Ficções de si

Virginia Oldoini, a condessa de Castiglione, foi uma entusiasta da fotografia. No século XIX, quando esta tecnologia ainda era uma novidade, Virginia se fez retratar, deixando quase quinhentas imagens. Frequentando semanalmente o estúdio do fotógrafo Pierre-Louis Pierson, a aristocrata explorou a própria fisionomia em disfarces, poses e atitudes que pareciam nunca esgotar a versatilidade de sua lendária aparência. Afinal, dizia-se que as pessoas “Contemplavam sua beleza como iam ver as aberrações”. Os encantos de Virginia teriam tido até mesmo influência política, conforme algumas versões de alcova sobre a unificação italiana.

Não espanta, portanto, que os registros dessa personagem tenham inspirado um livro da francesa Nathalie Léger, escritora e curadora de artes. A exposição (DBA, 2023, em tradução de Letícia Mei), surge como uma renovada tentativa de responder à célebre indagação freudiana: o que quer (e, no fundo, o que é), uma mulher? “No trajeto um pouco sinuoso da feminilidade, a pedra na qual tropeçamos é outra mulher”, diz a autora. O tropeço que a Castiglione proporciona faz com este livro explore uma série de associações – com outras obras artísticas e com a própria vida familiar de Léger, a autora. “O que eu procuro é a inconsequência de uma lembrança, seu traço um tanto titubeante por meio dos objetos, é um gesto, ou apenas uma intenção que persiste e se desfaz na matéria”, ela assinala à página 53.

Desde o início, a Castiglione me trouxe à mente a personagem retratada por Susan Sontag em O amante do vulcão, outra figura histórica e de beleza memorável: Emma Hamilton. Vivendo numa época pré-fotografia, Emma posou muitíssimo, mas para pintores; dentre eles, Elisabeth Vigée-Le Brun, que a retratou como uma Ariadne. Era comum que modelos transitassem entre papéis míticos, sacros e outras poses mais realistas, e Emma exercia seus talentos interpretativos também numa série de espetáculos conhecidos como “Atitudes”. Vale a pena reler a descrição de Sontag:

“Sobre a cabeça ela atirava um longo xale que chegava até o chão e a cobria por completo. Assim oculta, enrolava-se em outros xales e começava a fazer os ajustes internos e externos (drapeado, tônus muscular, sentimentos) que lhe permitiam emergir como outra pessoa, uma pessoa diferente). Para fazer isto – não era como colocar uma máscara – deve-se ter uma relação muito solta com o próprio corpo. Para fazer isto deve-se ter um dom para a euforia. Ela flutuava, ela pousava, ela se imobilizava – o coração martelando, enquanto enxugava a transpiração do rosto. Uma rápida sequência de expressões faciais, tendões tensos, mãos enrijecidas, a cabeça pendendo para trás ou para o lado, uma inspiração profunda –

E então de repente levantava-se o xale, seja atirando-o fora ou elevando-o um pouco, e fazendo-o parte da vestimenta da harmoniosa estátua viva em que se transformara.”

A mímica de Emma, minuciosamente premeditada, traz o mesmo tipo de cuidado que vemos nos disfarces escolhidos por Virginia, ao se fotografar. As duas estão motivadas pelo “momento de perfeito esquecimento de si”, pela invenção de uma outra mulher possibilitada pelos travestimentos do retrato. Escreve Léger:

“Ela pensou bastante no objeto da sessão, qual cena, qual figurino, qual personagem? e a luz, a direção do perfil, e a história, o relato de si mesma, a lenda a cada vez retomada, reinterpretada, com incisos incontáveis e variantes, a história interior, certos dias murmurada, em outros fiada, fluida, um canto. Montesquiou conta que ela volta para casa para se trocar, apanhar um acessório, vestir uma roupa. Podemos também imaginar que ela se despe numa das pequenas cabines contíguas ao estúdio, ela mandou levarem alguns figurinos para lá, será Judite ou Elvira ou a rainha da Etrúria, é uma normanda da região de Caux (sentada bem ereta numa pequena cadeira de palha, de vestido de lã vermelha, avental azul-escuro, penteado alto em fina guipure, ela tem nas mãos um tricô, uma meia grossa listrada que ela parece terminar, os cotovelos junto do busto, mas, sob as anáguas de tecido pesado, as coxas estão afastadas, pernas solidamente plantadas, pés presos em sapatinhos de verniz com tiras, o novelo rolou no chão, um estranho sorriso bobo paira em seu rosto), é uma marquesa do século XVIII, é uma carmelita severa, ela é a Beatriz de Legouvé, ela é Virginie, a casta afogada, é a devoradora de homens como Donna Elvira, ela se veste de chinesa, de finlandesa, é um funeral, um banquete, um baile.” (pp.27-8)

