O que não se esconde

Coletivo Colher

Hoje comemoramos um ano do Coletivo Colher, e há vários motivos de alegria! Nossa parceria artística trouxe grandes conexões, êxtases e êxitos diversos. Expusemos uma série fotográfica na Casa de Cultura Alemã, fizemos ações urbanas e aquáticas, algumas que inclusive saíram do país (caso da performance Zona B), e – o mais importante – os projetos continuam a crescer! Divulgamos agora este recente trabalho, O que não se esconde, para marcar nossos festejos e fazer um agradecimento retrospectivo aos envolvidos, com destaque para os queridos parceiros Helder Weiss e B. Ayres, que oxalá possamos logo rever. Uma lembrança especial vai também para a performance revisitada da obra de Sophie Calle, na semana passada! Vida longa para nós!

Brennand

Exatamente um ano atrás eu estava em Recife. Em meio a várias reflexões e compromissos acadêmicos, acionei o antigo desejo de conhecer a Oficina Brennand, no bairro Várzea. A experiência foi mística, não tenho como definir de outra forma. Revejo agora fotografias desse passeio e me transporto de volta para lá. Reencontro as estátuas protetoras, os bichos: um mundo de fábulas íntimas que eu percorria, como se entrasse por baixo das pálpebras de Brennand e pudesse conhecer as histórias que ele sonhou durante décadas, para depois nascerem petrificadas. Eu dava voltas, contornava os objetos, tornava a um e outro, comparando. Queria adivinhar a experiência geradora, o impulso antes da obra, o símbolo do cisne, do jaguar, do pássaro rompendo o ovo – que vontade precedeu cada imagem?

E os textos (sim, eles também estavam ali, nas paredes, tão plásticos quanto os outros seres): “Não interrompam este silêncio. Não interrompam este sonho”. Fragmentos de Ariano Suassuna, de Joseph Conrad ou dos Eclesiastes criavam estações – paradas necessárias para deixar o pensamento ecoar.

Há portais nos jardins, painéis de cerâmica – várias edificações, refúgios para diferentes propósitos do autor. No prédio principal se encontram as obras-primas em escultura, com insistentes formas eróticas. Cabeças inclinadas sugerindo falos, gigantescos elementos priápicos a compor tantos personagens – Galatea, Hiera, Halia, Oreste, Calígula, Édipo, Vênus, Semíramis. E as figuras femininas, fendidas e férteis, surgem no esbanjamento daquela orgia estética. Muitas referências clássicas, históricas ou míticas, mas cada uma vista sob esta perspectiva: o festejo do corpo. A abundância vital.

Não tive dúvidas de que a longevidade do autor está ligada a esse tipo de celebração. Depois de passear durante horas pelo espaço, eu o encontrei – e ali, na figura daquele homem alto, de 95 anos, de repente vi concentrados todos os ancestrais, Rembrandt, Monet, Balthus, Picasso… Foi como se eu entrasse no olho do Aleph, ou me empoleirasse em frente à Máquina do Mundo, levada por espirais de tempo para a frente e para trás, condensadas num minuto. Depois tudo se resumiu numa frase: “Ele não se submeteu”, surgida enquanto eu cumprimentava Francisco Brennand e recebia o seu presente – o Diário em quatro volumes (O nome do livro) que ainda hoje continuo a ler. A frase era uma espécie de lema para compreender a Oficina, a produção em esculturas e pinturas, os temas, os estudos… A persistência de um criador que constrói o próprio mundo: isso representa o mais profundo pacto que se pode ter com a arte.

Mas o turista em Recife deve prestar atenção para não confundir a Oficina de Francisco Brennand com o Instituto Ricardo Brennand. Este último apresenta-se como uma coleção montada por um industrial parente do artista. O espaço tem um contexto muito agradável, cercado pela mata atlântica. Mas quem busca a fruição típica dos museus sai de lá horrorizado: as peças estão dispostas sem qualquer coerência cronológica ou estética, sem legenda, seguindo apenas o gosto pessoal do proprietário ou alguma anedota de sua vida, que um esforçado monitor buscava me esclarecer.

