Tatuagens secretas

Já vai longe o período contestador em que a rebeldia se manifestava através de tatuagens. Numa era em que alargadores de orelha, próteses e implantes subcutâneos disputam atenção, a pintura corporal dificilmente assombra. Penso, por exemplo, no caso de um artista que se cobriu com desenhos de serpente, caveiras, dragões e outros símbolos de violência – apenas para perceber que continuava tão inexpressivo quanto na época em que era um adolescente pesando 58 quilos. Desesperado, ele fez mais um esforço para se sobressair: deu um tiro no próprio pé, raspou a cabeça e engoliu anabolizantes. A performance lhe rendeu uma citação na CACA – Coletânea de Arte Contemporânea Ativa – mas não foi além disso.

Entretanto, se nos tempos atuais a tatuagem perdeu em gesto político e pasmo estético, ao menos continua válida aos que querem marcas definitivas de suas paixões. Dentro dessa linha, estão na moda as inscrições reclusas, que ficam sob a roupa, debaixo dos cabelos ou em algum lugar habitualmente escondido (pode ser sob a máscara). Ouvi o relato de um casal que compartilhava de idêntico fervor literário e, assim, cada qual decidiu tatuar versos favoritos pelo corpo. Fizeram isso antes de se conhecer – então imaginem o fascínio do rapaz quando decifrou o Rosa de “Nonada” ao redor do umbigo da moça. Continuou a despi-la, para encontrar o camoniano “Amor é fogo que arde sem se ver”, sugestivamente inscrito sobre as nádegas. Ela também se empolgou, ao constatar que o rapaz trazia um Drummond no lado interno de uma das coxas: “Que pode uma criatura, senão, entre criaturas, amar?” Acima da virilha, ele havia posto um Augusto dos Anjos que a fez sorrir com malícia – o “Monstro de escuridão e rutilância” era um ótimo par para o seu Jorge de Lima (“Essa negra Fulô!”) rabiscado no baixo-ventre…

A história desse casal é poética em explicitudes, embora eles argumentem que fora da cama ninguém suspeita de suas preferências líricas ou eróticas. De qualquer modo, muito mais misteriosa foi a tatuagem encontrada numa freira canadense, que morreu dentro de um convento onde estivera confinada desde os 15 anos, em rigorosa reclusão. Descobriram, por ocasião da limpeza em seu cadáver, uma frase acima do seio esquerdo: “Je me souviens” – “Eu me lembro”, em francês. A primeira interpretação apontou um fervor patriótrico que teria levado a freirinha a reproduzir no peito a divisa oficial do Québec. Suas irmãs religiosas, porém, aventaram um motivo mundano para que ela gravasse no corpo um tipo de memória que já não podia reviver (embora ainda neste ponto haja controvérsias; afinal, quando e como sua tatuagem – tão profissional – teria sido feita?). Sob os hábitos, persistem segredos inconfessos.

Agora, quando vejo os transeuntes passando, sempre imagino ornamentos, cores e letras que os transformam em secretos letreiros. Mas pode ser que esteja exagerando; até os camaleões têm seus dias de fechar os olhos e sonhar que o mundo é neutro.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)

Man Ray

Coleções: metáforas

Uma biblioteca é sempre dinâmica: há livros que chegam, outros que partem, mas mesmo os que permanecem faço circular por minhas estantes. O principal motivo é quando descubro, por exemplo, que dois autores se detestavam (então jamais deixo suas obras lado a lado: é preciso respeitar os fatos biográficos, ainda que a história de alguém muitas vezes nem chegue à sombra da importância do que escreveu). O outro motivo, mais amistoso, surge quando percebo que determinados livros têm afinidade – de tema, de estilo, de abordagem existencial… são muitos critérios possíveis.

Recentemente Susan Sontag e Georges Perec passaram a ser vizinhos, cúmplices de prateleira aqui em casa. Tomei a decisão depois que li O amante do vulcão. Dentre os vários assuntos deste livro (qual obra de valor escapa dos plurais?), o colecionismo talvez seja o mais enfatizado. Com um verdadeiro estudo do temperamento do colecionador, é claro que Sontag fica confortável na companhia de Perec, assim próxima d’A coleção particular, bem como de outros títulos do autor, que de maneira mais ou menos indireta também abordam o tema: A vida – modo de usar, Les choses, Tentative d’épuisement d’un lieu parisien

Um artigo sobre O amante do vulcão, publicado na revista chilena Aisthesis, em dezembro de 2019, por Olaya Sanfuentes, ressalta que Sontag se declarou muito satisfeita com esse romance, porque todo o conjunto de elementos culturais que a interessaram para que executasse sua escrita estão presentes de modo onívoro: o gosto pela arte, as discussões a propósito da beleza, o mundo dos clássicos e sua reprodução, o papel da mulher, o colecionismo. Seu protagonista, Il Cavaliere, que aponta para o personagem histórico sir William Hamilton, para além de vulcanologista, foi um eminente colecionista do século XVIII.