N’A exposição, a condessa de Castiglione é comparada a uma Cindy Sherman dos primórdios fotográficos. Mas lembremos de preferência Telma Saraiva, artista brasileira que igualmente compôs autorretratos para desenvolver uma ficção de si, inspirada em atrizes e outras figuras célebres – com o mérito de ter tido essa iniciativa trinta anos antes de Sherman. Apesar de toda a dificuldade de importar tintas para colorir retratos, Telma Saraiva, sem sair do Crato, no sul do Ceará, compôs um rico acervo de autotransformação, precursor do trabalho de tantos artistas atuais. O simulacro que subjaz à persona representada em obras de Ana Mendieta, Helga Stein e Daniela Comani, dentre outros nomes, repousa nesse princípio de que o retrato posado não escapa à simulação.

Annateresa Fabris, em estudo sobre identidades virtuais, já assinalava que através da pose “o indivíduo deseja oferecer à objetiva a melhor imagem de si, isto é, uma imagem definida de antemão, a partir de um conjunto de normas, das quais faz parte a percepção do próprio eu social”. Não é garantido que esta “melhor imagem” seja algo estável, nem mesmo belo, conforme os conceitos tradicionais de beleza. A flutuação por várias possibilidades é o que faz interessante a iniciativa da Castiglione, tanto quanto a das outras artistas aqui mencionadas.

Nathalie Léger ao contar, nas brechas de suas reflexões sobre a protagonista, a própria narrativa familiar, também maneja disfarces, hipóteses que se insinuam nos fragmentos associativos. Ela produz assim retratos literários de sua mãe, de sua avó, de seu pai, como se dispusesse em cena mais personagens posados, arranjados com máscaras e acessórios excêntricos. Afinal, A exposição se volta para uma instância do invisível, a fantasmata que o movimento extravasa: “A fotografia permite captar, na dança incessante da mulher sob o olhar do outro, esse estado de pedra que revela a instantaneidade de um segredo. É isso que ela teria desejado expor.” (p.106)

E é isso o que este livro revela – para quem o lê como quem contempla.

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de abril de 2024)

Coleções: metáforas

Uma biblioteca é sempre dinâmica: há livros que chegam, outros que partem, mas mesmo os que permanecem faço circular por minhas estantes. O principal motivo é quando descubro, por exemplo, que dois autores se detestavam (então jamais deixo suas obras lado a lado: é preciso respeitar os fatos biográficos, ainda que a história de alguém muitas vezes nem chegue à sombra da importância do que escreveu). O outro motivo, mais amistoso, surge quando percebo que determinados livros têm afinidade – de tema, de estilo, de abordagem existencial… são muitos critérios possíveis.

Recentemente Susan Sontag e Georges Perec passaram a ser vizinhos, cúmplices de prateleira aqui em casa. Tomei a decisão depois que li O amante do vulcão. Dentre os vários assuntos deste livro (qual obra de valor escapa dos plurais?), o colecionismo talvez seja o mais enfatizado. Com um verdadeiro estudo do temperamento do colecionador, é claro que Sontag fica confortável na companhia de Perec, assim próxima d’A coleção particular, bem como de outros títulos do autor, que de maneira mais ou menos indireta também abordam o tema: A vida – modo de usar, Les choses, Tentative d’épuisement d’un lieu parisien

Um artigo sobre O amante do vulcão, publicado na revista chilena Aisthesis, em dezembro de 2019, por Olaya Sanfuentes, ressalta que Sontag se declarou muito satisfeita com esse romance, porque todo o conjunto de elementos culturais que a interessaram para que executasse sua escrita estão presentes de modo onívoro: o gosto pela arte, as discussões a propósito da beleza, o mundo dos clássicos e sua reprodução, o papel da mulher, o colecionismo. Seu protagonista, Il Cavaliere, que aponta para o personagem histórico sir William Hamilton, para além de vulcanologista, foi um eminente colecionista do século XVIII.

