo tempo, quando o criador tem verdadeira perícia, um rascunho de sua obra já traz a marca do gênio. É um privilégio ter acesso a manuscritos, esboços, notas que mostram o trampolim de uma ideia, o lampejo – seguido por alguns recuos, ajustes… até que, de repente, o artista achou o ponto profundo, o caminho dentro do qual seguirá, firme e feliz.

A exposição sobre o universo gráfico de Portinari, em cartaz na galeria Multiarte, de Fortaleza, abre ao público a chance de viver esta experiência. Mas não somente adentramos a intimidade criativa do pintor: pelos seus desenhos, percebemos a vasta multiplicidade técnica que ele dominava.

Alguém que percorresse as seções desta mostra sem atentar para qualquer notícia, digamos, um visitante (nesta hipótese que agora invento) distraído a ponto de sequer saber que o mesmo autor – Candido Portinari – unifica todas as obras, essa pessoa facilmente poderia sair com a sensação de ter visto uma coleção de vários artistas. Porque, no fundo, são muitas as fontes que Portinari aciona, na complexidade de seu(s) estilo(s). A sua poética é híbrida, plural – conforme o tema, a fase, a matéria plástica.

Há cenas de ação agrícola, ciclos do trabalho – e os famosos retirantes, os despejados da terra e da sociedade. Os estudos para quadros mostram o treino (somos convidados a presenciar um ensaio antes do espetáculo), o artista manipulando seus temas preferidos. Figuras em reza, crianças desfalecidas: muitos corpos disformes que se apresentam quase como fantasmas, máscaras de dor. Este é o Portinari mais conhecido – e que prazer acompanhar o palimpsesto de seu processo, o surgimento de suas criaturas pelo traço!

Eu me detenho diante dessas mulheres que seguram crianças mortas: levam os corpinhos rijos logo abaixo dos seios – os filhos são a trava a lhes barrar o gesto, um corpo que elas não oferecem nem agarram, apenas sustentam, exatamente ali, horizontalmente sob o peito. Quando eles forem tirados delas, certamente o seu movimento será o de levantar as mãos vazias para o alto. Desespero ou prece?

Há uma partitura em Portinari.

Mas há ritmos inesperados, muitos, nesta exposição. E o novo chega ao máximo impacto, pela mudança estilística.

Na série Israel, encontramos um desenhista viajante, voltado sobretudo para a rapidez do registro, o reconhecimento do território. Vejo o traço veloz desta pequena imagem: árabe e israelita. Logo depois, na seção dedicada às ilustrações, encontro a multiplicidade com que Portinari abrilhantou, por exemplo, livros de Graham Greene ou André Maurois. Posso apenas reconhecer a mesma dança convulsiva, aplicada antes na paisagem de Cafarnaum, e agora investida na rispidez das Figuras (de 1954, em grafite), feitas para A cidade assassinada, de Antonio Callado. O restante da seção é um mistério mágico.

Os três desenhos surrealistas de 1936, feitos para poemas de Manoel de Abreu, trazem uma densidade lenta em sua textura aveludada, com o sfumato que indica a destreza no uso do carvão. E, se parece inesperado encontrar Portinari praticando surrealismo, mais adiante – nos Estudos para Painéis – juramos encontrar um trecho de Guernica numa peça de 1942, em nanquim. Saímos desta influência de Picasso para, bem perto, flagrar dois desenhos de animais – um tamanduá e uma corça – que se diria pertencerem ao caderno de um artista-viajante do século XIX.

Tudo isso é Portinari.

E ainda as cenas religiosas, com este belo Profeta, que me captura pela expressão de firmeza viril. Mais discreta, descubro a avó, Nonna, numa cabeça feita em malha de riscos. Seu traçado é semelhante ao de outra cabeça – este Rosto de mulher, de 1960, que parece surgir de um novelo, com os leves pontos de cor do lápis. Estamos diante de figuras familiares, e esta sensação foi bem premeditada. Dentre tantas técnicas, o artista sabe à perfeição o que usar, segundo o seu intento dramático.