O visitante deveria ser advertido de que o lugar foi concebido como um depósito, ou como a extensão da casa de alguém. Quem paga o ingresso pode espiar (mas não aprender, como é uma função dos museus). Sim, espiamos um acúmulo de obras; genuínas ou reproduções, estavam todas indistintamente juntas.

No jardim, uma escultura de Botero formava grupo com um rinoceronte de outra autoria e época – e o motivo daquela junção era o material comum, de que eram feitas as peças! Numa das salas, um tapete de Gobelin ficava em frente a uma mão do ateliê de Rodin. Um Bom Jesus da Agonia, do Barroco mineiro, bem como um arco de igreja do mesmo período, fazia a gente pensar na história dos trajetos, saques, revendas e complexas transações comerciais que as obras sacras – não apenas do Brasil – já sofreram. E, para ir a um local bem distante, havia ali também a China, representada por um gigantesco e terrível navio feito de marfim (quem puder, pense no tamanho da matança que uma obra assim representa).

A sala das figuras de cera, mimetizando em paralisia o julgamento de Nicolas Fouquet, juntamente com o castelo onde estão guardadas as armas – de uma variedade abominável, dentre canivetes, sabres, cimitarras, pistolas – trouxe um toque curioso à visita, que desse modo não me proporcionou somente angústia. Mas eu precisei passar um bom tempo em meio às plantas para reencontrar um eixo de tranquilidade. A grande beleza do Instituto é de fato a natureza circundante; na Oficina, ao contrário, tudo é primoroso e interessante. Não fica difícil fazer uma escolha.

Tércia Montenegro (texto publicado no jornal Rascunho – edição de março de 2019)

H! Mulheres!

Passei uma semana no Mato Grosso, viajando a convite do Sesc. O belo projeto Arte da Palavra, que leva escritores para conversas com alunos (de escolas e universidades) de vários locais do país, fez com que eu me convencesse ainda mais de como somos diversos e ricos, enquanto nação – apesar de todo o massacre dos que estão “no poder” (e as aspas indicam que realmente não considero que este tipo de poderio seja o verdadeiro). Mas um projeto assim inevitavelmente leva a reflexões sobre matéria linguística, também: os sotaques, o léxico, a melodia frasal… há muitas formas de falar a língua brasileira. Expressões de espanto, como o “Vôte!”, entravam no fluir das conversas e, em Poconé, o “Agá!” (que me disseram aparecer como “H!”, em grupos locais do whatsapp) tem valor equivalente.

Para além das gírias, Luisa Geisler, com quem dividi as palestras, chamou-me a atenção para um fenômeno que – aparentemente sutil – nos levou a um sério pensamento. Por duas ocasiões, pessoas responsáveis pelo projeto se dirigiram a nós com o vocativo “Mulheres”: “Sejam bem-vindas, mulheres”, “Venham por aqui, mulheres”. Nossa estranheza inicial revelou que estávamos acostumadas – eu em Fortaleza, e Luisa em Porto Alegre – ao aparentemente delicado tratamento de “meninas”. Meninas, garotas, gurias… variações infantilizadas que tantas vezes foram a escolha do(a) interlocutor(a). Como se chamar alguém de mulher fosse violento demais. Ou como se nos fosse exigido um comportamento menos adulto ou impositivo, numa determinada ocasião. Em outros países, isso me parece inadmissível. Pensem se na França ou nos Estados Unidos, por exemplo, um organizador de congresso chamaria suas convidadas de “filles” ou “girls”, ao convidá-las para ocuparem uma mesa-redonda. Mas aqui, vezes sem conta aconteceu comigo: o tal organizador justificava o seu “menina” com um sorriso ou gesto descontraído.

E o pior é que até agora eu não tinha organizado meu incômodo na forma de um pensamento bem claro. Eu não quero descontração neste momento, quero respeito. Não há informalidade profissional que justifique este pernicioso eufemismo, que na verdade é uma forma de reduzir o valor. Mulheres adultas nunca serão meninas quando exercem seu ofício: são professoras, escritoras, pesquisadoras, fotógrafas, engenheiras, cientistas, bailarinas etc. Há sempre outra opção para reconhecer verbalmente que as mulheres estão no seu lugar. No lugar certo.