Comenta Sanfuentes: “A metáfora do colecionista é perfeita para ela, que se vê refletida no personagem de Hamilton. Sua avidez, sua impossibilidade de saciar-se, a necessidade de possuir tudo, de saber tudo, refletem Sontag.” A escritora foi uma colecionadora de histórias, de aventuras, anedotas e livros. Podemos também lembrar que logo no início do clássico Sobre fotografia, Sontag cita a ideia de colecionar fotos e montar um filme (Si j’avais quatre dromadaires, de Chris Marker) como uma coleção delas. Nada mais coerente, portanto, que em O amante do vulcão encontremos passagens de verdadeira elegia ao colecionismo, como as que seguem:

“As grandes coleções são vastas, não completas. Incompletas: motivadas pelo desejo de completar. Sempre há mais um. E mesmo que você tenha tudo – o que quer que isso seja – você talvez queira uma cópia (versão, edição) melhor do que a sua; ou, se são objetos produzidos em massa (cerâmica, livros, artefatos), simplesmente uma cópia extra, caso a sua seja perdida, roubada, quebrada ou estragada. Uma cópia de reserva. Uma coleção-sombra.

Uma grande coleção particular é um concentrado material que continuamente estimula, superexcita. Não só porque sempre pode receber acréscimos, mas porque em si já é demais. A necessidade do colecionador é precisamente de excesso, exagero, profusão.

É demais – e é justo o suficiente para mim. Alguém que hesita, que pergunta, Será que eu preciso disso? Será que é mesmo necessário? não é um colecionador. Uma coleção é sempre mais do que é necessário.”

Em última instância, consideremos que o colecionismo de Sontag voltava-se para o manejo das próprias palavras – e, embora com estratégias diferentes, Perec igualmente se ocupou deste tipo de atenção seletiva, como bom integrante que foi do grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle). Além disso, ele atuou como verbicrucista, ou seja, foi autor de palavras cruzadas: mais uma forma de lidar com as peças do léxico sob extrema destreza e, provavelmente, com o apuro de um colecionador.

Por um lado, o ato de colecionar remete ao garimpo de fragmentos, pedaços – de objetos, imagens, produtos das mais diversas naturezas – encontrados aqui e acolá. É um método que passa pelo fortuito, celebra o acaso em grande medida. A escrita ensaística simula esse ritmo; o interesse migra de um assunto a outro, concentra a lupa num fenômeno, olha-o com profundidade descritiva, mas depois o abandona. Não passeia com ele nem se dispõe a transformá-lo, submetendo-o às intempéries de regiões imprevistas.

No caso dos romances, o universo temático é desdobrado ao longo de centenas de páginas, num embalo completamente diferente dos cortes ensaísticos. Afinal, ainda que os capítulos de uma narrativa extensa possam ser breves, sua estrutura avança numa única direção – e isso não se parece com os passeios de ida e volta que os ensaios realizam. Mesmo que unificados dentro de um livro, cada capítulo de um volume de ensaios é independente; todos eles podem visitar repetidas vezes o mesmo destino, mas sempre formarão diversos trajetos, nunca uma viagem só, que exige maior resistência.

Essa reflexão sobre a diversidade realizadora na prosa de Sontag é valiosa porque tanto a leitura de seus ensaios quanto a sua biografia, escrita por Benjamin Moser, passam a ideia de um gênio que atuava em dispersão, confusamente espalhando seu brilhantismo aqui e ali, sem nunca se ajustar a um funcionamento previsível ou sistemático. Pois a verdade é que ela não pode ter sido o tempo inteiro assim, caso contrário seus romances ficariam pela metade, ou seriam – como tanta coisa que se chama romance – muito mais caleidoscópios do que narrativas íntegras.

Sontag (como também Perec, aliás) viajou bastante, morou em diversos lugares e deve ter tido uma rotina caótica em vários aspectos. Mas conseguiu, durante períodos específicos, manter um eixo de concentração produtiva que lhe possibilitou a escrita de histórias extensas. Agora, juntos nessa biblioirmandade, creio que ambos se encontram num novo tipo de esfera; se um dia se conheceram de fato, não sei, mas o importante é que suas ideias se tangenciam profundamente, e os vejo estabelecendo diálogos sobre questões viscerais – a dor das guerras, o nazismo na história pessoal de Perec, Sarajevo na experiência de Sontag, e todo o esforço que fizeram durante décadas para, com seu trabalho, associar arte e reflexão, beleza e lógica.