Mas eu me rendo por completo é com esta pequena Mulher chorando, de 1955. O que temos, por um lado, parece tão pouco: uma postura debruçada, que se esconde sob os cabelos, simples feixes verticais a escorrerem por um corpo do qual praticamente se veem somente os pés, esquálidos. Nada poderia ser mais anônimo do que este vulto feminino em desespero – e, no entanto, nada é mais potente como tradução visual de um sentimento, todos os sentimentos pelos quais as mulheres ao longo dos séculos choraram.

Fecho os olhos diante desse quadro, para buscar uma forma de silêncio. Ali, no meu escuro interno, ainda o tenho. Ele está comigo inclusive enquanto termino este texto.

Portinari persiste.

 

Tércia Montenegro (texto produzido para a galeria Multiarte e publicado também no site dela)

Visada – Grupo de investigação do Texto Visual

Ainda aproveitando o dia da Fotografia, declaro o início oficial do Visada – Grupo de investigação do texto visual, que terá suas atividades no curso de Letras da UFC. Agradeço ao Coletivo Colher pela bela logomarca!

Deixo abaixo maiores informações.

VISADA – Grupo de investigação do Texto Visual

Coordenação: Profa. Dra. Tércia Montenegro Lemos

Encontros às segundas-feiras, de 11h50 às 13h20, a partir do dia 26 de agosto.

Critérios de participação:

– ter interesse por pesquisa e/ou produção de textos visuais

– ter cursado a disciplina de Semiótica ou de Teoria da Imagem Fotográfica

Interessado(a)s devem se inscrever, enviando um email para grupovisada@gmail.com

Fotografia extrema

Um dos meus grandes prazeres, durante o semestre letivo que se encerrou, foi trabalhar com os alunos de Teoria da Imagem Fotográfica os textos de Calvino e Cortázar sobre o vício em imagens. A ocasião de encontrar um artista tratando de outra linguagem criativa que não é a sua prática primordial expande reflexões de modo assombroso. Existe essa distância, o tom de estranhamento que se mantém, o passo recuado que nos faz observar as coisas sob um ângulo que os profissionais da área esquecem, por estarem completamente mergulhados no assunto. E tantas vezes na docência se perde esse ponto de vista do neófito! Um professor pode facilmente se empolgar com a própria aula e começar a falar para si mesmo, e não para os outros. Colocar-se no lugar da experiência alheia é a principal situação do magistério – e é o que permite a um professor aprender constantemente, não somente repetir palavras ao longo da vida.

E, tratando de palavras, o conto de Cortázar começa por esbarrar nas margens do indizível: “Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus rostos.”

Sentir-se constrangido por uma gramática, uma estrutura que nos impõe modos de dizer, é semelhante a se ver limitado pelo corpo, único – até onde se sabe – instrumento de existência. Não há escapatória. N’As babas do diabo, essa história de um fotógrafo que é também tradutor (transitando entre o espanhol e o francês, assim como o próprio Cortázar), chega à proposta de que toda criação é uma tradução. A arte em si já traduz a realidade, as sensações. Exatamente por isso (lembremos a máxima traduttore/traditore), o exercício artístico sempre inventa, nunca é completamente fiel a nada.