Comenta Sanfuentes: “A metáfora do colecionista é perfeita para ela, que se vê refletida no personagem de Hamilton. Sua avidez, sua impossibilidade de saciar-se, a necessidade de possuir tudo, de saber tudo, refletem Sontag.” A escritora foi uma colecionadora de histórias, de aventuras, anedotas e livros. Podemos também lembrar que logo no início do clássico Sobre fotografia, Sontag cita a ideia de colecionar fotos e montar um filme (Si j’avais quatre dromadaires, de Chris Marker) como uma coleção delas. Nada mais coerente, portanto, que em O amante do vulcão encontremos passagens de verdadeira elegia ao colecionismo, como as que seguem:

“As grandes coleções são vastas, não completas. Incompletas: motivadas pelo desejo de completar. Sempre há mais um. E mesmo que você tenha tudo – o que quer que isso seja – você talvez queira uma cópia (versão, edição) melhor do que a sua; ou, se são objetos produzidos em massa (cerâmica, livros, artefatos), simplesmente uma cópia extra, caso a sua seja perdida, roubada, quebrada ou estragada. Uma cópia de reserva. Uma coleção-sombra.

Uma grande coleção particular é um concentrado material que continuamente estimula, superexcita. Não só porque sempre pode receber acréscimos, mas porque em si já é demais. A necessidade do colecionador é precisamente de excesso, exagero, profusão.

É demais – e é justo o suficiente para mim. Alguém que hesita, que pergunta, Será que eu preciso disso? Será que é mesmo necessário? não é um colecionador. Uma coleção é sempre mais do que é necessário.”

Em última instância, consideremos que o colecionismo de Sontag voltava-se para o manejo das próprias palavras – e, embora com estratégias diferentes, Perec igualmente se ocupou deste tipo de atenção seletiva, como bom integrante que foi do grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle). Além disso, ele atuou como verbicrucista, ou seja, foi autor de palavras cruzadas: mais uma forma de lidar com as peças do léxico sob extrema destreza e, provavelmente, com o apuro de um colecionador.

Por um lado, o ato de colecionar remete ao garimpo de fragmentos, pedaços – de objetos, imagens, produtos das mais diversas naturezas – encontrados aqui e acolá. É um método que passa pelo fortuito, celebra o acaso em grande medida. A escrita ensaística simula esse ritmo; o interesse migra de um assunto a outro, concentra a lupa num fenômeno, olha-o com profundidade descritiva, mas depois o abandona. Não passeia com ele nem se dispõe a transformá-lo, submetendo-o às intempéries de regiões imprevistas.

No caso dos romances, o universo temático é desdobrado ao longo de centenas de páginas, num embalo completamente diferente dos cortes ensaísticos. Afinal, ainda que os capítulos de uma narrativa extensa possam ser breves, sua estrutura avança numa única direção – e isso não se parece com os passeios de ida e volta que os ensaios realizam. Mesmo que unificados dentro de um livro, cada capítulo de um volume de ensaios é independente; todos eles podem visitar repetidas vezes o mesmo destino, mas sempre formarão diversos trajetos, nunca uma viagem só, que exige maior resistência.

Essa reflexão sobre a diversidade realizadora na prosa de Sontag é valiosa porque tanto a leitura de seus ensaios quanto a sua biografia, escrita por Benjamin Moser, passam a ideia de um gênio que atuava em dispersão, confusamente espalhando seu brilhantismo aqui e ali, sem nunca se ajustar a um funcionamento previsível ou sistemático. Pois a verdade é que ela não pode ter sido o tempo inteiro assim, caso contrário seus romances ficariam pela metade, ou seriam – como tanta coisa que se chama romance – muito mais caleidoscópios do que narrativas íntegras.