Sontag e Perec acreditavam na redenção pela racionalidade. Seus textos são inesgotáveis no esforço de instaurar essa argúcia do sentido que é talvez a maior potência de um escritor. Tudo poderia se condensar numa mîse en abyme; da mesma forma que um objeto colecionado leva a outro, um livro atrai um segundo livro, e outro, e mais outro, e outro, por intermináveis paralelos. Como já se disse a respeito d’A coleção particular, “por meio desse jogo de reflexos sucessivos, pelo encanto quase mágico que essas repetições cada vez mais minúsculas operam, a obra oscila num universo propriamente onírico, no qual seu poder de sedução se amplia até o infinito e no qual a precisão exacerbada da matéria pictórica, longe de ser seu próprio fim, deságua subitamente na Espiritualidade do Eterno Retorno.”

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é Narrativa, do jornal Rascunho de julho de 21)

Metaforizar

Benjamin Moser, em sua recente biografia de Susan Sontag, indica – como um dos eixos obsessivos da trajetória desta pensadora – a permanente reflexão sobre a metáfora. Logo no início do livro, assinalo a seguinte passagem: “Para Sontag, a realidade – a coisa real, despida de metáfora – nunca foi de todo aceitável. Desde muito jovem, ela soube que a realidade era frustrantemente cruel, algo a ser evitado” (Companhia das Letras, 2019, p.22)

Não somente dois ensaios de Sontag, “Aids como metáfora” e “Doença como metáfora”, parecem confirmar a predileção da autora para se debruçar sobre o assunto. Nos seus volumes a respeito da arte fotográfica, Sobre fotografia e Diante da dor dos outros, ela reforça este aspecto: a fotografia não se confunde com a realidade. É sempre um processo representativo, metafórico – uma interpretação do mundo, jamais o mundo em si.

Em minhas aulas na Universidade Federal do Ceará, esse tipo de debate se instala de modo fácil, sobretudo nos estudos linguísticos e semióticos. A metaforização é um processo inevitável, porque a própria linguagem nos afasta do empírico, molda um simulacro, um substituto onde tantas vezes mergulha a maior parte da nossa vida, quando não a totalidade.

Podemos não fazer reflexões tão conscientes quanto as que Susan Sontag pôs em seus livros, mas para todos nós, humanos, metaforizar também se torna um procedimento crucial.

A ânsia pelo conforto simbólico nos faz rejeitar situações em que o corpo surge enquanto mero pedaço de carne, organicamente funcional, com seus ciclos, excreções, apetites etc. Criamos estratégias de erotização – transformação simbólica – para travestir nossos impulsos “animalescos”. Comer ou beber, por exemplo, passam a ser atos sociais, ritualísticos até. O sexo se reveste de sentimento amoroso (uma invenção cultural, alguns dizem), a procriação e a morte ganham interpretações sublimes ou religiosas (de novo, a cultura). Estipulamos pudores ao comportamento, escondemos o biológico de que somos feitos.

Acreditamos que a vida seria grotescamente insuportável, sem esses mecanismos de deriva.

Quase todos os seres humanos realizam transferências simbólicas (as exceções são conhecidas dos psicólogos); portanto, esse processo não é exclusivo das artes. Mas é claro que há uma grande diferença entre metáforas cotidianas, clichês desgastados que apenas reforçam hábitos mentais, e o tipo de golpe flamejante que encontramos na boa literatura, digamos.

Exatamente por ser inesperado, o gesto artístico nunca se reduz a imitações ou formulazinhas. Satisfaz – e depois escapa. Como a própria existência, aliás.

Tércia Montenegro (texto publicado hoje no Vida & Arte)

 

 

Inventar o silêncio

 

A edição 195 do jornal Rascunho trouxe, na seção Inquérito, com Charles Kiefer, um tema que me sensibiliza muito: a opção pelo silêncio. Desde a época em que, para o mestrado, pesquisei a obra de Raduan Nassar – tantas vezes definido como um “ex-critor” –, essa postura me intriga e fascina.

Inicialmente, fui tentada a considerar inviável tal espécie de renúncia. Como um artista, para quem a criação é coisa tão vital, poderia abdicar (e ainda mais, voluntariamente) de sua prática? No imaginário, estes indivíduos me surgiam como discretos rebeldes que, à custa dessa greve, pareciam elaborar algum protesto – contra o mercado? o público? os seus contemporâneos? Não me importava o ideal por trás da decisão: eu achava que essas pessoas amargavam o sacrifício, a sensação de sufocar pelo não-dito, ou não-escrito. Seriam mártires da estética ou, no mínimo, seres infelizes.

O tempo – com variados exemplos – fez com que eu mudasse de juízo.

O silêncio, como escolha, apresentou legitimidade e inúmeras facetas. Não se trata (apenas) de um gesto de recusa: deixar de produzir é também um tipo de resposta e, em última instância, o vazio linguístico pode ser recebido como um texto, implícito ou radicalmente econômico.