Se o gesto fotográfico ainda sofre com especulações que o vinculam a um mundo real (seja lá o que isso for), Cortázar em seu texto vai além e pretende talvez investigar o “segredo sobre um segredo”, conforme disse Diane Arbus em seu conceito de fotografia. Sua história explora a obsessão de um indivíduo, que certo dia registra um jovem e uma mulher, num ato quase que de descuido – mas depois, diante da imagem ampliada, surpreende-se ao flagrar uma situação maliciosa, praticamente um crime, indicado pela cena. O conto explora nos seus melhores momentos o estado de ânimo do protagonista traduzido em imagens (que, por sua vez, são traduzidas em palavras): “O que resta por dizer é sempre uma nuvem, duas nuvens, ou longas horas de céu perfeitamente limpo, retângulo puríssimo cravado com alfinetes na parede de meu quarto. (…) tudo é uma nuvem enorme, e de repente explodem os respingos da chuva, vê-se chover longo tempo sobre a imagem, como um pranto ao contrário, e pouco a pouco o quadro se aclara, talvez o sol saia, e outra vez entram as nuvens, duas a duas, três a três. E as pombas, às vezes, e um ou outro pardal.”

A presença destes trechos nos recorda como Cortázar um dia lamentou, em entrevista a Omar Prego Gadea, não ter se lançado como gostaria à experimentação, por receio de chegar à incomunicabilidade. Esse era, conforme o seu próprio juízo, o seu maior defeito como escritor: “Não ter coragem suficiente para levar adiante experiências que entrevi no campo mental e que não levei para a escrita porque senti que rompia totalmente as pontes com o leitor” (La fascinación de las palabras, pág.294).

A metalinguagem, nesse sentido, é um tipo de investigação inevitável: o artista questiona seus limites, suas possibilidades. Por que narrar? Por que fotografar? “Uma das muitas maneiras de se combater o nada”, responde o protagonista deste conto, que se revira com cada mínima escolha lexical: “Agora mesmo – que palavra agora, que mentira estúpida”. Não há o que fixe o tempo, embora se tenham criado mecanismos (como a máquina de escrever e a de fotografar) que criam esta ilusão de paralisia, ao apontar para “a vida (…) que uma imagem rígida destrói (…) se não escolhemos a imperceptível fração essencial”.

Calvino, no seu texto “A aventura de um fotógrafo”, igualmente se obceca pela captação do tempo. Aos poucos, seu personagem Antonino Paraggi desenvolve um desejo de controle que o leva à loucura. Começa por perceber a efemeridade do clique, que é a mesma da existência: “Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotografá-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necessário fotografá-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos de um pai um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável.”

Embarcando numa busca filosófica pela “essência” da fotografia, o protagonista passa a desenredar “o fio das razões gerais dentro dos emaranhados particulares”. Questiona se a realidade é fotografada por parecer bonita ou se, pelo contrário, a realidade parece bonita porque é fotografada – e elege uma escolha para o seu corpus de pesquisa: excluirá os contrastes dramáticos, as fotos antigas, posadas, e trabalhará somente com os instantâneos. São estes que podem garantir uma “posse tangível do dia passado”. O fotógrafo, assim, passa a ser visto como o “caçador do inalcançável”: sua utopia, por um lado, aponta para a “fotografia única”, perfeita, essencial – mas, por outro, indica a urgência de múltiplas imagens, que possam (re)construir a vida, torná-la documentada a um tal ponto que ela poderia ser eternizada.

“Tudo o que não é fotografado, é como se não tivesse existido”, admite Paraggi, num extremismo que reconhecemos facilmente hoje, nas redes sociais. O fenômeno é discutido por Fontcuberta e outros teóricos que se debruçam sobre a era da chamada pós-fotografia, quando a proliferação de imagens supera em muito o seu consumo. Mas décadas antes, Calvino já meditava sobre os limites do fotográfico, ou a falta deles: “A fotografia só tem sentido se esgotar todas as imagens possíveis”, ou seja, se cair na realidade. Isso é o que gera o colapso, a que Paraggi se entrega no final do conto: a fotografia do nada, a destruição, os fragmentos, a fotografia da fotografia (à la Sherrie Levine).

Assim retornamos à metalinguagem, vista já no texto de Cortázar e presente em qualquer aula que se queira interativa. Talvez ela seja a maneira vital de mantermos um diálogo com aquilo que concebemos e com o público – esse outro – que sempre nos justifica.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho)

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