Cada uma de nós

As coisas precisam avançar. Aqui em Fortaleza, fico sabendo da pesquisa de atrizes como Elisa Porto, Maria Vitória e Paula Yemanjá, que ressaltam o valor das mulheres em muitas estéticas e profissões. Inclusive no âmbito político e militar, nossas ancestrais atuaram fortemente – e o orgulho de conhecer os detalhes se equipara ao desgosto de perceber o quanto demorou (e ainda demora) para que esse anonimato acabe, e as mulheres deixem de ser empurradas ao segundo plano da História.

Muitos de vocês já conhecem o trabalho de Regina Dalcastagné, que desde 2005 investiga o perfil médio do escritor brasileiro – e a estatística mostra que os autores na maioria são brancos (93,9%) e homens (72,7%). Pois essa tendência pode ser observada em diversas outras linguagens, se suspeitarmos que a arte promove, inevitavelmente, os privilégios de seu tempo.

Se tomarmos, por exemplo, o Teste de Bechdel, que indica o machismo em narrativas, encontraremos resultados preocupantes. A proposta foi inspirada por Alison Bechdel, que em 1985 produziu uma história em quadrinhos na qual uma personagem feminina sem nome diz que só assiste a um filme se ele satisfizer os seguintes requisitos: 1) Deve ter pelo menos duas mulheres. 2) Elas conversam uma com a outra. 3) Sobre alguma coisa que não seja um homem.

Uma reflexão atenta mostra que grande parte dos filmes, livros ou espetáculos teatrais – principalmente (por que será?) os de tendência cômica – não passa no teste. As mulheres são apresentadas de forma estereotipada e sem profundidade, como se os seus interesses se restringissem à vida amorosa ou familiar. E, caso se procurasse filtrar ainda mais (dentro da perspectiva do Teste de Bechdel) os temas sobre os quais as mulheres conversam em obras de ficção, o desastre seria completo: quantos exemplos sobrariam, se as personagens femininas devessem discutir sobre assuntos que não envolvem filhos, gestão doméstica ou preocupações com a aparência? Quantas obras trazem protagonistas interessadas em mercado de trabalho, política, esporte, filosofia, ciência, urbanismo?

O lugar das mulheres na arte, enquanto criadoras ou personagens, continua marginalizado: elas são vistas como figuras menores, de pouca profundidade, com mínima possibilidade de expansão. Continuam empurradas para a última fila, quando não são de fato ignoradas, engolidas pelo silêncio. Recordemos que há mais de 40 anos o artigo “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, de Laura Mulvey, foi publicado, criticando a representação convencional das mulheres – mas a maioria dos filmes prossegue com os mesmos vícios. Vícios propositais, conforme Angela McRobbie, que em artigo sobre pós-feminismo e cultura popular expõe como as conquistas sociais dos anos 1970 e 80 foram enfraquecidas a partir da perniciosa ilusão de que a igualdade está alcançada.

Felizmente, vêm surgindo muitas iniciativas para superar esse mecanismo de violência e desprezo (duas faces da moeda). O movimento Nós Propomos, por exemplo, aparece aqui no Brasil como uma extensão do projeto que nasceu na Argentina (Nosotras Proponemos). Os seus compromissos com práticas feministas no campo cultural, literário e intelectual estão disponíveis no site http://nosotrasproponemos.org.

Segundo Paula Parisot, o movimento começou “no dia 5 de novembro de 2015, quando a artista Graciela Sacco faleceu. Nesta ocasião várias artistas argentinas em suas páginas de Facebook recordaram não só a potência da obra de Graciela Sacco, mas também ‘as formas sutis – e nem tanto – com que o machismo na cena artística de Buenos Aires havia atuado, de distinto modo, contra ela, como artista e como pessoa’, como explica Andrea Giunta no seu livro Feminismo y Arte Latinoamericano – Historias de artistas que emanciparon el cuerpo (siglo XXI, 2018).”

Uma das propostas do grupo, por uma garantia legal de aborto seguro, demonstra – pela polêmica que produz – o quanto algumas pessoas não admitem que a mulher seja sequer dona de seu próprio corpo. Recentemente, Débora Diniz, professora e pesquisadora da UnB, chegou a sofrer ameaças e intimidações por um grupo de direita. Sua fala do início de agosto sobre a descriminalização do aborto, em audiência no STF, é recomendável para toda a humanidade. Igualmente essencial é o documentário Primavera das Mulheres, de 2017, produzido pela roteirista Antonia Pellegrino e pela diretora Isabel Nascimento Silva. Os muitos feminismos são necessários para garantir, pela presença plural, a igualdade de gênero.

Paralelamente a essas iniciativas que apontam para o futuro, as tendências de resgate do passado se multiplicam. O Coletivo Elsa von Freytag-Loringhoven busca provar como essa artista de vanguarda foi a verdadeira autora do famoso urinol que tanto revolucionou a arte – mas acabou roubada por Marcel Duchamp.