Sontag (como também Perec, aliás) viajou bastante, morou em diversos lugares e deve ter tido uma rotina caótica em vários aspectos. Mas conseguiu, durante períodos específicos, manter um eixo de concentração produtiva que lhe possibilitou a escrita de histórias extensas. Agora, juntos nessa biblioirmandade, creio que ambos se encontram num novo tipo de esfera; se um dia se conheceram de fato, não sei, mas o importante é que suas ideias se tangenciam profundamente, e os vejo estabelecendo diálogos sobre questões viscerais – a dor das guerras, o nazismo na história pessoal de Perec, Sarajevo na experiência de Sontag, e todo o esforço que fizeram durante décadas para, com seu trabalho, associar arte e reflexão, beleza e lógica.

Sontag e Perec acreditavam na redenção pela racionalidade. Seus textos são inesgotáveis no esforço de instaurar essa argúcia do sentido que é talvez a maior potência de um escritor. Tudo poderia se condensar numa mîse en abyme; da mesma forma que um objeto colecionado leva a outro, um livro atrai um segundo livro, e outro, e mais outro, e outro, por intermináveis paralelos. Como já se disse a respeito d’A coleção particular, “por meio desse jogo de reflexos sucessivos, pelo encanto quase mágico que essas repetições cada vez mais minúsculas operam, a obra oscila num universo propriamente onírico, no qual seu poder de sedução se amplia até o infinito e no qual a precisão exacerbada da matéria pictórica, longe de ser seu próprio fim, deságua subitamente na Espiritualidade do Eterno Retorno.”

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de julho de 21)

O céu dos pintores

Eis uma opção divertida durante passeios de automóvel: adivinhar, pelo estilo das nuvens, o artista que no momento está agindo sobre aquele trecho celestial. Gênios falecidos voltam a criar nessa tela diária, embora efêmera. Com frequência identifico Magritte, os seus harmoniosos flocos brancos sobre um azul típico, embora também apareçam muitas vezes as nuvens gigantescas de Rubens, ocupando o céu de maneira tão convincente que me sinto prestes a ver outros elementos, querubins e demais figuras gorduchas, pairando bem no alto.

O problema dessa pintura é a ênfase monocromática. Contornos de Miró ou Dalí ocasionalmente são percebidos em nuvens mais ou menos estranhas – porém, o fato de que todas sejam brancas ou, no máximo, acinzentadas, prejudica um pouco a interpretação. Alguns pintores que tiveram uma vida de mártir (penso em van Gogh e Frida Kahlo) devem receber tratamento especial. Suponho que o olhar divino lhes reserva o céu durante o amanhecer ou o crepúsculo: assim, podem seguir manipulando cores, esbanjando amarelos, violetas, tons rubros, até verdes.

Em compensação, artistas que foram singularmente pérfidos amargam um castigo. Estão no céu, porque afinal suas obras trouxeram benefícios para o mundo – mas, como atravessaram a fase humana sendo vaidosos, egoístas ou violentos, foram condenados a exibir trabalhos no meio do Atlântico, sem qualquer público, ou, no extremo, produzem no céu de metrópoles, tentando em vão sensibilizar multidões que jamais levantam a cabeça curvada sobre os celulares.

Na literatura, muitos trataram desse tema nebuloso, por assim dizer – e recordo não somente os poetas simbolistas, mas duas autoras insuperáveis: Cecília Meireles, com sua crônica “Exercício nefelibata”, e Lygia Fagundes Telles, cuja “Conspiração das nuvens” traz um particular efeito, hoje. Invariavelmente se fala da rapidez com que as nuvens se dissipam e assumem novas formas.

Ora, talvez o seu propósito seja a lição do desapego. As figuras, etéreas, logo se desprendem aos pedaços, viram fiapos gasosos, rasgões abstratos – ou somem num lance de mágica (basta um minuto em que se desvie o olhar). Perdi desse jeito serpentes de Chico da Silva, tempestades de Turner, silhuetas de Remedios Varo… O consolo é que sempre há alguém criando na grande tela atmosférica: num cerúleo homogêneo surge Malevich, que investe no azul sobre azul – ou quem sabe seja Yves Klein refinando a cor que um dia ele inventou.

De todos esses artistas, os geométricos são os mais raros de avistar. Mas se a matéria nebulosa dificulta o trabalho com ângulos, nem por isso os nomes clássicos deixam de ser lembrados num passeio. O estilo de Mondrian surge pelo asfalto: é comum que seus quadrados e retângulos compareçam, reproduzidos nos remendos da estrada.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte do jornal O Povo)