A própria literatura se encarrega dos exemplos. Vila-Matas é a figura que logo recordamos, para abordar estes casos; com Bartleby & cia. (e depois, em outros textos) o escritor espanhol explora, em sua ficção, episódios envolvendo “artistas do não”. O mote fornecido pelo livro de Melville, Bartleby, o escrivão, usa como ponto de partida a personalidade de quem prefere a paralisia ao gesto, a imobilidade à ação.

O silêncio derivado dessa circunstância parece ter uma raiz fleumática ou displicente, algo que se encontra em Oblómov, o protagonista eternamente deitado em sua cama. Este romance de Ivan Gontcharóv, publicado em 1859, repercute na obra de Georges Perec, O homem que dorme, de 1967. A preguiça ou indiferença pode ser um dos motivos para essa atitude de persistente repouso.

Confundindo-se com um pessimismo profundo – e oscilando à borda de um estado depressivo –, tal postura parece ecoar o início d’ “O artista inconfessável”, de João Cabral: “Fazer o que seja é inútil/ Não fazer nada é inútil”. Os versos seguintes, porém, elegem “o inútil do fazer” como mais relevante, “porque ele é mais difícil/do que não fazer” e o esforço, em si, já tem valor.

Fernando Pessoa – via Bernardo Soares, no Livro do desassossego – abordou o tema com abundância adverbial: “Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens”. O orgulho de se destacar da massa, do grosso comum da humanidade, surge como outro motivo para a recusa de agir. O ponto que oscila entre plenitude e pessimismo continua, porém, escorregadio. Em momento adiante, o poeta reflete: “Mas não sei se a definição suprema de todos esses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo ‘Já sei tudo”, ou na indiferença demasiado experiente do imperador Severo: ‘omnia fui, nihil expedit – fui tudo, nada vale a pena’.”

Susan Sontag, no ensaio “A estética do silêncio”, pertencente ao livro A vontade radical, demora-se em ponderações sobre o assunto e admite: “A atitude verdadeiramente séria é a que encara a arte como um ‘meio’ para alguma coisa que talvez só possa ser atingida pelo abandono da arte”.

Desde que o fazer estético pode ser considerado uma libertação, ou até mesmo um exercício de ascetismo, o artista vai se tornando purificado – “de si próprio e, por fim, de sua arte”. A necessidade (que, como tal, sempre revela uma carência, uma fragilidade) é superada pela satisfação. O artista não sofre mais com a inquietação de realizar uma obra; atingiu o sossego, que é mais valioso do que a voz.

Assim observa Sontag: “O silêncio é o último gesto extraterreno do artista: através do silêncio ele se liberta do cativeiro servil face ao mundo, que aparece como patrão, cliente, consumidor, oponente, árbitro e desvirtuador de sua obra”.

Em meio a tanto ruído do mundo, o caminho da contemplação surge como um veio promissor. É nesse sentido que abdicar da arte pode ser o ápice do propósito artístico, o exercício dentro de uma estética ensinando a extrair prazeres do mínimo. Render-se à tentação da mudez é, portanto, uma fase de êxtase, e não de sacrifício, para quem assim procede.

Mas Sontag adverte que essa etapa – como num trajeto de iluminados – tem de ser alcançada tardiamente: “Uma decisão exemplar dessa espécie só pode ser efetuada após o artista ter demonstrado que possui gênio e tê-lo exercido com autoridade. Uma vez suplantados seus pares pelos padrões que reconhece, há apenas um caminho para seu orgulho. Pois ser vítima de ânsia de silêncio é ser, ainda num sentido adicional, superior a todos os demais. Isso sugere que o artista teve a sagacidade de levantar mais indagações que as outras pessoas, e que possui nervos mais fortes e padrões mais elevados de consciência”.

O silêncio, em todas essas colocações, pode ser um sinal de orgulho no ultrapassar a ação (ainda que esta seja original, artística), ou pode, ao contrário, ser despretensioso, derivado de simples letargia. Também é possível que nem dependa de uma escolha do indivíduo, nos casos em que ele se encontra pleno a ponto de perder o anseio por criar. Tal parece ter sido o caso de Charles Kiefer, que em sua entrevista declara: “Como eu vivo hoje em absoluta plenitude, não escrevo mais”.