Nas mídias virtuais, uma série de postagens levanta outros nomes de mulheres na ciência que tiveram os seus trabalhos silenciados ou tomados por homens. No esporte, na política, em diversas áreas explodem situações similares – e em vários países a discussão sobre os papéis sociais do feminino e do masculino cresce. Num projeto de postagens no Facebook, a escritora Carola Saavedra vem levantando a importância de várias figuras: María Luisa Bombal, Ingeborg Bachmann, Leonora Carrington, Unica Zürn, Kati Horna, Remedios Varo, Elfriede Jelinek, Ana Mendieta, Sóror Juana Inés de la Cruz, Graciela Iturbide, Paula Modersohn-Becker e Hilma af Klint. A recente exposição Radical Women, na Pinacoteca de São Paulo, também reforça a qualidade da presença feminina na arte. As coisas estão, portanto, avançando.

Mas não é o suficiente. Basta olhar as estatísticas (de feminicídio e violência doméstica: sempre alta; de presença de mulheres em postura equitativa à dos homens, no espaço profissional: muito baixa). Ou basta que qualquer pessoa se indague se ainda hoje caem sobre ela interdições ou exigências motivadas simplesmente pelo fato de ela ser mulher. Esse termômetro é um bom indicador de desmascaramento. E revela, a longo prazo, verdades assombrosas sobre a educação que recebemos – inclusive de nossas mães e avós. Elas nos ensinaram a repudiar mulheres, tratá-las como rivais, concorrentes. Como se continuássemos a depender financeiramente de um homem, o tal “provedor do lar” que iria garantir nossa vida, e a dos descendentes. Em torno desse varão, o mundo girava. As outras mulheres eram ameaças.

É preciso agora um trabalho vigoroso na direção contrária. Se cada mulher olhar a outra com a delicadeza de uma identificação cúmplice ou com uma predisposição amigável, tudo já começa a melhorar. Se cada uma de nós se voltar para a amiga, irmã, vizinha, colega, aluna – com uma iniciativa de cuidado e afeto, com amizade protetora –, a transformação acontece. Como diz Antonia Pellegrino numa entrevista, “o processo de se tornar feminista é o de se refazer internamente”. Demolir crenças e medos, culpas e ódios: tudo isso é bem mais urgente do que se pensa.

Tércia Montenegro (texto para a coluna Tudo é Narrativa, do jornal curitibano Rascunho)

Foto: Coletivo Colher

42 vezes 24

Estou no inverso daquela época, quando a juventude me desamparava. Embora desde sempre eu enxergasse os fatos com seu devido peso e inegável verdade, havia a opressão do respeito pelos outros, mais velhos. Hoje eu sei que eles não eram sábios. Não conheciam mais sobre o mundo e a vida: se me colocaram obstáculos, foi por ignorância, medo – ou por maldade mesmo, exercício de poder.

Gostaria de dizer àquela que fui aos 24 anos (e que continua, fixada na sua faixa de tempo): você se salvou lindamente. Eu não me esqueço nunca de você – e agora aproveito.

Foto: Coletivo Colher

20 anos de prosa

Amigos, repasso este convite com muita alegria!

Dia 19 de setembro, às 18h, os Encontros Literários Moreira Campos (ELMC) em parceria com o Departamento de Literatura e o Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras) da Universidade Federal do Ceará (UFC) apresentam o evento “Tércia Montenegro, 20 anos de prosa”. A mesa acontecerá em comemoração às duas décadas de publicação da obra “O vendedor de Judas”, da escritora e professora da Universidade, Tércia Montenegro. Convidamos todas as leitoras, leitores e demais pessoas interessadas a prestigiar e discutir a obra aniversariante, assim como os demais livros de contos da autora, que também é romancista e fotógrafa. Para a ocasião, serão convidadas à fala as professoras Cleudene Aragão (UECE), Juliana Diniz (UFC) e Glória Diógenes (UFC). #EncontrosdaUFC

Mais informações: http://www.encontrosliterarios.ufc.br/

Inscrições: https://docs.google.com/

Local: Auditório José Albano – CH I/UFC.

 

O coração e a serpente

Desde o século XIV, numa capela de Pádua, certo afresco de Giotto lembra a fusão de valores em torno dos vícios e virtudes. Uma criatura feia, que cospe uma serpente e leva um saco repleto de moedas, contrapõe-se ao seu extremo bondoso: a generosa mulher que segura uma cesta farta e – em suave coreografia – entrega o próprio coração a Deus, representado pelo minúsculo profeta no canto superior da imagem. Ora, esta fértil camponesa é a personificação da Caridade, a virtude que se costuma opor aos terríveis impulsos de avareza.

Para Giotto, porém, a Caridade forma um par maniqueísta com a Inveja. É ela quem vomita a víbora – e, se por este gesto podemos associá-la às maldades e infâmias características de um invejoso, por outro lado o tal saco com moedas nos faz pensar no apego aos bens, traço constitutivo dos avarentos. É pela idolatria material que a figura parece assar nas chamas que lhe sobem pelas pernas. A serpente a sair de sua boca, assim como os olhos inflamados e a orelha pontuda, talvez contribua muito mais para a repulsa que o pintor pretendeu inspirar, no retrato do vício. Uma aparência diabólica, aliás, fazia parte da identificação de Mamon, o demônio do dinheiro, príncipe do inferno também pintado a carregar uma sacola cheia.

A complexidade em torno das representações dos pecados não se resume a este exemplo – mas ele nos bastará, por enquanto. A questão imagética mostra, em termos bem didáticos, o quanto oscilam as interpretações e como elas podem se cruzar. Se a Caridade é virtude inquestionável, qual seria o seu contrário? Inveja, ganância ou avareza (alguns podem apontar ainda a gula e a luxúria) circulam, todas, por relações de desejo. O indivíduo que ambiciona e jamais encontra saciedade é um viciado – e uma vítima dos anseios.

São tantos os quereres, que parece impossível evitar a tentação em alguma medida. Mas há, vamos admitir, temas dignos de cobiça, enquanto outros apenas revelam modismos, satisfações superficiais ou falta de criatividade do pretenso ambicioso. Assim acontece quando alguém hoje suspira por veículos, aparelhos eletrônicos, dinheiro, roupas – elementos que não têm valor para além da necessidade social que lhes foi imposta. Ter ganas de agir, em vez de possuir, já indica vontade um pouco mais refinada. A ação pode se traduzir numa viagem, numa mudança de emprego ou na decisão de conquistar a pessoa por quem se está enamorado: em todo caso, a ambição se volta para uma experiência, não para uma coisa, propriamente.

O ponto seguinte – que muitos nunca alcançam – é o desejo de algo abstrato, de mudança íntima. Pode envolver desde o crescimento intelectual até um amadurecimento místico. É claro que, para se aproximar deste alvo incorpóreo, faz-se necessário algum procedimento físico: frequentar um curso, dedicar-se a leituras ou meditações etc. O impulso, em qualquer medida, impõe esforço e planejamento estratégico; o problema não está aí.

Na escala viciosa, o pior ganancioso somente chafurda na inveja: é mesquinho e egoísta, autocentrado; quer o que os demais têm, e quer só para si. Às vezes – num nível extremo de avareza – não quer nem mesmo assim. Esconde os benefícios de sua própria pessoa, tranca os bens em cofres, torna-se um obsessivo guardião daquele tesouro, em louca idolatria. Com exceção destes casos perniciosos, a ganância pode até ser uma qualidade. Se funcionar como élan, motivação, meta a seguir sem prejuízo alheio, qual o pecado? A ganância em tal sentido é um trampolim, é o começo do mundo. No princípio bíblico ela já se destacava, como luz imperiosa precisando brilhar, explodir, fazer-se conquista. Mas então – óbvio – a vontade divina excluía a posse ciumenta; era autêntica abundância, ganho em puro senso de fartura.

Ninguém faz votos de escassez ao felicitar uma pessoa. Ao contrário, conforme a tradição desejamos prosperidade, vida fecunda como equivalente a feliz. Mas a boa medida aqui se torna decisiva: riqueza em excesso costuma trazer inquietações. Desconfianças, medo, urgências no ritmo vertiginoso criado pelo fetiche de acumular – tudo isso deve ter o efeito de uma armadilha. Perto de um milionário neurastênico, qualquer boiadeiro será mais saudável.

Para voltar à Caridade, esta camponesa virtuosa não indica exclusivamente altruísmo, gesto em direção ao outro. Ser desprendido é, de fato, uma atitude libertária: basta lembrar Francisco doando até a roupa e tornando-se o primeiro santo performático e naturista do mundo – ou então Gautama renunciando ao trono no Nepal para sair em errância iluminada. O desapego, antítese da ganância, além de promover uma aura de santidade, prova que a renúncia material envolve um estado de sabedoria. É provavelmente a melhor maneira de deixar o coração leve, antes que a serpente nos morda no paraíso…

Não se trata, portanto, de anular a ganância por completo. Isso equivaleria a deixar de viver. Mesmo o não querer nada pode ser entendido como um anseio – o da autoplenitude, da satisfação com o fundamental. O lado ressequido e estéril das vontades, a avareza, deixa de existir quando o desejo se expande dessa maneira. Se nos enxergamos enquanto seres mais fartos que frágeis, mais realizados que humildes, só então – depois deste reconhecimento pleno – arriscaremos querer o máximo. Ousaremos querer tudo, a completude que já não nos mutila se falta, porque temos o essencial, e o essencial extravasa.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho. Leiam também postagem anterior sobre esta obra de Giotto em https://literatercia.wordpress.com/2013/04/06/giotto-por-proust/)