Sendo múltipla e criativa – embora exteriormente possa soar como uma tendência uniforme e estéril, devido à falta de produtos ou resultados –, a inação guarda o impulso narrativo. Susan Sontag assinala que “a obra de arte eficaz deixa o silêncio em seu rastro”. Numa linha próxima, mas agora pensando no potencial inventivo dessa mudez, arriscamos a afirmação vista pelo outro lado para dizer: o silêncio eficaz deixa um rastro de arte.

 

Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Tudo é narrativa, do jornal Rascunho)

 

 

Dia de sol

Mais um trecho d’A vontade radical, de Susan Sontag. E, para terem a exata dimensão da lucidez desta autora, lembrem que este ensaio, “O que está acontecendo na América”, foi escrito em 1966!

“Gertrude Stein disse que os Estados Unidos são o país mais idoso do mundo. Certamente, é o mais conservador. Têm o máximo a perder com mudanças (sessenta por cento da riqueza mundial nas mãos de um país que tem seis por cento da população do planeta). Os americanos sabem que suas costas estão contra a parede: ‘eles’ querem tirar tudo isso de ‘nós’. Na minha opinião, a América merece que tal aconteça.

“Não é preciso dizer que os Estados Unidos não são o único país violento, feio e infeliz na face da Terra. Ainda uma vez, é um problema de escala. Somente 3 milhões de índios viviam aqui quando o homem branco chegou, fuzil na mão, para seu novo início. Hoje, a hegemonia americana ameaça a vida não apenas de 3 milhões, mas de incontáveis milhões que, como os índios, nunca ouviram falar dos ‘Estados Unidos da América’ e muito menos de seu mítico império, o ‘mundo livre’. ” (pp.203-5)

Sontag e o silêncio

Nestes dias desconcentrados e difíceis, a leitura só poderia acontecer de forma fragmentária. Poemas ou ensaios seriam a opção. Como eu estava precisando racionalizar, deixei o gênero poético de lado e me agarrei com A vontade radical, da Susan Sontag. O ensaio “A estética do silêncio” satisfez de imediato, mas dando aquela sensação de atraso – porque, quando eu li O homem que dorme, do Perec, os romances de Vila-Matas sobre “a arte do não” e o próprio Baterbly, o escrivão, fiz inúmeros questionamentos sobre o tema. Sontag teria vindo no momento ideal, então. Mas mesmo agora, com a simples lembrança destas obras, aproveito muitíssimo as suas ponderações:

“A atitude verdadeiramente séria é a que encara a arte como um ‘meio’ para alguma coisa que talvez só possa ser atingida pelo abandono da arte. (…) Embora não seja mais uma confissão, a arte é mais do que nunca uma libertação, um exercício de ascetismo. Através dela o artista torna-se purificado – de si próprio e, por fim, de sua arte. (…) enquanto anteriormente o bem do artista era o domínio e o pleno desempenho de sua arte, agora o seu bem mais elevado é atingir o ponto onde tais metas de excelência tornam-se insignificantes para si, emocional e eticamente, ele fica mais satisfeito por estar em silêncio que por encontrar uma voz na arte. (…) O silêncio é o último gesto extraterreno do artista: através do silêncio ele se liberta do cativeiro servil face ao mundo, que aparece como patrão, cliente, consumidor, oponente, árbitro e desvirtuador de sua obra.” (pp.12-3)

“Uma decisão exemplar dessa espécie só pode ser efetuada após o artista ter demonstrado que possui gênio e tê-lo exercido com autoridade. Uma vez suplantados seus pares pelos padrões que reconhece, há apenas um caminho para seu orgulho. Pois ser vítima de ânsia de silêncio é ser, ainda num sentido adicional, superior a todos os demais. Isso sugere que o artista teve a sagacidade de levantar mais indagações que as outras pessoas, e que possui nervos mais fortes e padrões mais elevados de consciência.” (pp.13-4)

“De tudo o que é dito pode-se indagar: por quê? (Incluindo: por que se deveria dizer isso? E: por que eu deveria dizer alguma coisa, de qualquer modo?)

Além disso, falando-se em termos estritos, nada que é dito é verdadeiro. (Embora uma pessoa possa ser a verdade, nunca se pode dizê-lo.)

Todavia as coisas que são ditas podem às vezes ser úteis – é o que as pessoas geralmente querem significar quando enxergar alguma coisa dita como sendo verdadeira.” (pp.26-7)

“Um dos usos do silêncio: atestar a ausência ou a renúncia ao pensamento.” (p.27)

“(…) a obra de arte eficaz deixa o silêncio em seu rastro.” (p.31)